De momentos inesquecíveis me adiciono

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Comigo as coisas acontecem tarde. Fiz a primeira grande viagem aos 28 anos, embora meu livro de estréia tenha saído quando desembarcava nos 25. O romance com que, algo temerariamente, pensei fundar uma alentada série de narrativas longas só apareceu na altura dos 40, mas nunca encontrei uma editora interessada em publicá-lo. Hoje, acho que foi preferível assim.

Ao completar 30, pintou uma chance de ir morar em Nova York. Mas, bem menos experiente do que me senti depois, talvez não tivesse provado do ensaio de serena plenitude que foi, no momento próprio, a descoberta da Alemanha e da França (certa manhã, no Café de Beaux Arts, me surpreendi feliz pelo simples fato de estar vivo).

Revisitei, há poucos dias, Memórias de viagem, um pequeno volume lido por poucos e nunca publicado. Ali já está o escritor que sou, com uma atrevida coleção de textos, alguns dos quais eu voltaria a assinar, sem mexer num parágrafo.

Existencial de agosto, construído e reinventado ao largo dos inexperientes anos de minha primeira juventude, terminou sendo uma espécie de êxito de província. Mas se houvesse me contentado com aqueles arroubos poéticos, provavelmente não chegaria agora este e-mail do outro lado do mundo, em que uma professora de Letras, se confessa triste pela morte de um dos meus personagens, pelo qual ela confessa ter, secretamente, se apaixonado.

Os personagens criados por um escritor não morrem. E não apenas eles, mas a raça humana em geral. À medida que as idades voam, as pessoas se reinauguram, em novas vidas.

Ouso crer que as melhores são as que ressurgem neste patamar dos 60 e vários. Pois acontece que não és mais jovem, que és menos impulsivo e tolo. E ocorre que não chegaste ainda ao ocaso.

Tanto isso é verdade que se eu pudesse fechar uma conta de somar de todos os momentos belos com que vivi, revisitaria a primeira vez que vi o mar, que inundou minha alma de imensidão. Seu sal se misturou ao das lágrimas de uma menina cujos olhos eram naquele instante todo um oceano azul. Retornaria às noites da minha pequena e eterna cidade de Presidente Dutra, onde duas mãos se uniam a cada segundo em que o luar se escondia nas nuvens. E não esqueceria de voltar a Timmendorfer Strand, só para constatar de novo que as águas do Báltico são violeta.

Não dá para esquecer Roma, eu caminhando na campina e transpondo a primavera, em busca do túmulo de Cecília Metela, por quem penou de amor Lord Byron. Muito menos aquele restaurante em Fishermen’s Wharf em que salmões chegavam à mesa com um certo ar de abandono – e de súbito aquele sorriso engastado num rosto inesquecível.

E a Broadway às 11 horas da noite, na saída do teatro, e toda Nova York reunida ali e toda paz compondo um acalanto para o meu coração? Revisitaria, por certo, aquele quarto de hotel em Londres, imenso como minha liberdade, porque parecia que sempre era domingo e sempre era feriado e alguém me esperava nos gramados do Hyde Park, em oferenda ao sol.

Como esquecer das leves batidas na janela em Cortina D’Ampezzo, no alto das montanhas? Eu me perguntando quem seria e de manhã, abrindo as venezianas, percebi que era apenas a neve. E a ladeira da Ilha de Rhodes? O guia contando histórias de 400 séculos antes e minha amiga me tomando a mão e me segredando: Vai uma cervejinha? Tem um bar ali na esquina.

E Paris na Place de la Contrescarpe e Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway comigo? Também comigo estava uma amiga de São Luís que acho que nunca ninguém tinha dito para ela como era linda, pelo menos do jeito que eu disse.

Que magnífica visão a daquele enorme transatlântico se aproximando da Ilha de Patmos, imersa numa luz mediterrânea pontilhada de casas brancas! E aquele cais na Grécia, onde perdi a urgência de qualquer partida? Nele, me senti puro e bom e simples como um pescador, sem projetos nem sonhos.

De todas essas coisas me adiciono. E desta voz que me diz ao telefone, vinda do outro lado do planeta:
“Tenho medo de jamais te rever. E de desaprender o que aprendi te amando”.

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