Natalança ou pretexto para homenagear o estômago

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Machado de Assis, no fecho de ouro do seu “Soneto de Natal”, fala do homem a quem faltou inspiração, quando desejoso de “transportar ao verso doce e ameno as sensações de sua idade antiga, naquela mesma velha noite amiga, noite cristã, berço do Nazareno”.

Vale a pena repetir os tercetos finais do imenso escritor e também grande poeta: “Escolheu o soneto… A folha branca pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, a pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o metro adverso, só lhe saiu este pequeno verso: Mudaria o Natal ou mudei eu?”

Para o Papa Bento 16 “o materialismo” e os exageros da mesa são pecados que vêm “poluindo o espírito de Natal”. “O Natal deveria ser marcado apenas por celebrações e os cristãos deveriam comemorar a data em sua casa, de maneira simples, apenas para demonstrar a fé às suas crianças” – disse.

Antes de partir para a eternidade, o Papa João Paulo 2º também expusera a sua preocupação com o lado “excessivamente festivo” do Natal e com o “ânimo” daqueles cristãos que confundem “comemorar” com “comer”. Quer dizer: todo mundo.

Os dois Papas talvez não tivessem notado que o Natal há muito deixou de ser uma festa da fé para se transformar numa “festa de Babette”.

Os sininhos, as luzes e a cordialidade entre os homens (“Boas Festas!”) – é só um pretexto para a grande comilança. O Senhor veio ao mundo para nos salvar de todos os pecados, inclusive o da gula, exatamente o mais praticado entre o Natal e o Ano Novo.

O Natal está aí, e já me sinto “um Menino” em plena engorda. Já prelibo os perus e seus recheios. Os camarões, as carnes defumadas, as régias sobremesas, as uvas graúdas deglutidas com a languidez de uma Agripina, a mãe de Nero, pouco antes do grande incêndio…

Atualmente, o Natal parece se resumir nisso: a engorda pagã dos meninos e dos adultos, o bom comer e o melhor beber. Depois da ceia, já não é hábito ir-se à Missa do Galo. Os galos, os chesters, os perus, estão todos “cacarejando” dentro do estômago dos fiéis, boiando num mar de champanha. Depois, rendemo-nos incondicionalmente ao sono, panças cheias.

Mas há o dia seguinte. Deveria ser um dia devotado ao renascimento da vida ascética. Passaríamos a frutas e a torradinhas. Chás e alka-selzers para rebater o pantagruélico empanzinamento. Mas o Dia de Natal é feriadão dos mais chatos. Tudo está fechado. O mormaço de dezembro instala no ar uma estufa abafada e sufocante. Resultado: o pessoal retorna à “manjedoura”, requentando o banquete da véspera…

Natal quer dizer renascimento. Pois o homem natalino já nasce reincidente no pecado da gula. Acendem-se outra vez os fogões da comezaina, abrasam-se de novo as aves, as caças, os camarões. Reerguem-se, depois de um “chuveirinho” na pia, as taças para o vinho, as tulipas para a cerveja, os “tubos de ensaio” para as cevadas de Sir Walter Scott.

Somos todos esfaimados insaciáveis, monstrinhos onívoros (aqueles que comem “de tudo”), primo-irmãos da “bernunça”, bicho que come tudo “o que lhe dão”. Em nome da celebração do Menino, recomeça a gincana estomacal, o rescaldo da grande mistura, todos investidos na “personna” de Gargântua, o comilão. Boas festas e feliz digestão – se forem capazes!

Sonho que subi aos Céus e que só não me sento à mão direita de Deus-Pai porque este é o lugar cativo do “Menino”. Mas fico confortavelmente à Sua esquerda, junto com uma turma de maranhenses folgados, todos recém-chegados de festas natalinas.

O Todo Poderoso nota que o pessoal está meio “alto” e vale-se do bom humor para perguntar:

– Como é que foi o alegre Natal?

– Ótimo! – rebatem os glutões. “Principalmente depois que o Nazareno teve a delicadeza de transformar água em vinho!”

O Senhor notou a velada intenção de transferirem ao seu “Menino” a responsabilidade pelo porre, mas conduziu a conversa para outro caminho:

– Mas o Brasil não está em crise?

– Está. Há 510 anos. Mas no Natal todos viram milionários, todo mundo come bem e bebe melhor. O homem fica mais humano e até se despoja do que tem para ajudar os mais necessitados. O Natal é a confraternização da humanidade em torno de uma taça de espumante ou um copo de “rabo-de-galo”.

Somos todos Reis Magos na fila da manjedoura, com um presentinho na mão, mero pretexto para homenagear o Menino e o estômago.

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Os sinos dobram pela alegria de viver

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sinosEnquanto inauguramos neste domingo o trigésimo ano de circulação do caderno PH Revista, de O Estado do Maranhão, percebe-se nas luzes da cidade que já está inaugurada há vários dias a temporada dos sinos que – ao contrário dos que dobravam pelos mortos no célebre romance de Ernest Hemingway – batem pela euforia dos que compram ou vendem alguma coisa, neste baile do consumo que se instala no comércio.

Os diretores de criação das agências de publicidade trabalham febrilmente para ajudar o “Bom Velhinho” a gastar o nosso 13º salário, neste clima de “Gingle Bells”, animado pelas festas familiares, as trocas de presentes entre “amigos secretos” e a compulsão de celebrar-se a vida no Natal – que quer dizer exatamente isto: vida nova, a partir de um renascimento.

Os supermercados estão cheios, as lojas vendem os seus artigos como pão quente, dinheiro na mão do consumidor é pura “comichão”, para não repetirmos o verso da canção, segundo a qual “dinheiro na mão é vendaval”…

Pena que, em face do recente crescimento nas vendas do comércio, alguns empresários já se apressem em recuperar margens de lucro. Não é hora de ser “esganado”! É hora de reconquistar mercados, corações e mentes – porque o dinheirinho do povo ainda padece de visível anemia, exibindo as faces descoradas daquela efígie do Real – a figura da República – o rosto lívido como a máscara de um cadáver.

Por que cargas d’água os comerciantes não baixam as taxas de juros do crédito direto ao consumidor? Usura. Fissura pelo lucro desmedido. Mas, um dia, nosso empresariado – tão açoitado pelos impostos – vai descobrir aquela singela filosofia que move o mundo desenvolvido. Ganhar em escala. Vender muito por menos. E não pouco por mais.

O Brasil é o país dos sinais trocados. Enquanto sobra mês no final do dinheiro, o governo aumenta a sua carga tributária. E quando acontece uma tênue perspectiva de sobrar um pouquinho de dinheiro no final do mês, vem o governo e ameaça:

– Olha esse consumo aí! Vamos devagar com essa festa, ou vamos ter que aumentar a taxa de juros pra segurar a inflação!

De qualquer maneira, não deixa de ser uma evolução do “deus-mercado”: há pouco tempo o governo não caçava “consumistas”, mas “comunistas”. Ou seja, além dos sinos, há uma bela novidade na gôndola da democracia.

Quando coloca “algum” no nosso bolso – gesto raríssimo, pois o sorvedouro fiscal se move no sentido contrário – o governo logo começa a imaginar uma maneira de punir esses “vândalos consumistas”. Esses seres frívolos, que vivem tentando compensar o seu vazio existencial com uma dentadura nova, um carro semi-novo, uma viagem ao Caribe ou uma reconfortante excursão ao sabor – a compra de um quilo de camarão fresquinho, só para cultivar alguns sorrisos no almoço de domingo.

Esperemos que depois deste Natal, que tem tudo para ser o melhor dos últimos anos, a aurora do dia 1º de janeiro não traga surpresas desagradáveis, como o aumento do preço dos combustíveis, ou um certo fermento nas alíquotas dos impostos.

Todos os anos os governos – nos seus três níveis federativos – se habituaram a vir à boca de cena anunciar:

– Não haverá aumento da carga tributária!

E todos os anos aumentam as alíquotas do IR, do IPTU, do IPVA, do ICMS, do ISS e de toda essa sopa de letrinhas que engrossa a nossa desgraça tributária.

Se depender de mim – leitor, leitora – lançarei um único imposto para o Ano Novo:

– Gastem todo o 13º salário em festas e em pequenos prazeres!

Convido o gentil leitor deste caderno que hoje inaugura sua terceira década de circulação dominical a partilhar comigo esse momento de “estroinice” e de irresponsabilidade orçamentária. Feche os olhos, faça um secreto pedido – e molhe os lábios num espumante geladinho, suave como a noite que desce lentamente.

E deixe os sinos tocarem só pelo seu prazer de viver.

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