Em Lisboa, uma aceno para Saramago

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O avião estava prestes a cair. Lá dentro, entre os passageiros, estava o escritor brasileiro Jorge Amado. No momento em que todos se agitavam com medo de morrer pediu os jornais à sua mulher. “Estamos prestes a morrer e você quer ler os jornais?”, surpreendeu-se Zélia Gattai. Jorge Amado queria morrer informado sobre o que se passava no mundo. Foi esta a história com que Pilar del Río prestou a homenagem final ao marido, no discurso que fez na antecâmara do crematório, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
“E tu, Saramago, hoje ficas a saber”, continuou Pilar, agitando as mãos. “O que se passa no mundo é que todos os meios de comunicação falam de ti” e dizem que morreu um homem bom e honesto, um bom escritor, um ser humano excepcional, um lutador. “E nós não temos o direito de chorar, de derramar lágrimas, porque somos os privilegiados que te conheceram. Que chorem os milhões de pessoas que não tiveram a sorte de passar contigo os momentos de vida.”
Único prêmio Nobel de Literatura de língua portuguesa, o escritor José Saramago, deixa também entre seus legados uma ligação estreita com o Brasil, onde tinha amigos e leitores, e especialmente com o Maranhão, estado que visitou no final dos anos 1980 para conhecer São Luís e Alcântara.
Há mortes que nos afetam de modo especial. No caso de José Saramago, pela lucidez que ele emprestou à civilização. O fato de ter sido claramente ateu e comunista até o derradeiro minuto faz com que o abominem pessoas que nunca leram a sua obra, como se Literatura fosse panfleto político, ideológico ou religioso e com ele pudesse confundir-se. E como se um intelectual não pudesse ter opiniões próprias, divergentes do senso comum. Saramago propõe questões que muitas vezes abalam as certezas pétreas, e isto muita gente não consegue suportar.
Mas não é apenas esse pensador cristalino e retilíneo que se apaga com a morte anunciada no último dia 18. Morre também um dos mais importantes escritores da língua de Camões no século 20, reconhecido como tal pela imensa legião de seus leitores e pela Fundação Nobel, que lhe outorgou o Prêmio de Literatura de 1998.
Confesso que fiquei triste, mas reconfortado ao mesmo tempo. Por estar em Lisboa e poder acenar, em gesto de despedida, para Saramago. Sei que era ateu, sei que era ácido em suas críticas, sei que parecia uma pessoa inacessível do alto de sua grandeza, mas também sei que tive a honra de acompanhá-lo quando veio ao Maranhão conhecer as belezas e os monumentos históricos de nossa terra. E, mais tarde, conheci também a sua generosidade, ao ser recebido por ele em Lisboa, quando dividiu comigo sabores e emoções no seu restaurante preferido – O Farta Brutos –, em retribuição ao carinho que recebeu dos maranhenses.
Morreu um cara coerente, morreu um Quixote, como chegaram a dizer, mas pra mim, para além de tantos elogios, muitos dos quais feitos apenas pela força do hábito e de uma certa morbidez dos meios de comunicação que são obrigados a noticiar o fato, morreu sim, um pouco da nossa consciência, um pouco da nossa capacidade de contestar a hipocrisia desse mundo hostil que premia a força das armas em lugar do diálogo franco e responsável.
Saramago ficou em cada um de nós. Ele que era ateu, nos deixou ao menos pensar na louca vontade de beatificá-lo, de santificá-lo, mas não como se faz na santa madre igreja, mas no altar puro e nobre de nossos corações.

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Salgado Maranhão: o dono do Rio e da poesia

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Foi uma grande noite da palavra: da grande diversidade da palavra – falada, escrita e cantada, regada a bons papos, gurus descontraídos de muitas tribos, mulheres bonitas e o discreto e envenenado glamour carioca.

No centro da epifania, coube ao poeta Salgado Maranhão ser o catalizador da festa da poesia realizada na noite quarta-feira, 9 de junho, no Espaço Cultural Finep, debruçado sobre a praia do Flamengo no Rio de Janeiro. Apesar da discreta ressaca, lá fora, o mar era só poesia.

Salgado autografava “A Cor da Palavra”, reunião de seus sete livros de poemas, em caprichada edição da Imago Editora / Biblioteca Nacional.

Vestindo um blazer de veludo azul, anfitrionava convidados e amigos em noite badalada que incluiu exposição iconográfica (produção do poeta Carlos Dimuro) sobre o autor e a obra, com direito a canja declamatória de Elba Ramalho e Zézé Motta, que leram alguns poemas seus, e performances musicais dos cantores Ronaldo Motta, Bia Mello, Patrícia Mellodi e Mariana Baltar, já que coabitam em sua lírica o poeta e o letrista, multiplicando sons e parcerias. Ave, palavra!

Concorrido, o metro quadrado do espaço, fervilhava em densidade literária e artística. Notavam-se dentre muitos os poetas Ferreira Gullar (com Claudia Ahimsa), Carlos Nejar (com Elsa), Ivan Junqueira (com Cecília Costa), Antônio Carlos Secchin, Geraldo Carneiro, o romancista Antônio Torres, o ensaísta Silviano Santiago e o filósofo Muniz Sodré, presidente da Biblioteca Nacional.

O poeta Luiz Augusto Cassas no meio do evento, foi seduzido pelo editor Eduardo Salomão, e saíram para jantar enquanto o poeta Antônio Cícero adentrava o recinto e lá ficou até o fim da festa. Múltiplas gerações se revezavam, como mestre da Bossa Nova João Donato, o jornalista Ricardo Cravo Albin, Antônio Carlos Miguel e, ainda, as cantoras Flávia Bittencourt (residindo no Rio), que foi muito aplaudida em sua apresentação.

Precedido de ampla divulgação na imprensa carioca o acontecimento literário e cultural, revelou a capacidade de mobilização e de reconhecimento de Salgado Maranhão.

Exibindo tríplice nacionalidade lírica e civil: a maranhense, a piauiense e a carioca, já que nasceu em Caxias onde permaneceu até seus quinze anos, estudou em Teresina até aos vinte, vindo a fixar-se definitivamente no Rio em meados da década de setenta. Sua poesia é atravessada por um sopro de beleza e esperança, cuja voz poderosa e solidária abre-se à celebração e à dor dos tempos.

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Saramago e o pessimismo

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Saramago

No meu último encontro com José Saramago, em Lisboa, o Nobel de Literatura declarou-se um “ser insular” e um “desterrado” de continentes onde a democracia começava a definhar.

O autor de “Ensaio sobre a Cegueira” e outros 15 romances manifestava seu pessimismo sobre o futuro da democracia no mundo.

Lera na revista Foreign Affairs que as potências do G-7 protestavam contra o “grampo universal, via satélites-espiões”.

Os EUA estão grampeando os chefes de Estado do mundo em suas conversas transcontinentais. “Meu colega George Orwell tinha razão. O Grande Irmão existe”.

 

Censura e Lanzarote

A censura a seu “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, por autoridades portuguesas – ato infeliz de um obscuro Secretário de Cultura, Souza Lara –, determinara o auto-exílio na Ilha de Lanzarote, nas Canárias espanholas. Lugar eleito pela sevilhana Pilar del Río, que lhe era 28 anos mais jovem e que lhe arrebatara o coração, agora pulverizado em cinzas na nativa Azinhaga.

Nas Canárias, “recriou o Portugal de que gostava”.

Depois de visitar Alcântara, no Maranhão, Saramago, que viajou ao meu lado num velho Bandeirantes da FAB, disse-me que queria voltar um dia, com Pilar e mais livre, para desfrutar da bela cidade-monumento.

– Esta é a cidade ideal para se viver na velhice – disse.

 

Camões e Shakespeare

O autor de “Caim”, último romance, manifestou desconforto com os rumos que tomava o patrimônio “traído” da língua compartilhada por portugueses e brasileiros.

O Português estava mesmo sendo “esbarrondado” (desmontado) pelo internetês e pelo inglês predatório.

“Agora mesmo, no Rio – contou –, pedi do quarto de hotel que fechassem minha conta e me responderam num anglicismo lamentável: vamos checar”…

– Ai, Jesus! Camões não deve nada a Shakespeare!

 

 

Poema à boca fechada

Não direi:

Que o silêncio me sufoca e amordaça.

Calado estou, calado ficarei,

Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,

Se represam, cisterna de águas mortas,

Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vaza de fundo em que há raízes tortas.

 

Não direi:

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,

Palavras que não digam quanto sei

Neste retiro em que me não conhecem.

 

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,

Nem só animais boiam, mortos, medos,

Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam

No negro poço de onde sobem dedos.

 

Só direi,

Crispadamente recolhido e mudo,

Que quem se cala quando me calei

Não poderá morrer sem dizer tudo.

(De “Os Poemas Possíveis”, 1966)

 

“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. (José Saramago)

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Saramago e as intermitências da morte

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“Não há nada no mundo mais nu que um esqueleto”, escreve José Saramago diante da representação tradicional da morte. Só mesmo um grande romancista para desnudar ainda mais a terrível figura.

Apesar da fatalidade, a morte também tem seus caprichos. E foi nela que o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel da Literatura buscou o material para seu romance As intermitências da morte.

Cansada de ser detestada pela humanidade, a ossuda resolve suspender suas atividades. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

Ao fim e ao cabo, a própria morte é o personagem principal desta “ainda que certa, inverídica história sobre as intermitências da morte”.

O livro faz parte do tipo de literatura que nos deixa inquietos, no faz refletir, acaba com nossas certezas. Devemos nos preocupar com a morte ou o que vem depois dela? Em vez de pensar somente nela, não deveríamos viver o tempo presente, aproveitando nossa vida na Terra? José Saramago nos mostra que a morte é, paradoxalmente, parte da vida e não passagem para outra. Ateu, acredita que as religiões se apoderam da idéia da morte para existirem.

Certo ou não, se há outra vida depois dessa, espero que lá tenha romances tão bons como esse para ler.

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José Saramago (1922 – 2010)

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Ele estava com 87 anos. Viveu, cumpriu sua rotina, registrou seu nome em uma das páginas da história que a boa prosa escreve.

Uma lenda inglesa, reconstruída, diz que os bons escritores mortos levam seus livros não publicados em vida para a biblioteca de Lucien. Lucien é o guardião da biblioteca que fica no reino dos sonhos, o de Morpheus.

José Saramago já deve estar lá, já deve estar sabendo de nossos agradecimentos aos seus serviços de escritor para humanizar um pouco este mundo tão desvalido de princípios, de bons espíritos.

Que o seu nos ilumine com mais poesia, com qualidade de arte, com respeito e com mais atenção ao silêncio que o mundo tanto precisa.

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Troca de frivolidades num “Flagrante Delitro”

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1

É fim de primavera e ainda sopra um vento frio que vem do mar. Em Póvoa de Varzim faço um discreto aceno para Jacinto de Thormes e por onde passo sinto um cheiro de sal e a presença marcante de Eça de Queiroz, que não gostava das cidades, como deixou claro no seu libelo contra essa “criação antinatural”, em A Cidade e as Serras.
Na comparação entre as selvas – a verde e a de pedra – o monóculo do escritor só tinha olhos para a primeira:
– Na Natureza, nunca se descobriria um contorno feio ou repetido. Nunca duas folhas de hera se assemelharam na verdura ou no recorte. Na cidade, pelo contrário, todos repetem servilmente a mesma casa, todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação.

2

Na Praça do Almada, fixo os olhos no coreto, no pelourinho, nos canteiros, nas árvores e na estátua de Eça esculpida em bronze. Mas a paisagem refletida nas minhas retinas é São Luís.
Bigode cincunflexo no sobrelábio, pincez-nez no olho direito, “fato” escuro, colete cinza, sapatos impecavelmente engraxados, Eça de Queiroz passeia pela Praia Grande, observa os sobrados antigos, presta atenção em cada veneziana, cada bandeirola, cada sacada, cada “meia-porta” – casas portuguesas que a gente dos Açores plantou.
Não é miragem, nem o último brincante de bumba-meu-boi flanando pelas imediações do velho Mercado e do antigo prédio da Alfândega. Tampouco algum “músico” desterrado ali para aqueles paralelepípedos, esquadrinhando a paisagem, com movimentos rotativos de nuca, como um enérgico curió.
Sua recompensa não parece ser alpiste, mas a visão de alguma janela setecentista, beirais em rococó manuelino, algum sótão parecido com o que hospedava “Amelinha”, a desejada do padre Amaro.

3

José Maria Eça de Queirós perscruta a Rua Portugal, atirando olhares a esses novos portugueses da tropical ilha lusitana, léguas abaixo do Bojador.
Nem tenho coragem de me aproximar, com medo do ilustre visitante virar pó, retornando ao prisma temporal do qual havia escapado. E toda a estampa explodiria diante de mim, como uma bolha de sabão.
No chão, de lembrança, restariam o pincez-nez e, quem sabe, a famosa piteira.

4

Ali naquelas esquinas já encontrei Machado de Assis, num por-de-sol especialmente belo, como só São Luís é capaz de produzir.
E, certa noite, bem na confluência de Rua da Palma com a Rua de Nazaré, percebi o poeta Fernando Pessoa ordenando um “prego” – xicrinha fumegante da rubiácea, ali no Canto do Protesto.
Quem sabe não seria o momento de convidar o grande satírico, o anticlerical, o crítico de costumes, o iconoclasta, o debochado romancista de “Os Maias”, “O Primo Basílio”, “A Relíquia”, “O Crime do Padre Amaro”, “A Ilustre Casa de Ramires” e tantos outros himalaias da literatura portuguesa, para “um dedo de prosa”, uma cervejinha, com tira-gosto de camarão seco, ali no Mercado da Praia Grande?
Imagino Fernando Pessoa, olhando-nos de longe, a bordo de seu próprio pincez-nez, escrevendo depois para a quase-namorada Ofélia:
– Encontrei aqui o fantasma do Eça com um escribazinho da terra, os dois trocando frivolidades num “Flagrante Delitro”…
À distância, ainda sem ânimo para abordagem, vejo o romancista aproximar-se de uma banca de jornal, interessando-se pelas manchetes. Que visão levaria de nós, de São Luís, do Brasil?

5

Do Brasil, Eça guardava alguns desenhos mentais não muito lisonjeiros e um certo preconceito da ligeireza com que imitavam, aqui, idéias da “república positivista”, instalada assim “num estalar de dedos” e o bacharelismo de dupla descendência, tanto português quanto francês:
– No dia em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, haverá na Terra uma grande nação. Desde que acreditem que mais vale ser um brasileiro original, com a beleza de suas mulheres e esse bom café, do que resultarem todos num doutor mal traduzido do francês.
Agora, do inglês, mestre. Mas com que olhar estaria vendo aquelas manchetes recheadas de violência – ai, Jesus! – nossa São Luís já com mais de 10 homicídios por mês? O que deve fazer a Polícia para devolver nossa inocência perdida?
– Ah, a Polícia! – desdenhou o conhecido demolidor social. A Polícia é uma instituição que passeia aparatosamente em certas ruas – só para prevenir aos malfeitores que se dirige para outras…
– E as mulheres, mestre, o que achou das mulheres?
– Lindas raparigas. Mas não lhes corro atrás. Digo, como Lamartine: a mulher é igual a sombra – se correis atrás dela, foge-vos. Se fugis dela, corre atrás de vós.
Para não espantar “o pássaro”, deixei que uma perna de vento o levasse na direção das serras, posto que das cidades o gênio de “O Mandarim” decididamente não gosta.

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O domingo ou o dia do juízo final

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1

O domingo chega com a cores do juízo final da semana. Você institui seu tribunal do júri pessoal e intransferível. Os julgadores são os olhos, seus membros, o umbigo, o fígado vulnerável e a ambição malsã.
Indisfarçáveis são os infortúnios dominicais, em São Luís ou em Nova York, tanto quanto as rugas das mulheres e a ânsia de mostrar coxas, este comportamento similar ao frenesi de dar bananas do poema de Vinícius de Moraes.
Estamos rendidos na batalha diária, por nós mesmos, enquanto esperamos a segunda-feira. Aos domingos, os bombardeiros psicológicos desovam mais bombas sobre a areia movediça de nossa alma.
Nesse conflito insípido nem sangue há.

2

Proclama Shakespeare no ato II de Cymbeline: “Arma-me, audácia!”. Aos domingos as audácias são difíceis de armar as pessoas.
Domingo é dia de descanso. Convivemos apenas com nossas falácias. Paradoxalmente silenciosas.
E terminamos vencidos no primeiro instante da luta ornamentada como uma festinha de Natal fora de época.

3

Manhã de puro desencanto atiça pés do vento. Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto atravesso a ponte de Brooklyn. Existem afagos em um certo apartamento em Hans Road, Knightsbridge. Ali Eliot dizia pela voz morta: “Aqui passado e futuro estão/ Conquistados e reconciliados.”
Administro o cansaço entre uma viagem e outra. O cansaço se mede com régua ou fita métrica. Como se mede busto ou nádegas de uma mulher que já não nos interessa.
Na rua 42, certo inverno, vi pintor descer de yellow cab. Era Salvador Dali, de quem retomo obsessões. O pintor confessa, com a voz quase inaudível da morte, que organiza a catástrofe. Assim como Hiltler organizou sua descida ao Walhalla.
O artista observa que Hitler era masoquista e queria o abismo. Pretendeu e conseguiu mais. Conquistou o insulto absoluto.
Pela voz de Verlaine faz-se a síntese do sentimento da humanidade. As lágrimas inundaram meu coração como a chuva alaga a cidade.

4

Foi a última a primeira vez em que a vi. Perguntei-lhe sem perguntar em que trapézio voador voaria. Bateu as asas. Imperiosamente como quem mente ou como quem inicia a construção dos próprios olhos para olhar o mundo.
A cena se passou enquanto se projetavam cenas de Casablanca. Humphrey Bogart despedia-se de Ingrid Bergman. Como se pudesse despedir-se. Até hoje continua despedindo-se em preto-e-branco para a convulsão da inveja dos efeitos em cores.
Hoje, revejo-a na memória que se eleva ao ar como o grito das gaivotas aflitas. Pude vê-la enquanto se desvanecia no meio da rua. Tangível como um pedaço de pão.

5

Mulher no espelho. Homem no espelho. Pessoas no espelho no Guggenheim Museum de Nova York. Distorções. Paro e penso igual a Albert Camus: “O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.”
Entre as sirenes das ambulâncias e o cume dos arranha-céus da Primeira Avenida, Heráclito paira entre ruídos para dizer que não se pode andar duas vezes no mesmo rio.
Por isso nos apartamos como nos momentos em que as pétalas caem das flores.

6

Homem vestido como um monge. Vestuário verde e vinho. Quando precisa de esperança, olha o verde do tecido. Bebe quando quer beber o vinho da cor da indumentária. A cabeça pende para a direita. Está suspensa entre ombros e mãos amarelas.
Rua 53. Dentro do Museu de Arte Moderna a cabra de Picasso berra no jardim. Protesta. Quer ser um minotauro e é apenas uma cabra. Cabras dão berros e leite. Homem vestido como um monge. Pergunto-lhe sobre o desapontamento da cabra de Picasso exilada no jardim do Museu.
Mudo, entretanto, a interrogação: a que ordem religiosa o sr. pertence? “À ordem da desordem!”, responde.

7

Em nenhum momento pergunte-se sobre os limites da cidade e as divisas do seu corpo. De um lado estão as águas do East River e do outro as águas do Hudson. Você já veio como se visitasse um de seus arrabaldes, uma de suas casas.
Talvez sinta que até se despede das coisas. Da cama de seu pequeno quarto de hotel, das longas caminhadas entre downtown e a Strand, onde compra livros com a reprodução de quadros de Lucian Freud e de Edward Hoper, do sushi que busca na Rua 45, do banco de madeira do Central Park.
A cidade deu-lhe solidões inumeráveis, O Fantasma da Ópera, Le Cirque du Soleil, chá de lychee… Um dia deixará de dar. Você não estará mais aqui para receber tudo isso. Nem eu.

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