AOS PÉS DA SANTA CRUZ

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Dias atrás, a cidade de Itapecuru foi sacudida por um ato de brutal vandalismo. Não mais que de repente, um signo histórico e religioso da cidade, sob o formato de cruz e emblemático, apareceu jogado ao chão e quebrado rente à base de sustentação.
Foi o bastante para a população protestar e revoltar-se com tamanha e inacreditável ação de selvageria. Como não poderia deixar de acontecer logo vieram à tona comentários e versões sobre o autor ou autores de tão repugnante gesto, condenado pelos que moram na cidade, sejam ou não itapecuruenses.
De um lado, os adversários do atual prefeito que o acusavam como possível autor do atentado, com base num anunciado projeto de reforma da Praça da Cruz. De outro lado, os amigos do gestor, denunciavam os opositores pela armação de uma operação sinistra para indispô-lo com a população, a grande maioria de índole católica, tendo em vista que ele cultua a religião evangélica.
De minha parte, a convicção de que só devo posicionar-me depois que indícios ou provas me levarem a um juízo correto de onde partiu ou quem perpetrou aquela ação covarde e revoltante, que, além de lesar o patrimônio da cidade, feriu sobremodo o sentimento religioso dos itapecuruenses.
Enquanto espero o resultado da apuração dos responsáveis pela destruição da santificada cruz, se é que um dia a verdade seja esclarecida e conhecida, me permitam os leitores fazer alguns comentários relacionados à Festa da Cruz, seguramente o evento religioso mais antigo da minha terra.
Para isso, remonto às origens históricas de Itapecuru, tendo por respaldo o Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão, da autoria de César Marques. Revela o ilustre médico que, na Praça da Cruz, em 20 de outubro de 1818, o procurador Francisco de Paula Pereira Duarte, na presença da nobreza, do clero e do povo, leu em voz alta a Provisão Régia de 27 de novembro de 1817, de criação da vila de Itapecuru.
Naquela época, registram os anais da cidade, que a Praça da Cruz se localizava no espaço físico que formou o núcleo primitivo da vila, posteriormente transformada em cidade. Ali, em 1820, construiu-se a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, onde se realizavam os atos religiosos, inclusive os dedicados à Santa Cruz.
Com o processo evolutivo da vila, no vicariato do padre Francisco José Cabral (1862 a 1870) levantou-se uma nova igreja, que virou sede da matriz em homenagem a Nossa Senhora das Dores, padroeira da Freguesia do Itapecuru, criada pela Provisão Régia de 1801.
Com a construção dessa igreja, tudo leva a crer que foi construída outra Praça ou Largo da Cruz, num local onde se acha até os dias correntes. Era uma área descampada, sem que se saiba precisar o autor da obra e a data da sua construção, edificou-se um altar-mor à base de alvenaria e de razoável tamanho, no centro do qual pontificava uma vistosa cruz de madeira, na frente da qual passaram a ser celebradas missas, ladainhas, rezas, orações e pagamento de promessas.
Anos depois, a Praça da Cruz, em função de intervenções promovidas pelos prefeitos municipais, que, com o intento de modernizá-la nela introduziram bancos, canteiros e postes de iluminação elétrica. Remodelada, chegou a receber outras denominações, algumas votadas pela Câmara Municipal, ressaltando-se as de Praça João Lisboa e Praça Saturnino Bello, mas não chegaram a ser consagradas pelo povo, que sempre preferiu chamá-la pelo nome original.
Um prefeito, na avidez de dar à praça um toque de inovação, decidiu substituir a cruz de madeira por uma de mármore branco. Resultado: a população não aceitou a mudança e o prefeito que o sucedeu obrigou-se a substituir a nova cruz pela antiga.
Há uma controvérsia referente à promoção da Festa da Cruz. O jornalista Zuzu Nahuz, nascido em Itapecuru, onde viveu a infância, em crônica publicada no Correio do Nordeste, afirma que o mês de sua comemoração era agosto, informação que vai de encontro com os meus tempos de infância, quando a cidade se preparava para festejá-la na segunda metade do mês de outubro.
Três famílias, na esteira dos anos, se encarregaram de promover a Festa da Cruz: os Sitaro, depois os Bezerra e, finalmente, os Nogueira, que assumiram a responsabilidade de organizá-la anualmente e dando-lhe um tratamento lastreado na tradição popular e no ritual católico.
A festa se realizava no espaço que circundava o altar-mor, literalmente ornamentado por bandeirolas coloridas e ariris. Ali, também, montavam-se o coreto, o leilão, as barracas com bebidas e as bancadas de doces.
No coreto, ficava a banda musical que às noites animava o arraial e acompanhava os ofícios religiosos, destacando-se missas e ladainhas, em que os fiéis cantavam em uníssono o hino da Santa Cruz, com um estribilho que até hoje continua retido na minha memória: “Triunfar, Senhor Jesus/ Que veio reinar pelas nossas almas/ Triunfar, Senhor Jesus/ Que veio reinar pela vossa cruz”.
No cercado destinado ao leilão, arrematavam-se as chamadas “jóias”, cujas receitas serviam para o pagamento das despesas do festejo.
Nas barracas, de variados tamanhos e de palhas de pindoba, vendiam-se bebidas, alcoólicas ou não, comidas, tira-gostos e doces, estes, preparados pelas doceiras da cidade, as veteranas Leonor, Frozina, Maroca, Braulina, Ana Júlia, Mundica Sampaio e Tina, dotadas de invejáveis virtudes culinárias. Não podem ser esquecidas as brincadeiras de sorte, os concorridos jogos de azar e os indefectíveis carrosséis.
A Festa da Cruz, diferentemente das outras festas religiosas de Itapecuru, tinha uma duração maior. Se a de Nossa Senhora das Dores e de São Benedito duravam cinco dias, a da Cruz chegava ao novenário.
Com o passar dos tempos, a festa começou a viver momentos de altos e baixos. O desaparecimento de Francisco Garcia Nogueira, respeitado funcionário público federal, em torno do qual o evento religioso girava, contribuiu sobremodo para o festejo entrar em declínio, a despeito do esforço admirável de suas filhas, Conchita, Maria Hilda, Socorro e Zezé, que até hoje se desdobram para não deixar que desapareça de vez do calendário religioso da cidade.
O ponto culminante da festa ocorria no domingo. No alvorecer do dia, a população despertava sob o pipocar dos foguetes e do badalar dos sinos. Por volta das 9 horas, o vigário iniciava a cerimônia da missa, assistida fervorosamente pelos católicos e romeiros, vindos dos povoados e das cidades vizinhas. No final da tarde, a tradicional procissão viajava pelas principais ruas da cidade. Ao longo do percurso, os fiéis rezavam e cantavam hinos de cunho religioso, com o auxílio da banda musical. À noite, encerrava-se com a novena.

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