O que sempre nasce

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Março 3

A Bailarina, de Degas

1

Depois de alguns dias de vadiação, já sinto saudades das miniférias. Se soubesse que elas durariam tão pouco, teria seguido aquela falsa – mas nem por isso desprezível – receita atribuída ao mestre de Ficciones, Jorge Luis Borges, despedindo-se da vida:
– Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios, iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e comeria menos lentilhas, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários, soltaria mais pandorgas e perseguiria mais balões, cujas buchas apagaria de um sopro…
Ou seja, trocaria a vida por uma sábia alienação, posto que está cada vez mais difícil viver o duro chão da realidade. A humanidade, definitivamente, não deu certo e não há perspectivas de que venha a funcionar um dia.

2

De volta a São Luis, reencontro o Sol que deixara aqui nos trópicos. Releio o Hemingway de O Sol Também se Levanta, seja aqui ou na ensolarada Espanha, chão que aqueceu a alma dos jovens escritores dos anos 1920. Todos corriam ao encontro do Sol, para que este aquecesse suas moleiras. Lá, em terras de Castela, em Paris, na Riviera Francesa ou nas Plazas de Toro de Madrid e Sevilha.
A propósito: a novela de Papa Hemingway era muito melhor do que o filme – Agora Brilha o Sol, dirigido por Henry King – uma adaptação difícil, apesar da luminosa beleza de Ava Gardner e dos bons desempenhos de Tyrone Power e Errol Flynn.
Esse tal de “Sol” produz uma reação química no cérebro e no coração dos homens, despertando-lhes um sentimento de euforia, caracterizado por uma certa alegria inexplicável.

3

Os franceses são capazes de produzir grandes blockbusters (livros de enorme sucesso), cheios de ação, milionários. Também são craques em narrativas comerciais, como provam suas inúmeras produções refilmadas pelos americanos. Mas a França ainda é e sempre foi o centro internacional da cultura humanista. Não pode jamais querer ser americana, sob pena de sofrer um AVC, Acidente Vascular Cerebral, como acontece com o protagonista de O escafandro e a borboleta (2007), de Julian Schnabel.
O jornalista Jean-Dominique Bauby, editor da Elle, interpretado por Mathieu Amalric, está no auge: carro novo, rico, bem sucedido, invejado e pretensamente livre. Deixou a família e evita qualquer relacionamento maduro com as mulheres. Quando tem o derrame, descobre que se afastou das coisas essenciais, do amor, da responsabilidade, dos filhos, da cultura. Pelo olho esquerdo, que ainda está vivo e em movimento, ele vê o resultado do choque entre a vida estéril e o acervo acumulado que abandonou.
No fundo, tinha deixado à deriva seu próprio país ou o que há de melhor nele.

4

No filme, uma das coisas essenciais que voltam é a memória. Marcel Proust, no capítulo Combray, do livro No Caminho de Swan, escreveu: “Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis – , o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
Esses vestígios imateriais são representados, no filme, pelos espíritos, que vagam arrastando suas longas vestes e cercam o paciente terminal de visões, atenção e afeto.
Tudo some da vista, o dinheiro, o crédito, a casa hipervalorizada. Vemos então que essas evidências eram a ilusão dos nossos sentidos bem nutridos, que o sentimento de devorar o mundo todos os dias não tinha base sólida.
Em O escafandro e a borboleta, a vida desperdiçada, sem conexão com o passado, dá lugar à criação e à emoção, presas num corpo imobilizado.

5

Divagações à parte, sou do tipo de viajante para quem melhor que viajar só mesmo viajar sem compromissos de turista. Marujo de primeira viagem que chega a Paris tem de fazer a via sacra: Louvre, d’Orsay, Pompidou, Champs-Elysées, Opera, Arco do Triunfo, Montmartre, Notre Dame, torre Eiffel.
Você pode até mesmo não subir, mas terá de no mínimo de dar uma olhadela na dama de ferro.
De minha parte, acho que levei uns vinte anos para decidir-me a subir na torre. Nas minhas primeiras andanças em Paris, sempre me pareceu de uma vulgaridade extrema, um lugar comum abominável, subir na torre Eiffel. Alguns anos mais tarde, concluí que era preconceito meu. Tentei cumprir o ritual de milhões de turistas. Não deu. Havia filas de mais de duas horas em três patas da torre. Na quarta pata, destinada aos atletas que topavam subir a pé, havia pelo menos quinhentas pessoas. Claro que não subi.
Anos mais tarde, milagre dos milagres, passei por lá num dia em que as filas estavam curtas. Foi assim que, visitando Paris quase todos os anos, só depois de uns 20 subi na torre Eiffel, quase por acaso.

6

Nesta viagem de fim de inverno, mas com a Europa ainda gelada, meu descompromisso com monumentos foi total. Verdade que acabamos sempre tropeçando neles, ou Paris não seria Paris. Desta vez, dediquei-me a meu esporte predileto: a visita a livrarias, galerias de arte, bares e restaurantes.
Para a torre Eiffel só fiz um vago aceno, e isso de muito longe. Montmartre, muito rapidamente para uma prece na Sacre Coeur. La Défense, nem pensar. Não combina com o meu olhar essa Paris insólita e com ares de Nova York. D’Orsay, só para rever A Bailarina, de Degas, e Louvre, só de passagem rumo a algum boteco ou restaurante estrelado.
De cara, um choque: a P.U.F., aquela acolhedora e farta livraria da Place de la Sorbonne, com cinco andares de livros, não existe mais. Se bem que o fim de uma livraria não faz nenhum abalo na Cidade Luz. Paris oferece ainda mais de quatro centenas. Mais as FNACs, megamagazines dedicados à música, livros e eletrônicos. Em matéria de livros, CDs e DVDs, a quantidade é tal que chega a assustar o cliente. Melhor ir logo às estantes especializadas, escolher o que se quer e fugir às pressas das tentações das compras por impulso. Sem falar que livro pesa na volta.

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Quanto a bares e restaurantes, Paris parece sempre a mesma. Quando a visito, posso me dar ao luxo de eleger casas com mais de século. Lá estão, imutáveis, como se o tempo não tivesse passado, o Dôme, Deux Magots, de Flore, la Rotonde, cafés sempre charmosos mas que prefiro evitar, por demais turísticos.
Mesmo assim, entrei no Deux Magots. Era uma tarde fria e com muita sorte consegui uma mesa dentro do café. Na Brasserie Lipp, em frente ao Deux Magots, só com hora e meia de espera.
No Le Tain Bleu, passado o horário do almoço só me servem um lanche. O suntuoso restaurante dentro da estação de trem Gare de Lyon é de estilo Belle Epoque e foi construído para a Exposição Universal de 1900 ao mesmo tempo que o Grand Palais, Petit Palais e a Ponte Alexandre III.
Hoje em dia o restaurante está tombado como patrimônio histórico nacional.

8

Dura é a luta pela comida em Paris. Passo em frente ao Procope e faço uma volta no tempo. Fundado em 1686 e tido como o mais antigo café do mundo, Le Procope foi freqüentado por La Fontaine, Molière, Racine, Robespierre, Rousseau, Voltaire, Diderot, d’Alembert e demais enciclopedistas, Balzac, Victor Hugo, Verlaine, George Sand, Anatole France. Nele, Benjamin Franklin trabalhou na redação da declaração de independência dos Estados Unidos.
Numa vitrine, há um chapéu de Napoleão Bonaparte, que o teria deixado como garantia de uma dívida.
Instalado em uma antiga casa de banhos turca, tem interiores belíssimos e – surpresa! – cardápio com preços relativamente humanos.

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Não muito distante dali, na Place de Vosges, onde morou Victor Hugo, está o sempre refinado L’Ambroisie, reputado por ter um dos chefs mais estrelados de Paris, Bernard Pacaud. Mas seus padrões culinários estão em declínio. O carré de Cordeiro de leite que o Bernard prepara no Bistrô Grand Cru, em São Luís, é melhor. A decoração lembra um palazzo italiano. E os pratos mudam com as estações e pode incluir truffas brancas ou um poulard de Bresse demi-deuil (frango assado com trufas negras). Refestelei-me com esses sabores que, às vezes, me faltam em São Luís.
Faço uma lírica incursão no Bel Canto, um restaurante onde o mundo é realmente um palco. A casa possui um staff de garçons-cantores (estudantes e professores do Conservatório de Paris) que durante a refeição cantam árias de Puccini, Bellini, Rossini, Mozart, Verdi, etc. Com seu menu lírico, Le Bel Canto deve ser um dos segredos mais bem guardados de Paris.
Na rue de Rivoli, uma rápida pausa para tomar o chocolate quente do Angelina, uma delícia! A casa de chá super celebrada entre os franceses exibe, com orgulho, um de seus recordes: 300 “Mont Blanc”, a especialidade da casa à base de “merengue, crème de marron vanillée et chantilly”, servidos diariamente!
Do lado direito do Angelina fica o célebre Hotel Maurice. Há quase 200 anos Le Meurice tem sua história entrelaçada com a história da França, e com as evocações culturais e gastronômicas de Paris.
Fundado em 1835, com uma arquitetura absolutamente clássica fincada ao pé do jardim des Tuileries, no centro de Paris, o hotel ousou chamar o frenético arquiteto Philippe Starck para renovar suas áreas comuns. E, de quebra, o chef Yannick Alléno, 40 anos, que conquistou 3 estrelas do Guia Michelin para o imponente restaurante, cuja decoração foi inspirada no Salão da Paz do castelo de Versailles (que permanece em sua essência). Hoje se vêem cortinas bufantes (embora discretas) e gigantescas peças de cristais Baccarat (cuja transparência as integra com delicadeza no ambiente) em contraponto com os bronzes, mármores e afrescos originais. São o cenário para uma cozinha criativa e quase sutil, por mais que se apegue a tradições.
Aliás, há algo em comum na presença de dois artistas – o arquiteto Philippe Starck e o chef Yannick Alléno – na atual fase do hotel Le Meurice. Starck não é radicalmente futurista. Ele antes combina elementos tradicionais com interferências modernas e combinações alucinantes de elementos de várias épocas.
Alléno, longe de ser um Ferran Adrià, criador de técnicas revolucionárias, é um garimpeiro de sabores tradicionais, os quais manipula de forma extremamente habilidosa e moderna, conferindo uma delicadeza emocionante a fórmulas que estão na memória gustativa dos franceses e de boa parte da cozinha ocidental.

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É essa a Paris que me fascina. Paris e seus sabores, seus bistrôs, seus molhos que nos enfeitiçam e que nos dão tanto prazer que achamos que estamos sonhando.
Freqüento essas casas há quase três décadas e são sempre iguais. Nelas só mudam os preços e os garçons.
É de supor-se que desde séculos tenham a mesma configuração e esta é a magia das capitais européias, a sensação de transportarmo-nos para séculos passados ao entrar em um restaurante.

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O prazer de observar as ruas

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O prazer de passear pelas ruas foi identificado primeiro em francês, na virada do século XIX para o XX, e acabou gerando um personagem imortalizado por Baudelaire: o Flâneur, o flanador, aquele homem que se mistura com a multidão e vai passeando, degustando o prazer de observar as ruas.

Se eu tivesse que resumir o que seria a arte de flanar ou definir o que é um flanador, diria que é a pessoa que considera as ruas de forma diferente: elas passam (em si) a ser um espetáculo de descoberta e conhecimento de toda uma sociedade.

Foi lendo o primeiro livro de Lobo Antunes (um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo), o célebre Memória de elefante, de 1979, que acabei descobrindo quase o cheiro de uma Luanda, e, por que não?, de quase toda uma Angola arrasada pela guerra, em que as pessoas engoliam o desespero em forma de loucura.

O personagem principal, o psiquiatra, de quem toda memória sai, e com ela a prosa e a saudade de uma Lisboa, nos conta sua experiência dolorosa e sofrida pelas ruas dessa Luanda destemperada. Lobo Antunes constrói uma cidade e um personagem com forte inspiração autobiográfica, numa ópera (ou fado?) com certeza de inspiração barroca.

Na literatura urbana do Brasil, há um longo histórico de autores que trataram das ruas: Joaquim Manoel de Macedo e suas “Memórias da Rua do Ouvidor”, João do Rio, Rubem Fonseca, Machado de Assis, Marques Rebelo, Renard Perez. Mas foi lendo Flanando em Paris, de Carlinhos de Oliveira, um dos intelectuais mais populares e polêmicos do Rio de Janeiro nas décadas de 60 e 70, que encontrei um painel dos impasses e perplexidades do cidadão brasileiro, esteja em Paris, Londres, Amsterdã ou Lisboa. Sentimentos compilados durante suas andanças por essas cidades, acompanhado por artistas, dramaturgos, escritores, gigolôs e belas mulheres.

No livro estão os encontros com Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre e Fernando Sabino (a quem apresentei São Luís quando o meu olhar começava a descobrir os segredos e mistérios desta cidade). A falta de dólares, a abundância de tempo e a insaciável curiosidade. As descobertas dos sebos e dos cafés, a efervescência cultural.

Insólita e misteriosa, a Paris de Carlinhos de Oliveira não se encontra nos guias turísticos. Não se descortina dos telhados de suas antigas igrejas ou do topo da Torre Eiffel. A Paris desse cronista irreverente e inconformista está no subterrâneo, onde os olhos dos homens brilham como lâmpadas mortiças em procissão. Se revela nas observações desse porta-voz dos meandros da alma. Nas descrições da boemia, nos fragmentos de diálogos, nas reflexões sobre cultura, dinheiro, morte, solidão, amor, amizade, hipocrisia, preconceitos.

São textos construídos com humor cáustico que lançam um olhar objetivo sobre a condição humana, em tudo o que esta tem de oculto e ambíguo. São relatos que enviou do velho continente, tirados de seu caderno de andarilho, de seu espírito sensível que tenta decifrar em si próprio e nos outros o enredo desta complexa teia que é a nossa existência.

Escritor confessional por natureza, Carlinhos de Oliveira encontrou na crônica o canal ideal para exprimir toda a inquietude de seu mundo interior. Ele via, engolia, assimilava, transformava e só então escrevia. Fragmentos soluçantes, textos desesperados que não poupavam nada. Muito menos a si próprio. Tinha a autocrítica dos doutores em alma humana e sabia que viver era uma forma de colecionar prisões.

Agora, em Paris, com essas duas preciosidades literárias – Memória de elefante e Flanando em Paris – nas mãos, tento mais uma vez mergulhar na alma da cidade, cujas ruas são para mim uma questão presente, próxima. E como um flâneur, ando pelas ruas frias de Paris às vésperas da Primavera e lembro do que outrora foram as ruas de São Luís.

Em Paris, o tempo de Baudelaire admirado pelos personagens que passam, não sofreu com a fuligem do tempo. Já em São Luís, as ruas ainda precisam redescobrir sua vocação humana, no mesmo movimento em que descobrimos, no íntimo, essa vocação como um desenho ou espírito, quando já não nos lembrávamos o que exatamente significava.

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Paris não é uma cidade, é um sonho

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Março 2

1

Grandes cidades temos muitas. Nova York é a metrópole alicerçada pelo dólar, mas Paris é insuperável.
Em Paris viveram Proust, Victor Hugo, Balzac, Zola, Sartre, André Gide, o cinema nasceu em Paris. Tem a Ópera, a Bastilha com o grito de igualdade, liberdade e fraternidade.
Existe um grande passado na sua estrutura e a cidade, como certas pessoas, nos conquista no primeiro momento.

2

Na primeira semana de março, quando estava planejando rever Paris, peguei um DVD do filme Paris, eu te Amo. São dezoito pequenas histórias, ou vinhetas, como devemos dizer, onde Paris se destaca esplendorosa como ambiente.
Apenas duas vinhetas são péssimas e nada possuem ilustrando Paris, aquelas dos vampiros e um velhote que se mete sem sentido no mundo da moda que é ridículo. Mas os outros são bons de se ver, divertimento do melhor, com doses de amor sempre presentes.
Os diretores pertencem a vários países e temos até o brasileiro Walter Salles como autor de um conto.

3

Em Paris, eu te Amo, vários atores norte-americanos que gostam da capital francesa participam, como Gena Rowlands, Ben Gazzara e Nick Nolte, ao lado de francesas maravilhosas como Fanny Ardant e Juliette Binoche.
Ao trivializarem Paris, os cineastas conseguiram destacar as emoções, sensações, descobertas, medos, enfim, a humanidade dos moradores da cidade, que estão longe de confirmarem o pastiche “loiro de olho azul”: são imigrantes, traficantes, viciados, estudantes, mães de família e demais pessoas em busca de afeto – ou seja, um mosaico de habitantes do mundo todo.
Eu poderia sempre assistir ao filme como exercício de lembranças, vendo Montmartre, Pigalle, esquecendo o “banlier” ou os subúrbios distantes, modernos imensos, feios, alguns com muita miséria.
Mas aquilo não é Paris.

4

Paris tem sido uma festa para os artistas muito antes de Ernest Hemingway beber seus tragos e escrever O Sol também se levanta no café La Closerie des Lilas, em Montparnasse.
Há muito tempo Paris vem sendo o cenário dos apaixonados, amantes e dos enlouquecidos de amor.
Vários amores que se tornaram referência para os nossos, nasceram em Paris.

5

À mesa, Paris é uma elegia aos sentidos. Do sabor delicadíssimo de um marron glacé ao gosto rasgado de um steak au poivre servido com batatas soutée na maioria dos restaurantes populares.
A Paris chique não é fashion nem está na onda. Ela tem estilo.   
Coco Chanel seria a primeira a concordar com a afirmação. É dela esta frase: “A moda morre, mas o estilo permanece”.

6

E o lado verde se espalha por todos os cantos da Cidade Luz. São mais de 600 mil árvores – uma para cada quatro habitantes; 400 parques, jardins e “promenades”; uma centena de jardins decorativos; 400 canteiros sobre as ruas; e dois imensos bosques cobrindo mais de 1.700 hectares.
Com tudo isso você pode chegar a uma conclusão: Paris não é uma cidade, é um sonho.

7

E é dentro desse sonho que vago pela noite fria de Paris pensando na bailarina de Edgar Degas que vi no Museu d’Orsay. Cada qual tem um enigma que transcende meu pensamento, o supositório que algum doente terminal está recebendo em apartamento hospitalar e os ásperos monumentos que a história tece com dedos enrolados em gaze.
No museu, a moça de Degas é companheira de faraós egípcios, deusas da Índia e assombros budistas do Japão.
E dialoga com uma figura de Rembrandt, perdida entre a poeira e o chiaroscuro da pintura setecentista do holandês sutil, ou talvez com as criaturas de Monet ou Picasso, contemporâneas e mais decifráveis.

8

Se estou me lembrando das pérolas da visita ao Museu d’Orsay, pela janela do hotel pressinto Paris crescendo dentro da noite que acende e apaga.
Enquanto no Brasil as cidades estão desonradas pelo painel onde se escreve a imutável tolerância com a politicalha generalizada, Paris é tradição e, também, desenvolvimento.
Por isso se ouve o barulho dos guindastes que transportam materiais de construção em meio ao boom de investimentos privados e públicos.

9

Esta noite tem para mim um encanto especial. Tem a bailarina de Degas que se dilui em um rosto de pincéis de sombras, mas isso não chega a ser um protesto. Ela está orgulhosa de morar definitivamente em Paris.
Ao mesmo tempo em que se destroem templos de arte em cidades cucarachas do Brasil, no processo de erupção de supermercados ou igrejas suburbanamente universais, um simples projeto de área de cinema e centro cultural conquista milhões de euros para massagear a criatividade humana.
A bailarina de Degas dança, dança e dança alegremente em Paris.

10

E com o coração inundado de beleza, rompo a aurora, penso em raptar uma bailarina de Degas e saio a caminhar pelas ruas orvalhadas de Paris amanhecida. E sinto frio.

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