Só gênios na disputa de um título

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JUNHO_flamenco

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Domingo, acordei musical. Mas com algumas perguntas que não queriam calar. Ficar com quem no final da Copa do Mundo? Qual das laranjas iria predominar? A original ou a derivada?
A laranja holandesa era cultivada na Espanha, onde o clima é mais propício, sem tanto frio. Mas laranja é cor derivada do vermelho sanguíneo, a cor de Felipe de Espanha. Ao qual se juntou o amarelo das auroras equatoriais, das quais se tornaram afeiçoados os navegadores da Companhia das Índias Ocidentais – os holandeses da Casa de Orange, entre eles, o “laranjão” Maurício de Nassau.
É claro que eu não queria entrar na história – a oficial ou a delirante – para não produzir, aqui, um laranjal de sambas espremidos diretamente do liquidificador de Stanislaw Ponte Preta – autor daquele hilariante Samba do Crioulo Doido.

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A pergunta, direta como uma lâmina de punhal, veio do meu mordomo: “Vamos ficar com quem neste domingo?”.
Em questão de segundos, comecei a fazer perguntas para os meus botões.
Vamos ficar com as cores vivas dos girassóis de Van Gogh? Ou com luminescências em meio à escuridão, como retratam as obras-primas de Diego Velazquez?
Será que a Holanda vai atacar com a volúpia ensandecida de Van Gogh, recusando-se ser vice-campeã do mundo pela terceira vez? Entrará em campo com o espírito de ganhar a Jabulani ou sacrificar a outra orelha? Aplicará, em seus “cruzamentos”, as fases oranges de Van Gogh, mescladas aos focos de luz de Rembrandt, dando lume à Lição de Anatomia?
E os espanhóis? Vestirão os cornos de um touro miúra? Vestirão a “persona” dos seus gênios da literatura, como Cervantes – pilar da grande literatura ocidental? Ostentarão o destemor de García Lorca, o poeta que desafiou a ditadura do general Francisco Franco?
Aliás, qual dos dois moinhos sobreviverá? O moinho atacado com furor por Dom Quixote de La Mancha nas pradarias de Espanha ou o moinho da antiga província do Norte, cercado de tulipas claras, primas-irmãs dos girassóis vangoghianos?

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Os galegos da Laranja Mecânica já haviam chegado a duas finais de Copa, em 1974 e 1978 – e em ambas mereciam ter arrebatado o caneco. Revolucionaram o futebol com aquele inesquecível “futebol onipresente” – 11 laranjas brotando de todos os lugares do campo.
E, em 1978, foram vítimas da pior ditadura de uma época sinistra – nada a ver com Dom Dieguito Maradona, que, aliás, por excesso de talento e juventude, nem foi convocado pelos borzeguins do general Jorge Rafael Videla.

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Sim, embora eu tivesse acordado musical no domingo, estava com o coração dividido. Perguntei a Ernest Hemingway. Ele preferiu assistir à final como se estivesse numa Plaza de Toros, à espera dos clarins e do golpe derradeiro, a espada furando a laranja bem no meio dos olhos.
Papa foi cem por cento Espanha, claro.
Perguntei a Cees Nooteboon, talvez o escritor holandês mais conhecido (Paraíso Perdido) no mundo e ao bem-humorado autor de Amsterdam Blues, Arnon Grunberg.
Ora, os dois holandeses são “laranjas” desde criancinhas, é claro, e apostaram tudo na redenção de suas cores.

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Três e meia da tarde. Entra no gramado do Soccer City quase um século de democracia. É Nelson Mandela e a multidão delira. O jogo vai começar. Lembro os versos de um poema de Leila Diniz musicado por Milton Nascimento, “Um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”, que tem muito a ver com esta conversa: “Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ O mar é das gaivotas/ Que nele sabem voar/ Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ Por que não sabem que o mar/ É de quem sabe amar”.

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De uma coisa eu tinha certeza: a Rainha Jabulani estaria bem servida com uns ou outros gênios. Mas, sem querer substituir os atributos do polvo Paul, o grande oráculo desta Copa, cheguei a suspeitar que os espanhóis continuariam na fila…
Lá de cima, o mestre Armando Nogueira tentava soprar nos meus ouvidos o nome do novo campeão do mundo, mas as vuvuzelas tocavam tão alto que eu não conseguia escutar.

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Começou o jogo. A expectativa pela final era grande. Principalmente, porque o mundo entardeceu para amanhecer nesta segunda-feira mais  vermelho, mais “furioso”, com o futebol acrescido de uma nova escola em seu templo.
Passeio pela Holanda e avisto os vultos dos mestres da pintura Rembrandt, Vincent van Gogh e Mondrian. As tulipas, os tamancos de madeira, o queijo (especialmente Edam e Gouda) e a cerâmica de Delft. Os moinhos de vento drenando as águas para evitar que elas invadam parte das terras que ficam abaixo do nível do mar.
Na Espanha, trafego entre Cervantes e os mestres revolucionários da pintura moderna, Salvador Dali, Joan Miró e Pablo Picasso, ao lado de clássicos como Goya, El Grecco e Velázquez. Ou gênios do cinema, como Luis Buñuel, Carlos Saura e Pedro Almodóvar. Mais as touradas, a dança flamenca, o violão virtuoso de Andrés Segóvia ou de Pacco de Lucia. E a voz de José Carreras e Plácido Domingo.
Meu coração continua dividido.

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Cinco horas da tarde. Nenhum gol. O “touro” espanhol afia os chifres para o golpe fatal. No gramado, nenhum um sinal de vitória. Apenas os vultos de uma seleção formada por Goya; Segovia, Casals e Buñuel; Miró e Gaudi; De Falla, Picasso, Plácido Domingo, Cervantes (o camisa 10) e Velázquez. Quando o olhar alcança o banco de reservas, estão lá Narciso Yepes, Dali e El Greco, Carlos Saura e Almodóvar.
Pelo Soccer City ecoa a voz rouca de Garcia Lorca declamando “La Cogida y la Muerte”: “Às cinco horas da tarde./ Eram as cinco em ponto da tarde./ Um menino trouxe o lençol branco/ às cinco horas da tarde./ Uma ceira de cal já preparada/ às cinco horas da tarde./ Tudo o mais era morte, apenas morte/ às cinco horas da tarde”.
O jogo segue num compasso de dança flamenca. Na arena, os “touros” holandeses equilibram-se em seus tamancos de madeira.

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Seis horas da tarde. Hora do Ângelus, momento de devoção popular descrito com tons tocantes pelo poeta A. Manzoni: “Quando surge e quando cai o dia/ E quando o sol a meio caminho o parte/ Saúda-te o bronze, que as turbas piedosas/ Convida a louvar-te”.
A clássica Ave-Maria de Gounod ecoa das torres de igrejas católicas da Espanha. Na África do Sul, os espanhóis vivem uma experiência inédita. Conquistam um lugar para poucos e sentem o gostinho que só brasileiros, argentinos, uruguaios, alemães, italianos, franceses e ingleses já haviam sentido.

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A Espanha é o novo membro do clube, com méritos. Que siga fazendo história, já que, taticamente consolidou uma lição europeia ao mundo: três atacantes, ocupação de espaços, multiplicação de funções, disciplina e objetividade.
É o novo futebol, menos bonito, mais eficiente.

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