Em Nova York com Sarney e Diana Ross

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NY_mirante_comDe volta a São Luís, quero escrever direto e pouco como um gesto. Quero escrever sem subterfúgios como quem prepara o livro do dever e do haver. Quero escrever direto como o riso do homem velho que vi na esquina, braços em ascensão, aquele louco varrido com a vassoura da alucinação.
Quero apreender o estilo do temporal que caiu sobre mim na Sexta Avenida, em Nova York.
Lá, galos não cantam nos quintais da vizinhança. Meu vizinho é este ar umedecido decorado por nuvens alongadas como os vasos lécitos gregos em que eram guardados perfumes.
Quero escrever direto como quem decide a hora de ir para a cama ou quem apanha um livro na estante. Tudo são gestos.
Emily Dickinson escrevia em linha reta. A beleza não se faz, ela é.
Aprendi a síntese. Foi longo o aprendizado. Quero ser direto como o sim e o não.

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Nessa volta à mais efervescente megalópole do mundo reencontrei uma Nova York sempre em movimento. Ora eram os néons que nunca apagam, as ruas que nunca (ou quase nunca) estão vazias, ou até mesmo gente que simplesmente vagueia por elas.
Nova York é uma tela pintada de táxis amarelos e néons multicolores em cada esquina, uma mescla de cores, que nunca um pintor teve a ousadia de criar. A cidade é uma pintura, cujos traços mostram uma agressividade celestial, de algo que o Homem sonhou, e Deus o ajudou a criar!.
Houve uma noite de Manhattan em que falamos sobre o destino gravado em nossas mãos de veludo púrpura. São Luís estava tão longe quanto um padre rezando missa na igreja do Desterro. Antes, o pecado morava ao lado.
De pássaros, caixas, anéis, olhos, flores, flechas disparadas, estrelas e sortilégios são feitos os sonhos púrpura de nossas mãos. Como a noite gasta que ficou nos olhos cegos de Jorge Luís Borges, São Luís era, naquele instante em que meus olhos se abriam para a paisagem única do Central Park, essa visão exaurida que persistia apenas fraturada.

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No apartamento de Salwa Aboud Smith, histórias de vida foram passadas a limpo. Champagne transbordava nas flutes. Salmão, caviar e blinis enfeitavam as bandejas. Requintes de quem mora em Boston e mantém um refúgio na Big Aple só para receber os amigos.
Mistura de memória e desejo aviva raízes agônicas. No mesmo espaço, brasileiros, americanos, noruegueses. Delírios de conversas no salão e uma grande colisão de palavras. Confusão de Torre de Babel. Relembranças da São Luís dos anos 60.
Nada existe sem uma razão, dizia Leibniz. Por alguns instantes fiquei debruçado sobre Virginia Woolf, que fala sobre personalidades triviais decompondo-se na eternidade da impressão dos jornais.

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O som do saxofone de Paul Desmond inundou a minha manhã em Nova York. O sol, ali, era tão flamejante como na praia do Calhau, em São Luís. Olhei atentamente os cogumelos servidos no restaurante Le Cirque. Cogumelos e ervas suscitam pensamentos – disse-me Fides, olhando para o marido Erick Ostbye. Quanto mais velhos somos mais vulneráveis ficamos às emoções da volta ao passado – arrematou o artista plástico Erick Vittorino.
Quem passa por Nova York, mesmo por uma semana, sente na pele a carga da energia pipocante que move a cidade em cada minuto do dia.
Ali, multidões de turistas misturados aos mais exóticos exemplares de cada parte do planeta, infinidade de sinais, vitrines, portas abertas para milhares de opções em todas as áreas da curiosidade humana, fachadas, concreto, vidro, muito aço, buzinas e sirenes.
Na saída do Le Cirque (agora na Rua 58) o reencontro com a mineira Alessandra e seu marido Michael Bush. Falamos de viagens. Para eles o dilema: Atenas ou Paris? Qualquer lugar na Europa sempre vale a pena.
Despeço-me pensando com Robert Louis Stevenson: “De minha parte, viajo não para ir para qualquer lugar, mas para ir. Viajo pelo interesse da viagem. A grande coisa é ir.”

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Nova York é a cidade que dita as modas nas finanças e na cultura dos Estados Unidos. Não há metrópole tão influente no mundo. Só Londres, na era vitoriana, ou Paris, na belle époque, usufruíram tanto prestígio.
Há mais de três anos radicado em Nova York, o empresário maranhense Antonio Cordeiro Filho vive um tórrido romance com a brasileira, quase novaiorquina, Diana Engel. Na Madison Avenue, o casal me amarra com um cinto da Hermès. É um regalo pelo aniversário, que comemoramos antes, com um vinho de honra no Bar Bouloud, do lendário Daniel Boulud.
Nova York está sempre em movimento. Ora são os néons que nunca se apagam, as ruas que nunca (ou quase nunca) estão vazias, ou até mesmo gente que vagueia pelas ruas da cidade.
“Viver em Nova York é viver a experiência fantástica de conhecer uma cidade de que toda a gente fala. É estar num lugar que se ama ou se odeia”, arremata Cordeiro, a caminho de sua casa, no condado do Bronx.
A magnitude da cidade passa principalmente pela luz, cor e energia que é, no final de contas, o cartão de visita para quem gosta da confusão normal de uma grande metrópole.

MAIO_Le_Bernardin_Chef_Eric_Ripert

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Quarta-feira, 19 de maio de 2010. Passaram-se 9 anos e novamente estou em Nova York. Canto com Frank Sinatra “Come fly Away”. “Eu estou planando em um céu bonito,/ um dia incrivelmente claro/ Continue/ Nas suas doces canções de ninar/ Venha e voe comigo”.
Cercado de amigos, no restaurante Le Bernardin, se me perguntassem sobre o que é mudar de idade eu saberia o que era, mas não saberia dizer, porque existem coisas que a palavra não dá conta. Apenas diria “Venha e voe comigo”.
Nova idade é tempo vivido. E tempo, esse senhor tão bonito, não cabe em nenhuma das três palavras que inventamos para tentarmos falar dele: o passado, o presente, o futuro, a não ser como taxonomia de coisas que acreditamos descrever, no máximo.
O tempo que vivemos pode ser a imagem móvel da eternidade imóvel, de que nos fala Platão. Mas, para o poeta Cazuza, o tempo não pára.
E foi para celebrar esse tempo novo que estava se inaugurando em minha vida que me reuni com amigos na mais poderosa cidade do mundo.
No Le Bernardin, o Chef Eric Ripert (foto) continua a definir padrões inigualáveis com seu paraíso piscatório, uma parceira perfeita para uma confraternização de amigos.
Atravesso o asfalto, inoculado de pequenos cristais que brilham ao sol das três horas da tarde, como uma pessoa que retira do centro da mesa uma posta de peixe prateado.

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Como tâmaras, recordo a queda do Império Romano depois de mais de mil anos de devaneios de que tudo é para sempre, como os diamantes, e ignoro tramas. Toda trama, esse sombrio poço, perde-se com a distância do Brasil.
Folheio esquecimentos e entrevejo o brilho furta-cor do besouro (suas asas anteriores são córneas) que anda, antenas ligadas entre os olhos e a fronte, pela calçada lateral do Central Park.
No Radio City Music Hall um encontro com a voz de Diana Ross. A mulher não parece ter envelhecido. É toda energia. Sua voz continua a mesma e ouvir milhares de pessoas cantando as músicas dela em uníssono é um sentimento que não pode ser descrito, mas se pudesse uma palavra que vem à mente é “incrível!”
Depois de 13 álbuns top 10 e de cinco décadas de música pop – a sua música tornou-se o som da América jovem nos anos 60 –, Ross ainda sorri com hits como The Supremes, sua voz quase inalterada e o rosto com um ar escovado.
Nomeada tutora dos filhos de Michael Jackson, Ross se rendeu à memória dele, cuja imagem gigante surgiu no telão, e cantou “You Are Not Alone”. “Se você precisar de mim, me ligue”, ela aconselhou a platéia, antes de deixar o palco para a mudança de seu vestido final, cor de prata.
Mas o que ficou marcado na minha memória foi a voz eterna de uma verdadeira lenda da música cantando a trilha sonora de nossas vidas.

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Nova York, a cidade que nunca dorme

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1

Quem já foi a Nova York sempre quer voltar. Quem não foi sonha um dia conhecer. A meca do cinema, da literatura, do consumo e dos negócios frenéticos, dos bairros charmosos e da arte é tudo aquilo que se viu, leu, imaginou ou fantasiou.
Mas é sempre e incrivelmente surpreendente.
Há nove anos não ia a Nova York. Sentia medo de testemunhar a ânsia vã da cidade sem as Torres Gêmeas. Três meses antes da tragédia eu estive lá. E do observatório do último andar senti a sensação de que estava, literalmente, numa janela aberta para o mundo. E para o mais colossal espetáculo da Terra.

2

Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta desse acontecimento surpreendente que é Nova York à noite. Esta cidade resistiu a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que tentaram descrevê-la, copiá-la.
E conserva o frescor, o inesperado, a surpresa. Na voz de Frank Sinatra, New York é New York, a cidade que nunca dorme.
De que cidade você está vindo? De São Luís ou de Paris? Não me lembro. Recordo apenas ter lido O Jovem Audaz no Trapézio Voador, de William Saroyan.
Conversas sobre o fim de tudo, de Roma e sim da Babilônia, deslizando como um réptil em abstração.
Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto exercito-me atravessando a pé a 5ª Avenida.
Aqui, percorro as memórias errantes de Jim Dine. O artista pop que saiu de Ohio, estudou em Boston e começou a construir, construindo-se, com a utilização de instrumento de mídia.
Sinto vontade de vestir o paletó pintado de verde de Dine. Temos talvez o mesmo número de paletó.
Ligação arbitrária com o mistério dos pigmentos duradouros da frase de Nabokov em que o escritor pensa também em bisões extintos e anjos, além do refúgio da arte.

3

Quando visitei Nova York, pela primeira vez, há muitos anos, ali era o Birdland. Era um nobre pedaço de Times Square. Ouvi o trompetista Maynard Ferguson e o saxofonista Cannonball Adderley.
Tudo ali era música, bruma de cigarros, tilintar de copos.
A legenda estava em pé, muito embora aqueles fossem os últimos dias do clube jazzístico naquele lugar.
Reapareceria em Greenwich Village.
O Birdland era uma espécie de Teatro Apollo da mid town. Na up town, no Harlem, Billie Holiday cantava suicidando-se.
Personagens de tempos heróicos parecem velhos fantasmas que reaparecem, na memória enlutada, como se estivessem expiando as próprias culpas.

4

Paro diante da fonte do Hotel Plaza. Existem lá dentro candelabros em que hóspedes mais experientes praticam acrobacias. Umas sexuais, outras de investimentos em Wall Street.
Enquanto atuam, as pessoas refletem-se nos cristais. Gostam de se ver espelhadas enquanto praticam a dispensável aventura no ar. Não lhes dou importância.
O que me importa é imaginar Zelda, mulher de F. Scott Fitzgerald, saindo nua da flor das águas da fonte. Naquele tempo as mulheres ainda não raspavam os pêlos pubianos para ir à praia ou tomar banho defronte ao Hotel Plaza.
Somente por esse detalhe valeria a pena ver de novo.

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Deste final de primavera em Nova York colho o tempo amável e a visão dos peitos retardatários que as moças deixam balouçar espetando as primeiras blusas leves da temporada.
Sensuais nestes primórdios do verão são a atmosfera e as mamas.
Sensual é a voz rouca de Billie Holiday cantando Fine and Mellow em estação de rádio apunhalada pela estática. Ou com aquela orquídea colocada sobre a orelha direita enquanto manda Speak Low.
Leio em biografia que Orson Welles namorou a moça que nasceu prostituída em Eleanora Fagan, Baltimore.
Sinto mais inveja de Welles por Cidadão Kane e por Billie Holiday do que por Rita Hayworth.
Nunca houve uma mulher como Gilda? Claro que sim. Billie Holiday no seu aparato de autodevastação.

6

Na elegante manhã do breakfast no restaurante do hotel boutique Night, sou eu com certeza a única pessoa a saber que o pianista Thelonius Monk toca Round Midnight.
A música da gravação inunda o ambiente de mesas clean.
O passado mora ao lado. Subo a escada de um velho prédio. E minha emoção esboça desenhos tão transitivos como esta viagem em que revejo velhas pedras e ouço, música antiga, Bye, Bye, Black Bird, gravada por John Coltrane e Miles Davis. Os dois estão mortos.
Deslizo os dedos pelo corrimão. Apalpo a madeira como se apalpasse a vida. É primavera. Quase verão. Tempo de carícias entre as árvores do Central Park.

7

Ficar só em Nova York é algo que não me incomoda. Na verdade, diverte-me. Às vezes serve-me até como alento de uma vida obscura emoldurada por umas poucas pessoas que amo e muitas outras especialistas em acrobacias.
A maioria do mundo é composta de indivíduos voadores, praticando saltos no escuro, mesmo no claro, como os trapezistas do Cirque de Soleil.
Prefiro, entretanto, a solidão, em restaurante dos anos 40, do quadro de Edward Hopper em que aparecem duas mulheres em primeiro plano, dentro do realismo americano onde contrastam as grandes manchas escuras do ambiente com as lâminas de luz coadas lá fora.
Lembro-me freqüentemente de Hopper, quando me encontro só em Nova York, ninguém para abrir portas trancadas, apenas reticências despejadas numa lata de ervilhas.

8

Manhã mal raiada em Nova York. Penso em quadros cósmicos de René Magritte e Paul Devaux. Surpreende-me ver na pista do aeroporto um avião todo branco. Tudo seria banal não fosse o fato de que ele se prepara para levantar vôo sem turbinas.
Pássaro sem asas, disse de mim para comigo. Cão sem plumas, avisou-me o poeta. Mulher sem peitos, surpreendeu-me, constrangido, o voyeur.
Penso mais, como não haveria de pensar, se acordei tão cedo e ainda estou envolto em pesadelos de paisagens lunares para realizar o distante trajeto entre Nova York e São Paulo?
Aguarda-me na verdade aquele avião branco, sem turbinas, para me levar em seu bojo como um passageiro absurdo, o fantasma da ópera.

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No aeroporto Kennedy, homens tristes transitam levando bagagens em carrinhos que parecem cavalos-marinhos adormecidos.
Um japonês tira fotografia do neto. Clarão de bomba de Hiroxima dentro do salão. Enquanto isso, desfilam mulheres de coxas de fora. Sapatos altos apreciam a vertigem das alturas e a sugestão da libidinagem.
Olho as coxas das mulheres. Olho as bainhas de minhas calças jeans. Estão manchadas de tinta branca. Gosto dessas imperfeições. O mundo é imperfeito.

10

Dentro do avião, converso com meus botões. As mulheres deveriam embarcar de camisola para atravessar oceanos. Sem calcinhas. Assim, não precisariam tirá-las quando fossem aos estreitos WCs para urinar nos ares.
Demora mais de dez horas a travessia sobre o Atlântico. Minhas calças jeans são confortáveis, mas eu preferiria estar de pijama.
Uma noite passada em avião equivale a uma noite em lugar algum. Morremos todos por uma noite os que viajam e fazem longas travessias. As mulheres sem camisolas e calcinhas e os homens com suas calças jeans manchadas de imperfeições.

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