Todo cidadão deve cravar dentro do peito – num pires imaginário – uma vela acesa em homenagem à São Luís, e sair hoje assim com esse altar iluminado pelas ruas e pelas praças, saudando o aniversário desta que é uma das mais belas do Brasil.
Rejuvenesça com a cidade. É dia de usar roupa nova, como nos domingos de antigamente. Se for o caso, raspe a barba e o bigode, re-pagine-se, confraternize diante do espelho com o cidadão de sorte que você é, por morar aqui, com vista para a baía de São Marcos.
Tome umazinha no boteco da esquina, em homenagem à aniversariante – e não esqueça o primeiro gole do “santo”. Cumprimente-se a si mesmo, leitor – e agradeça ao Criador por morar neste berço que Ele desenhou com tanto capricho, molhando a ponta do lápis na língua divina.
É dia de festa para todos, o regozijo está no ar, a atmosfera festiva oxigena a vida dos são-luisenses da gema e dos adventícios. Mas é ainda mais festivo para aqueles que, um dia, socorreram-se de um carrinho-de-cavalo e de seu cúmplice boleeiro para uma visita galante ao jardim da namorada – onde aterrissou um buquê atirado do “coche”, após um leve sofreio no galope.
Este 8 de Setembro é mais festivo para os que respiraram a maresia do Cais da Sagração. Ou os que receberam nos alvéolos esse ar marinho que se desprendia da Praia Grande.
É dia festivo para quem chupava um beijo-frio ali pertinho, nos inconfundíveis sabores de sorvete de chocolate, coco e ameixa do Bar do Hotel Central – e, depois, tentava imprimi-lo no lábio da namorada, a uma quadra dali, no escurinho do Cine Roxy. É data cheia para os que freqüentaram aquele cinema, porto seguro de todo pinguço.
Todos são titulares desta festa. Todos os que ajudaram a construir esta escultura à beira-mar, argamassa que hoje comemora 397 anos de vida, paixão e glória.
Saia do próprio corpo, leitor, leitora. Dizem que há técnicas mentais capazes de tornar o vivente um ser incorpóreo, metafísico, etéreo.
Transcenda no tempo até desembarcar na Rua Grande dos anos 50. Entre na confeitaria Crystal e peça uma “faixa-azul” gelada, com uma almôndega e uma pastel de camarão. Sorva o líquido gelado, caprichando no “bigode” de espuma. Se estiver acompanhado de uma criança, pague-lhe uma banana recheada e uma Cola-Jesus. Siga até uma banca do Largo do Carmo e compre o “Jornal do Dia”. Corte o cabelo e faça a barba (com velva), ali no Salão Pompeu, ao lado do Moto Bar. Flerte com sua própria mulher (hoje avó) no footing domingueiro do Palácio do Leões até a Igreja da Sé.
A São Luís descansada daquelas manhãs de verão prende-se à minha retina memorial como um “DVD de época”. Fronteira entre a velha cidade, mistura de urbe e roça – sim, do Anil ao Turu era zona rural! – e a explosão urbana que hoje a degrada, fisicamente. Lembranças fragmentadas fluem como um celulóide desgovernado, filme antigo, cheio de interrupções e luminescências.
A Fonte Maravilhosa e o refreco de quebra-pinto, o Abrigo da Praça João Lisboa – cachorro-quente do “Companheiro”, sonhos e bombas de creme. O Lusitana, restaurante que servia cozidões portugueses, mocotós, dobradinhas e bobós de camarão. Os carrinhos de cavalo. O Lord Hotel. O Hotel Ribamar. O Carnaval de Rua. Matinês do Cine Éden, na Rua Grande. Encontro dos Brotinhos, no Lítero..
“O que me lembro, tenho”, escreveu, a título de consolo, João Guimarães Rosa, o [re-inventor] da língua portuguesa. Confirmando William Shakespeare, que também era fiel à sua Stratford-on-Avon:
– Louvar o que passou, torna mais queridas as lembranças.