Histórias que contamos para saber quem somos

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Encontro marcado e, várias vezes, adiado. Revisito Buenos Aires neste outono tropical. Faz muito frio e é inevitável o meu encontro com A Cidade das Palavras, de Alberto Manguel, único livro que trouxe na minha bagagem de mão.
É claro que Manguel me remete sempre a Jorge Luis Borges. Consta que Borges, leitor compulsivo, ao cabo de seus 86 anos, próximo à morte, já cego, leitor insaciável que dizia que bibliotecas eram metáforas do paraíso, lia pelos olhos de um ainda jovem leitor de palavras e imagens, Alberto Manguel. Esse outro argentino que emprestou os olhos ao grande escritor de “Ficções” escreveu, pelo menos, dois livros muito interessantes sobre a leitura das imagens, “Uma História da Leitura” e “Lendo Imagens”.
Mas o meu encontro neste maio outonal da capital portenha é com A Cidade das Palavras. Leio de um só fôlego o livro que Alberto Manguel publicou sob um lúcido e instigante subtítulo: As histórias que contamos para saber quem somos.
Lá pelas tantas, dou de cara com um parágrafo que quase me derruba da cadeira:  “Chegamos ao mundo como criaturas inteligentes, curiosas e ávidas de instrução. É preciso tempo e esforço imensos, em termos individuais e coletivos, para embotar e por fim sufocar nossas faculdades intelectuais e estéticas, nossa percepção criativa e nosso uso da linguagem.”
Vale repetir em vulgar: é preciso empenho por parte dos interessados – igrejas, meios de comunicação, partidos políticos – para atrofiar a nossa predisposição ao aprendizado e nos transformar em idiotas!
Não se trata, é claro, de nenhuma novidade argumentativa, mas as palavras de Manguel, formuladas com uma clareza desconcertante, têm o poder de elevar a nossa percepção sobre os “mecanismos emburrecedores” que, de tão presentes no cotidiano, tornam-se invisíveis aos nossos olhos. É mais ou menos como o mito da caverna de Platão. Acostumados que estamos a apreciar as sombras projetadas nas paredes, não temos coragem ou condições de olhar para o outro lado, para a luz, e enxergar as coisas como de fato são.
Mas vamos falar de forma mais objetiva. Que mecanismos emburrecedores seriam esses a que me refiro? Considerando que Manguel aborda o problema a partir da criatividade estética, parece válido frisar que todos esses mecanismos provêm do uso utilitário da linguagem. São as prédicas dogmáticas dos religiosos, a estética superficial dos slogans publicitários e especialmente a demagogia recheada de clichês que emana dos porta-vozes de todo e qualquer governo.
Quando um discurso oferece certeza em vez de ponderações e consolo em vez de reflexão, é melhor desconfiar antes de cair de joelhos e dizer amém. Exemplos: para encontrar a salvação em Cristo, você precisa aceitar a verdadeira palavra sem questionamentos; para que o sonho de ser especial se realize conforme a propaganda na TV, é necessário comprar mercadorias de que não precisamos para viver; e para, enfim, que você se sinta membro de um país em ascensão, há a obrigatoriedade de aplaudir os discursos oficiais, mesmo que eles criem uma realidade diversa daquela que conhecemos através da experiência.
São trocas unilaterais, sem margem para mediações. Se você não aceita a verdade das religiões, o máximo que merece é ser lembrado nas orações dos justos. Se estiver fora da linha de consumo, sequer existirá perante o mundo. E se não aplaude a cantilena do poder, será chamado de elitista e preconceituoso.
Ainda que Manguel não fale em salvação, fica evidente que ele acredita que o nosso “vício” de contar e ouvir histórias seja uma resposta adequada à ação endêmica dos mecanismos emburrecedores acima referendados. Mas não qualquer tipo de história, não as que tolhem o espaço da dúvida e da ambiguidade (isso a religião, a publicidade e a política já fazem a contento), e sim as que se encontram na boa literatura, no cinema de proposta, na música e na poesia de maior inspiração.
Na Arte, enfim. Ali, e só ali, encontraremos as tais histórias que contamos para saber quem somos.

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Com a navalha no pescoço

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Dias desses, revendo um álbum de velhas fotografias, deparei-me com uma muito especial, da última visita que fiz a Alcântara – e já se vão quase vinte anos. É uma imagem de José Saramago, o grande escritor português que mais tarde viria a receber o Prêmio Nobel de Literatura, sentado na cadeira de uma antiga barbearia da velha cidade.

Acho as barbearias antigas um tema fascinante e que é pouco explorado por nossos fotógrafos. Eles bem que poderiam captar com suas lentes, nas periferias da Capital e em recantos interioranos, detalhes pitorescos de um ofício que resiste bravamente aos avanços da tecnologia.

Em contraste com os modernos salões da atualidade, equipados com máquinas e outros instrumentos sofisticados para cortar, lavar, secar, espichar, picotar, pintar, descolorir e tantas extravagâncias mais que as pessoas gostam de fazer em seus cabelos, ainda existem locais modestos, saletas com uma só cadeira, duas ou três tesouras, uma navalha afiada, cheiro de talco e água velva. São relíquias de uma época em que ir ao barbeiro era um ritual de passagem, com um atrativo muito especial: as histórias de barbearia.

Num certo período da minha adolescência, a moda entre a meninada era o corte cadete, assim como hoje algumas tribos de jovens continuam raspando completamente a cabeça para imitar ídolos do esporte ou do mundo artístico. Foi quando surgiu a máquina elétrica. Para assustar os mais ingênuos, aqueles que já haviam ingressado no serviço militar diziam que o corte de cabelo no quartel era executado de um modo muito peculiar: o barbeiro colocava um pires sobre a cabeça da vítima, encostava a maquininha acima da sua orelha e dava um pontapé na cadeira giratória.

Mas a mais marcante das minhas experiências em barbearia ocorreu num salão da rua Afonso Pena,  onde eu costumava “aparar a crina”, como se dizia naqueles tempos rudes, e raspar as penugens de barba que começavam a surgir. Meu barbeiro, ao contrário da maioria dos profissionais do ramo, costumava trabalhar em silêncio. Mas deixava escapar o hálito inconfundível de quem começara a beber nas primeiras horas da manhã. Às vezes eu tinha a impressão de que ele manejava a navalha com uma mão e com a outra se apoiava na cadeira, para não cambalear.

Certo dia, lembro-me bem, cheguei cedo ao salão. Não demorou muito e um valentão foi chegando e mandando que se afastasse o cliente que ocupava a cadeira. Em seguida, sentou-se, colocou um revólver no colo e ordenou:

– Quero fazer a barba, mas se sair uma só gota de sangue o barbeiro é um homem morto!

Ninguém se mexeu. Até que um jovem aprendiz deu um passo à frente, mergulhou o pincel na espuma e começou a executar o trabalho. Quando terminou, sem um só corte, o bandido elogiou sua coragem e o rapaz respondeu sem hesitar:

– Corajoso é o senhor. Eu estava com a navalha no seu pescoço. Se percebesse o sangue correr, terminava o serviço.

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Lembranças fragmentadas de São Luís

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Todo cidadão deve cravar dentro do peito – num pires imaginário – uma vela acesa em homenagem à São Luís, e sair hoje assim com esse altar iluminado pelas ruas e pelas praças, saudando o aniversário desta que é uma das mais belas do Brasil.

Rejuvenesça com a cidade. É dia de usar roupa nova, como nos domingos de antigamente. Se for o caso, raspe a barba e o bigode, re-pagine-se, confraternize diante do espelho com o cidadão de sorte que você é, por morar aqui, com vista para a baía de São Marcos.

Tome umazinha no boteco da esquina, em homenagem à aniversariante – e não esqueça o primeiro gole do “santo”. Cumprimente-se a si mesmo, leitor – e agradeça ao Criador por morar neste berço que Ele desenhou com tanto capricho, molhando a ponta do lápis na língua divina.

É dia de festa para todos, o regozijo está no ar, a atmosfera festiva oxigena a vida dos são-luisenses da gema e dos adventícios. Mas é ainda mais festivo para aqueles que, um dia, socorreram-se de um carrinho-de-cavalo e de seu cúmplice boleeiro para uma visita galante ao jardim da namorada – onde aterrissou um buquê atirado do “coche”, após um leve sofreio no galope.

Este 8 de Setembro é mais festivo para os que respiraram a maresia do Cais da Sagração. Ou os que receberam nos alvéolos esse ar marinho que se desprendia da Praia Grande.

É dia festivo para quem chupava um beijo-frio ali pertinho, nos inconfundíveis sabores de sorvete de chocolate, coco e ameixa do Bar do Hotel Central – e, depois, tentava imprimi-lo no lábio da namorada, a uma quadra dali, no escurinho do Cine Roxy. É data cheia para os que freqüentaram aquele cinema, porto seguro de todo pinguço.

Todos são titulares desta festa. Todos os que ajudaram a construir esta escultura à beira-mar, argamassa que hoje comemora 397 anos de vida, paixão e glória.

Saia do próprio corpo, leitor, leitora. Dizem que há técnicas mentais capazes de tornar o vivente um ser incorpóreo, metafísico, etéreo.

Transcenda no tempo até desembarcar na Rua Grande dos anos 50. Entre na confeitaria Crystal e peça uma “faixa-azul” gelada, com uma almôndega e uma pastel de camarão. Sorva o líquido gelado, caprichando no “bigode” de espuma. Se estiver acompanhado de uma criança, pague-lhe uma banana recheada e uma Cola-Jesus. Siga até uma banca do Largo do Carmo e compre o “Jornal do Dia”. Corte o cabelo e faça a barba (com velva), ali no Salão Pompeu, ao lado do Moto Bar. Flerte com sua própria mulher (hoje avó) no footing domingueiro do Palácio do Leões até a Igreja da Sé.

A São Luís descansada daquelas manhãs de verão prende-se à minha retina memorial como um “DVD de época”. Fronteira entre a velha cidade, mistura de urbe e roça – sim, do Anil ao Turu era zona rural! – e a explosão urbana que hoje a degrada, fisicamente. Lembranças fragmentadas fluem como um celulóide desgovernado, filme antigo, cheio de interrupções e luminescências.

A Fonte Maravilhosa e o refreco de quebra-pinto, o Abrigo da Praça João Lisboa – cachorro-quente do “Companheiro”, sonhos e bombas de creme. O Lusitana, restaurante que servia cozidões portugueses, mocotós, dobradinhas e bobós de camarão. Os carrinhos de cavalo. O Lord Hotel. O Hotel Ribamar. O Carnaval de Rua. Matinês do Cine Éden, na Rua Grande. Encontro dos Brotinhos, no Lítero..

“O que me lembro, tenho”, escreveu, a título de consolo, João Guimarães Rosa, o [re-inventor] da língua portuguesa. Confirmando William Shakespeare, que também era fiel à sua Stratford-on-Avon:

– Louvar o que passou, torna mais queridas as lembranças.

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Por que a elite não gosta de arte?

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O desenvolvimento das artes, infelizmente, depende muito de uma elite que seja culta, porém desprendida de valores morais e burgueses. Se não há quem invista (e quem mais pode fazer isto se não a elite?), a arte se cobre de uma invisibilidade cruel aos artistas e a seus consumidores. Os motivos para que a elite (falo da empresarial e política, muitas vezes imbricadas numa só) não querer investir ou prestigiar a arte local (ou quando vê investe apenas naquela extemporânea e fora do foco real da produção contemporânea) são vários.

O Maranhão é composto de uma das piores elites do país. Dois motivos principais (porém são inúmeros) emperram o investimento e aceitação do que se produz de bom por aqui. Primeiro, porque a elite acredita numa arte provida de “mensagem” (atribuição de um utilitarismo típico de quem está acostumado às trocas e não à entrega, como faz o artista), e, segundo, que deve ser espelho de uma realidade absoluta (desconhecendo a relativa e, conseqüentemente, ainda quer ligá-la, na maioria das vezes, a atributos morais, porém não necessariamente éticos).

É normal ouvir de senhoras e senhores da elite elogios a pinturas quase fotográficas, como se copiar a realidade (se isso fosse possível, mas é outra conversa) fosse a principal qualidade de uma obra. E isto serve também para a música, o teatro (a elite só enche o teatro se tiver ator “global”), o cinema (que para a elite deve ser naturalista), a literatura (ela não sente os experimentos de linguagem), à arquitetura (basta olhar o contorno da Ponta d’Areia para compreender) e à dança (pelo apreço que se tem ainda pela dança popular).

Há ainda um deslumbre tosco por tudo o que é “de fora”. Não sou xenófobo, mas o descompasso entre o que se investe na produção de arte desse tipo (ainda que seja interessante, o que não é o caso aqui) e a produção crítica contemporânea é absurdo.

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Um presépio do Senhor

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Há nos Lençóis Maranhenses montes de areia branca abertas em meia-lua se multiplicando infinitamente. O sol queima o meu rosto e o mundo exterior reproduz a poeira do Saara, ou o “disco de fogo” do Sinai, cenário imortalizado pelo filme Lawrence da Arábia. Entre as lagoas “Azul” e “Bonita”, desfilam por minha memória uma dúzia de “miragens”, belas mulheres bailando, singrando as dunas.

Mas os Lençóis não se limitam a essas duas lagoas. Na verdade, existem dezenas e dezenas de lagoas, bonita e azul, todas elas magníficas, sem que nada distinga uma da outra, quando nos aproximamos delas.

Descalço, sinto areia debaixo dos pés. Pés no chão, caminho pelas dunas, fazendo de conta que sou um beduíno. Do alto de uma cônica montanha de areia vislumbro a imensidão dos Lençóis e suas lagoas, presenteio-me com esta visão e “converso com as dunas”. Basta caminhar sobre elas que o som vindo do contato dos meus pés com a areia transformam-se em linguagem de resposta. Descubro, assim, que as areias “falam”.

Cumprimento dois camelos imaginários, sentindo-me o próprio Lawrence, herói das Arábias. Antes de pedir água a um terceiro, lembro-me que viaja conosco um “oásis” que mais parece um bar ambulante. Pronto. Paro para um “reabastecimento”. Sanduíche natural, loura líquida no copo, fico reparando as dunas e os corpos esculturais de belas jovens que certamente se envolvem nestas areias quando transitam por este paraíso.

As dunas dos Lençóis Maranhenses são paisagens naturais, assinadas pelo Supremo Pintor. São aquarelas pintadas pelas correntes das areias, das lagoas, pela força eólia dos ventos. Já as jovens que passam por aqui, belas em biquínis mínimos, revelam em sua quase-nudez dois hemisférios de virtudes. Ao Sul, recôncavos bem divididos. E bem no meio, ali pela região do Equador, onde não existe pecado, balança o pêndulo dos quadris – o movimento mais “subversivo” de todo o Universo.

Em verdade vos digo: poucos lugares do planeta possuirão um cenário tão bonito e um desenho mais interessante e caprichoso do que as dunas de areia dos Lençóis Maranhenses. Brancas, de uma alvura reluzente ao sol, ou de um vago amarelo rebrilhante, as dunas se espreguiçam mansamente entre as enseadas em calma. E têm inspirado poetas, prosadores e seresteiros de toda parte, que definem o lugar como um quadro que Deus pintou para sintetizar Sua concepção sobre a beleza do mundo.

Nos Lençóis Maranhenses aflora uma certeza: qualificar aquele cenário de lindo – é pouco; de fantástico, é pouco também; de mágico é ainda pouco. Aquilo é um lugar sagrado, onde cada pessoa que ali põe os pés deve ter a consciência de estar andando em coisas tão divinas quanto as páginas da Bíblia.

Diante dos nossos olhos, uma obra sagrada feita de vento, areia, água e luzes. Uma obra-prima que Deus doou ao patrimônio artístico natural do Maranhão e que é, ao mesmo tempo, a prova de Sua existência.

As dunas dos Lençóis se espreguiçam. As lagoas são sinfonias completas e bem acabadas – consonâncias perfeitas entre o mar profundo, a mata nativa e atlântica e as formações de dunas mais belas do Universo. Visitá-las comporta uma dimensão de transcendência religiosa – afinal, estas podem ter sido as primeiras imagens da Criação, aquele exato momento em que o Senhor decidiu criar a luz para presidir o dia, separando o que era Terra e o que era Água.

Espreguiço os lábios, estimulo a mente e dou de beber ao meu espírito – que se eleva sobre este novo presépio do Senhor.

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A grandeza se chama humildade

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Somerset Maugham recomendou em um de seus livros que todo juiz da eminente Corte de Old Bailey mantivesse sobre a mesa um rolo de papel higiênico, para lembrar-se permanentemente de que era tão humano quanto os acusados que ia julgar.

Recordei a sugestão ao procurar, não faz muito tempo, um figurão desta praça. Embora a consulta estivesse marcada para as quatro da tarde, ele me recebeu quando faltavam 15 para as cinco. Encontrei-o metido no imaculado avental característico da profissão. O Doutor X. estendeu-me a ponta dos dedos. Ensaiei um diálogo ameno a que o luminar contribuiu com monossílabos. Indagou direto e seco as razões de minha visita e, enquanto eu explicava, sacou uma caneta Montblanc e tomou notas num fichário ostentoso. Submeteu-me a um interrogatório recheado de preciosismos científicos e ao fim e ao cabo prescreveu-me uma batelada de exames, instruindo-me, presumido e grave, que me entendesse a respeito com sua secretária. Não sorriu uma única vez, não externou qualquer gesto de simpatia. Se eu tivesse de pintar naquele momento o retrato sem retoque da pretensão e da suficiência, não teria descoberto mais pronto e acabado modelo. O sujeito parecia absolutamente convicto de que tinha o rei na barriga. Em imediata retribuição a seus modos majestáticos, encestei no lixo, ao retirar-me, com a pontaria de um astro do basquete, a bolota de papel armada com suas requisições. Segundo inferi depois, meus males não eram sérios, tanto que continuo vivo e em excelente forma.

Ora, aconteceu que poucos dias depois, fui apresentado ao Lord Mayor of the city of London, sheriff Ian Luder. A ocasião era formal, mas em determinada altura batemos um papo de cinco minutos. O nobre inglês era a simplicidade em pessoa, apesar de correrem em suas veias rios de sangue azul.

Evoquei mais tarde uma observação de meu amigo Fernando Bicudo, sobre sua passagem pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro e, mais tarde, pelo Teatro Arthur Azevedo, em São Luís. Como eu estava querendo saber se os artistas mundialmente consagrados que se exibiram aqui eram muito cheios de si, Bicudo disparou um largo sorriso: “ – Não, PH. Um Arthur Rubinstein ou uma Aprile Millo ou um Plácido Domingos jamais bancou o importante. Os arrogantes eram sempre os medíocres”.

Conheci ao acaso, em oportunidades diversas, princesas e altas figuras da sociedade. Uma delas atendia por Princesa Dona Teresa de Orleans e Bragança. Outra, a milionária Dona Lily Marinho. E uma terceira, o bilionário indiano Ratan Tata. Todos três me trataram com polidez e cordialidade. De Dona Lily me aproximei numa convivência amável e afetuosa que dura até hoje.

Torno a rememorar neste instante o esculápio da caneta Montblanc. Só posso concluir que, se na faculdade que cursou, ensinaram noções de bom relacionamento com os pacientes, ele gazeou justo essas aulas.

Disseram-me que o Eclesiastes traz uma informação singela: o número de estultos é infinito. Já a mim ensinaram desde menino que a verdadeira grandeza se chama humildade.

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Homenagem a um amigo especial

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É quase impossível falar em morte quando se é absolutamente crente na existência de outra vida. Ou, quem sabe, da continuação desta em outro plano. Penso ser assim.

Estamos vivendo uma passagem, sabe-se lá de quantas, mas quantas forem necessárias para o nosso aperfeiçoamento, até a morada definitiva ao lado do Senhor.

Não me cumpre e não quero misturar as considerações de hoje com polêmicas. Por incrível que possa parecer, falar em fé deveria gerar unanimidade. Não é assim. Muitas pessoas julgam valorizar-se aos olhos das demais, simplesmente passando por diferentes, se dizendo descrentes. Ateus. É comum, ao final, traídos pelo subconsciente, sintetizarem: ‘Sou ateu, graças a Deus.’

Quando perco um amigo querido, as lembranças das horas vividas com ele e das lições por ele deixadas, fazem-me chorar. Pode parecer paradoxal. Talvez seja. O homem nunca estará preparado para suportar perdas, sejam elas pequenas ou grandes.

De qualquer sorte, as lágrimas lavam a alma e não contraditam a fé, a esperança de um amanhã onde nos reencontraremos no reino encantado do único Pastor. Falar de quem se foi antes de nós é redundância. Ninguém ousa falar mal de quem partiu.

Houve tempo, na redação de O ESTADO, que o telefone batia e o chamado do redator-chefe trazia-me a incumbência de escrever sobre alguém que já não estava entre nós.

Um dia destes, cultivando um velho hábito, andei manuseando folhas de arquivo. Fácil concluir. Também eu incorria no erro de todos. Escrevia linhas laudatórias repetindo as mesmas palavras. Antecipando a mesma saudade e caminhando pelas mesmas lembranças. Invariavelmente terminava dizendo ‘até logo’. Hoje sei porque.

Quem crê como eu creio em outra vida. Quem tem fé porque entende ser ela o ‘abre-te sésamo’ de um amanhã melhor, não veste a prepotência e nem se diz imortal. Imortal é o espírito.

É justamente em torno de algo que não morre que desejo situar o meu até logo a Manoel Alves Ferreira. Grande amigo. Grande empresário. Gente, em uma palavra. Não se diz de sua correção por simples homenagem a quem partiu. Porém, por justiça, por agradecimento às horas, horas e mais horas que privamos do seu discreto e agradável convívio.

Bem, a crônica vai chegando ao fim. Como quase tudo neste mundo, menos o espírito, menos a fé. Já falo no Manoel Ferreira com uma ponta de saudade e com uma lembrança, misto de tristeza e de alegria. Tristeza pela sua partida. Alegria porque ele viveu plenamente. Deixa por aqui um rastro luminoso de quem soube querer, lutar e vencer.

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Neste domingo tá faltando ele

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Confesso que eu poderia muito bem intitular minha homenagem ao Dia dos Pais com o mesmo título da composição do imortal poeta e compositor Sérgio Bittencourt, meu amigo que tão prematuramente deixou órfão o jornalismo e a música popular brasileira.

O Sérgio Bittencourt, que atendendo a um convite meu cantou “Naquela Mesa” em São Luís, poucos dias antes de morrer, compôs essa música para homenagear o seu pai Jacob Pick Bittencourt ou simplesmente Jacob do Bandolim, que também, prematuramente, aos 51 anos de idade, deixou o chorinho brasileiro a chorar para sempre.

Sérgio, que era hemofílico, morreu aos 38 anos de idade e deixou uma das mais belas mensagens de saudade e de amor sublime que um filho pode ter pelo pai. A herança deixada pelo Jacob, não se resume só nas suas canções e chorinhos; tem também, o legado de seu filho, Sérgio Bittencourt.

O Dia dos Pais que a cada ano se renova em nossos corações, aumenta mais ainda a possibilidade de podermos cantar a música do Sérgio. Pois, felizes ainda são aqueles, que podem contar com a insubstituível presença do seu pai.

Naquela mesa, naquele sofá, naquele banco de praça, naquela roda de amigos, muitos ainda podem encontrar o seu pai querido; mas, quando você o procura naquela mesa, naquele sofá, naquele banco de praça e naquela roda de amigos e não o encontrar, resta-lhe procurá-lo dentro do seu coração, dentro das suas lembranças e, saber que um dia o seu filho amado também o procurará e também não o encontrará, senão, pelas suas ações de bom pai que foi para com os seus filhos. Sempre presente, nos bons e maus momentos de nossa vida.

O meu pai era um homem simples. Sabia ler e escrever, mas não era erudito. Os diálogos entre eu e ele não foram exatamente os diálogos que os filhos das décadas de 70 e 80 deveriam ter tido com os seus pais, talvez, mais pela sua diferença de idade – quase trinta anos nos separavam – do que, pela sua dificuldade de falar dos mesmos assuntos e conhecimentos trazidos por mim da escola para casa.

Mas, de uma coisa estou certo: o seu silêncio a respeito de muitos assuntos sinalizou o meu caminho. O seu jeito humilde de ser, a sua conformação com o estado de coisas que se abateu sobre a sua vida, me fez procurar ser um homem diferente do que foi o meu pai, entretanto, a sua honradez, a sua humildade, o seu caráter, a sua honestidade e a sua bondade, serviram para me formatar enquanto filho que fui, amigo e colega que sou.

O meu pai partiu para a eternidade quando eu ainda estava na primeira juventude. Na sua sabedoria, ele jamais se levantou contra as minhas insolências; ele me entendia. O pai entendia o filho que, sabia entender o pai, melhor ainda: ambos se respeitavam. Hoje, sabemos o quanto os verdadeiros pais sofreram para fazerem seus filhos serem o que hoje somos.

Meu pai era silencioso e me amou assim quase sem dizer nada. Lembro dele por suas marcas em mim: estou falando menos, ouvindo mais, sorrio pouco, só não serei tímido como ele porque aprendi a disfarçar.

NAQUELA MESA

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre
O que é viver melhor.
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória
eu guardo e sei de cor.
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente
O que fez de manhã…
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã.
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto
Uma casa e um jardim.
Se eu soubesse quanto dói a vida
Essa dor tão doída
Não doía assim.
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala
No seu bandolim…
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele
Tá doendo em mim.
A propósito dessa letra do poeta-compositor Sérgio Bittencourt, publicada em 1974, em homenagem ao seu pai, Jacob do Bandolim, li, há algum tempo, um estudo profundo sobre ela, assinado por Gabriel Perissé, do qual fiz algumas anotações.

Como a observação de Gabriel de que as três primeiras estrofes do poema-música fazem menção àquela mesa, um objeto da casa, um elemento da mobília, que, no entanto, não só pela tríplice repetição, mas, sobretudo, pelo pronome demonstrativo aquela unido à preposição em – naquela –, surge como uma mesa especial.

E continua dizendo que “Naquela mesa”, ele é o protagonista e quem transforma aquele objeto num âmbito. Num âmbito de permanência. Senão vejamos: “Naquela mesa” ele sentava “sempre” e me dizia “sempre”… O advérbio “sempre” é o advérbio da eternidade, ainda que somente da eternidade desejada. A expressão hospitaleira “volte sempre”, a declaração de amor “eu te quero para sempre”, mesmo que relativizadas pela fugacidade da vida, têm a força da constância: todos os dias, de todos os modos e com uma só duração. Àquela mesa o pai sempre se sentava para dizer ao filho “o que é viver melhor”.

Aprendi, em mais de meio século de convivência harmoniosa e amiga com a minha família e com as famílias dos meus amigos, que a mesa é o âmbito da sabedoria. Viver melhor tem conotações socráticas, sapienciais e até mesmo místicas. A filosofia não quer ensinar a sobreviver, a vencer na vida, empreendimento próprio dos modernos manuais pragmáticos que substituíram as lições da ética clássica. O filósofo não está preocupado com o padrão de vida econômico e social, com o sucesso profissional, com o bem-estar. O status que interessa ao sábio é o que traduz o aperfeiçoamento humano em seu sentido mais radical. Viver melhor é não sofrer? Viver melhor é viver sem dor? Viver é não experimentar o fracasso?

O ser humano é perfectível. Pode melhorar sempre. Melhorar como ser humano, realizar-se integralmente como ser humano. Entre o início do desenvolvimento e a perfeição há uma escala de aperfeiçoamento, de melhoramento, mas – e essa é uma percepção interessante – sempre é possível melhorar, na medida em que concebemos um Bem Supremo que, se atingível fosse, deixaria de ser Supremo. A supremacia do Bem Absoluto consiste em ser inalcançável, mas também consiste em atrair-nos sempre para o melhor.

Naquela mesa, o pai “contava histórias que hoje na memória eu guardo e sei de cor”. A mesa é o âmbito da memória. As histórias contadas são as vivências transmitidas, na linha do viver melhor. Através dessas histórias, dessas parábolas, dessas narrativas, o pai educa o filho, e o filho aprende de cor a lição. “Hoje”, diz o autor, ele sabe de cor, ele lembra o que está em seu coração, ele guarda o seu tesouro, a sua riqueza, a sua herança. O passado está sempre presente.

Sempre naquela mesa, o pai “juntava gente e contava contente o que fez de manhã”. A mesa é o âmbito da comunhão festiva. Ele, o pai, o artista, o músico, agregava amigos, pessoas que vinham ouvir histórias, histórias de sua vida, que por mais comezinhas e recentes que fossem adquiriam a transcendência do encantamento. Ele “contava contente”, transbordando de alegria. Alegria contagiante.

A mesa, para mim, é e sempre foi o símbolo de centro espiritual, em que se distribui o alimento da sabedoria, da felicidade, do amor, da verdade entre pessoas que se querem bem. O anfitrião, ocupando lugar de destaque, é ao mesmo tempo o principal servidor, o provedor, o pai. A mesa é o altar onde o “padre”, o pai, dá-se a si mesmo como alimento.

E contando suas histórias, e partilhando suas experiências, o filho via “nos seus olhos tanto brilho que mais que seu filho [ficou] seu fã”. A pedagogia do entusiasmo: o filho experimenta o êxtase, a alegria imensa de estar ali, vendo o brilho daqueles olhos, brilho que expressa a luz interior, talvez as lágrimas da emoção sincera, mas sempre a vida em sua exuberância e generosidade. A opacidade é a rotina burocrática. O brilho é a criatividade. A mesa é o lugar privilegiado do encontro.

As estrofes seguintes contemplam o que aconteceu depois da morte do pai. O filho se queixa: “eu não sabia que doía tanto uma mesa num canto, uma casa e um jardim”. Os encontros com o pai naquela mesa, contextualizada na casa de família, cessaram, e a ausência física do pai torna dolorosas essas realidades. Os objetos podem provocar dor física se contra eles nos chocamos, ou se eles caem sobre nós, mas aqui se trata da dor mais funda, a mesma que Carlos Drummond de Andrade sentiu quando, ao olhar o retrato de sua cidade, confessou que era “apenas” um retrato pendurado na parede, mas como doía!
 
Essa dor de tudo aquilo que poderia continuar a ser e que deixou de ser. A dor da perda irreparável. A mesa, “aquela” mesa, está jogada num canto. Está vazia, deixou de ser o centro espiritual da casa, que por sua vez deixou de ser o símbolo do centro do universo, rodeada pelo “jardim”, que deixou de ser o símbolo do paraíso terrestre, centro do cosmos.

O filho, vivenciando antes a plenitude, sente-se agora desorientado, ferido, abandonado. E sua queixa se amplifica: “se eu soubesse quanto dói a vida essa dor tão doída não doía assim”. A dor de perceber que “ninguém” mais se lembra do pai, que talvez ele seja o único que realmente amou aquele homem (e por isso dele não se esquece), acrescenta-se à dor “tão doída”.

O autor do poema sente que talvez estivesse despreparado para essa dor. Se tivesse aprendido a encarar a morte como algo “natural”, não sentiria tanta dor, não perceberia o esvaziamento ontológico da mesa, não se sentiria tão órfão, não sentiria como fonte adicional de dor a ingratidão dos que usufruíram “daqueles” momentos com “aquele” homem, pois também ele saberia que “a vida é assim mesmo”, que “ninguém fica para semente”, que “a morte é lei da vida” – lugares-comuns que amenizam a dor “tão doída”.

Na última estrofe, porém, o poeta parece galgar um novo nível de consciência. Retomando o pronome demonstrativo, volta a escrever: “naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim”. A mesa volta a ser “aquela” mesa. A constatação de que nela o pai está faltando completa-se com outra: a de que a dor é um fato valioso. Somente ele tem a dor meritória de sentir saudade do pai. A saudade dói “nele”, é uma realidade introjetada, mas nem por isso menos real.

Quando o poeta Alfred Musset – que, como todos os grandes românticos, mostra-se especialmente sensível para o caráter transcendente da vida –  diz que “o homem é um aprendiz e a dor, a sua mestra”, capta, por contraste, a fraqueza filosófica dos estoicismos. Viver melhor não é viver a salvo da dor, mas aprender com a dor o sentido profundo da vida, uma vez que a vida real dói: “se eu soubesse quanto dói a vida…”

E igualmente quanto dói o verdadeiro amor, como nos versos de Vinícius de Morais, no Soneto do Maior Amor: “Louco amor meu, que quando toca, fere / E quando fere vibra, mas prefere / ferir a fenecer […].”

Agora, sim, o poeta sabe que a vida dói, e esse saber o aperfeiçoa um pouco mais. É graças a essa dor que ele pode escrever um poema como este. O filho não deixou de ouvir o pai e de vê-lo “naquela” mesa.

Quem não possui a sensibilidade para a beleza, para o valor, para a sabedoria, também não sente a dor que causa a perda (ou a sensação de perda) do que é belo, do que é valioso, do que é sábio.

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O mar está sovinando peixes

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O mar é a “estrada” que sempre esteve pronta, ao ponto de não escolher a diversificada freguesia de seu curso, na extensão de sua liquidez mansa ou enraivecida. Foi o hóspede imemorial de remotas embarcações fenícias – com suas carrancas de espantar espíritos – ou de Vikings, com seus belicosos chapéus de chifres, ou das expedições portuguesas que alargaram as esquinas do Mundo.

Tão querido é o mar por seus passageiros intemporais que a língua de Castela o transformou, carinhosamente, num substantivo feminino: “La Mar”…

Tão querida era “la mar” entre os que freqüentavam as baías da Ilha de São Luís, centenas de barcos e vapores, como se vê nas telas dos pintores maranhenses da primeira metade do século passado, cuja lembrança tem o aroma de uma nostálgica maresia.

Os antigos romantizam o tempo passado e colecionam saudades até do que era um “bom suplício”. De um velhinho que se valeu do serviço de lanchas da travessia Cais da Sagração-Ponta d’Areia, até as duas primeiras décadas da outra metade do século 20, ouvi, certa vez, murmúrios de uma “saudade” idealizada: “Era bom e era romântico atravessar a baía a bordo das lanchas num final de tarde estival, o sol se pondo por trás da Ilha dos Caranguejos…”.
Vivi em São Luís quase toda a segunda metade do século XX, um tempo em que a Lagoa da Jansen dava camarões médios e caranguejos graúdos. E a baía de São Marcos colhia várias safras de peixes – ao contrário dessas geléias de algas, esses pudins de espumas que emergem das privadas.

O mar, esse empório outrora tão generoso, anda refletindo a carranca dos tempos – e devolve ao homem o que o homem lhe impõe em ofensas químicas e em fezes.

Tão pródigo era o mar de antigamente que até um poeta amargo como Baudelaire dedicou-lhe um cantinho de seus raros afetos: “Homme libre, toujours tu chériras la mer…”.

Homem livre, sempre haverás de ser amigo do mar. E, como a criatura de Hemingway – o velho pescador Santiago – Baudelaire tratava o mar como um “substantivo feminino” (La mer…), que era como o tratavam, em espanhol, os que verdadeiramente o amavam: La mar…”

Se é mesmo mulher, o mar não tem sido dadivoso. “A Lua afeta o mar tanto quanto afeta as mulheres”, filosofava o velho Santiago. Mas mesmo um velho de fibra como aquela criatura idealizada estranharia o mar avaro e poluído de hoje.

O pescador brasileiro se parece muito com aquele antigo artesão do mar que encontrei outro dia em São José de Ribamar. Olhos fundos, fitando o mar – assim mesmo, no masculino – com uma cava expressão de desencanto e orfandade. Aquele velho pescador anda desiludido com o seu antigo supermercado. O anzol do do maranhense tem mergulhado sem nenhuma esperança – e emerge virgem, como um espinho de interrogação.

Um sortido empório. Era assim que o pescador da Ilha de São Luís enxergava o “seu” mar há uns 30, 40 anos. Uma feira de nutrientes. Peixes de todos os tamanhos. Camarões, tainhas, peixe-pedra. Um atol repleto de peixes simples e nobres. Dignos. Robalo, pargos, camurupim, garoupa, pescada amarela, mas igualmente peixinhos triviais como peixe-serra, camurim, pescadinha, paru, anchova, curvina, manjuva.

Peixe na rede, antigamente, era um “acontecimento”. O estertor desses vertebrados aquáticos – os primeiros “alimentos” do homem, desde o Paraíso – propiciava um ritual à beira-mar, em meio a um balé agônico, com um cheiro de maresia temperado de areia.

A roda de curiosos fechava o anel em torno da rede, o balcão de negócios se instalava a preços sensatos, que pescador não é tubarão. O “atravessador” é que estragou tudo. E ainda sobravam umas sardinhas para forrar o estômago dos menos abonados, depois de passadas na frigideira e devoradas sob a alcunha de “defesa”. A defesa do pobre – e o remédio para apascentar a sua fome abissal.

Hoje os mares (e as lagoas) parecem meio mortos. Mares fechados, rugosos, avaros, sovinas.

O espetáculo da rede é agora um ritual quase raro, a chegada das canoas é uma procissão de silêncio e resignação. Os poucos peixes-pedra não pagam o trabalho de lançar a rede, muito menos de puxá-la com todos aqueles objetos poluentes e não-degradáveis. Porcarias extraídas das águas, como divertículos marinhos, “furúnculos” dessa nova era. Um pneu rasgado, a sola desbeiçada de um Vulcabrás, mais parecendo um linguado vítima de uma trombose. Mais um galão de tinta, entupido de algas. Ou o tijolo verde de limo, excretado pelo polvo da construção civil.

O velho pescador de Ribamar, que neste fim de semana participa pela “última vez” do Festival do Peixe-Pedra, não reclama da sorte, mas sabe que tem que mudar de vida. A pesca “não tá dando nem pra mesa”. O peixe-pedra e os outros peixes de estação parecem ter se evadido para o alto mar. Há muitas luas ele não pesca um “daqueles” peixes de encher o barco de orgulho, tal é a escassez, no puçá, na tarrafa, na canoa de pesca.

Como o seu colega da Literatura, o velho de Ribamar sente-se na obrigação de desafiar o mar – ou abandonar a profissão. “Chega de morrer como peixe – sem ar, as guelras pulsando penosamente, como um vertebrado de escamas”.

Se o mar continuar sonegando peixe, o velho vai vender a canoa e comprar uma carrocinha de vender cachorro-quente. Ou quem sabe, vai vender pitombas na Praça João Lisboa, como sugeriu, certa vez, Joaquim Itapary.

Antes, porém, vai consultar o Sebrae, para uma “pesquisa de mercado”.

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