À maneira de Borges… ou não

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Se eu vivesse outra vez, trataria de ganhar mais dinheiro para não precisar jamais dele. Cuidaria de ficar longe do Brasil e das pessoas, principalmente daquelas que se devotam ao ódio e à vulgaridade, às trevas e à inveja, e riem de hábito como as hienas, e eventualmente mordem como os cães pouco afetuosos.

Tentaria gostar de praias ensolaradas ao contrário de preferí-las frias e sem banhistas, como nos filmes suecos de Ingmar Bergman.

Perderia tempo jogando baralho, tivesse ou não trunfos na mão, para ter a certeza de que nada é mais urgente do que a falta de urgência.

Procuraria amar uma quantidade maior de pessoas do que seria capaz, a fim de restar cansado para ouvir o fôlego das plantas sobre relvas e rastrear o hálito das flores.

Procuraria esconder a tíbia vontade de ficar só entre cadeiras antigas, memórias que se esticam como elastômeros e velhos chinelos egressos dos pés dos espíritos.

Dispensaria todos os veículos para andar somente a pé e urdiria meu ócio até que eu próprio não me reconhecesse.

Felizmente, não terei outra vida.

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O pensamento do poeta Fernando Pessoa

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De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos.

A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la.

Tudo em nós está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós..

A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação.

Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o peixe e Oscar Wilde.

Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento coletivo é estúpido porque é coletivo: nada passa as barreiras do coletivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo.

A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensibilidade como o obstáculo para a energia.

Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.

Toda a poesia – e a canção é uma poesia ajudada – reflete o que a alma não tem. Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste.

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O romance da minha vida

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Sabe aquela máxima “minha vida daria um romance”? Quando eu era mais jovem e lia compulsivamente os grandes clássicos e narrativas cheias de reviravoltas, me preocupava com o fato de a minha vida, no futuro, não render uma grande história. Pensava que seria muito frustrante ficar velho e constatar que a existência tinha sido pacata, sem mudanças significativas, presa a velhos hábitos.

Naqueles tempos em que a mente viajava por entre ataques de piratas, naufrágios em ilhas tropicais, encontros com canibais e civilizações perdidas, as minhas pequenas aventuras de menino não valiam nada. Meu cotidiano miudinho, definitivamente, não daria nenhum romance que prestasse.

O tempo trouxe algumas mudanças e outras leituras. Conheci o chamado estilo intimista, em que as narrativas acompanhavam o fluxo interior dos personagens, mesmo que nada acontecesse concretamente lá fora.

Adolescente, lia Machado de Assis, Jorge Amado, Virginia Woolf ou Clarice Lispector com o mesmo interesse com que outrora devorava as mirabolantes aventuras de Hans Staden ou Tom Sawyer.

Descobri que não era preciso ter vivido experiências dramáticas, chocantes e extremistas para poder ter uma vida que valesse a pena – ou que pudesse render a base para o meu sonhado romance.

Nas minhas percepções de menino, havia ainda um detalhe importante. Queria ter uma vida intensa, mas tremia de medo diante das mudanças inesperadas.

Um lado meu detestava qualquer evento que fugisse ao controle e ao planejamento. Era o “algo em mim” que queria manter as coisas estáveis, confortáveis, mesmo que isso comprometesse o outro desejo vital de transformações que resultassem em histórias maravilhosas.

Para chegar a uma conciliação interna, passei a interpretar diferente as pequenas bobagens que me aconteciam diariamente.

Assim, o banal episódio em que a polícia suspeitou que dois amigos que viajavam comigo pudessem ser terroristas, no aeroporto de Paris, não deixava de ser uma aventura.

Nem era preciso romancear: bastava falar do meu susto, da adrenalina até a questão ser esclarecida, do olhar desconfiado das pessoas, e pronto. Tinha ali algo que renderia pelo menos um parágrafo de um livro de memórias.

Sob esse enfoque de reinterpretar os acontecimentos banais e encarar tudo como imitação de um mundo de ficção, passei a achar mais graça das coisas. Tornei-me espectador de mim mesmo, como disse o poeta Fernando Pessoa.

Por mais desagradável que seja, qualquer acontecimento pode ser revisto com um olhar de humor, de ternura, de ironia ou até de resignação.

Hoje olho o passado e vejo muitas viradas na vida. Espanto-me, por exemplo, de me ver trabalhando dia e noite nesta cidade, embora o meu maior desejo fosse dar uma guinada e ir passar uma longa temporada num país estrangeiro.

Vejo-me trocando São Luís por Paris ou Nova York e me espanto também. Vejo-me múltiplo e com a mesma velha sede de novidades.

Mas já não temo que minha vida não renda um romance. 

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As vinhas do sábado

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Sábado, dizia um cronista mundano, é dia de pernas de fora e de celebrar a vida – que é boa, mas dura pouco. É dia de licenças. De comer prato proibido pela medíocre culinária da dieta e de beber “várias umazinhas” – “até para manter o desequilíbrio”, como ensinaria o sagaz filósofo tupiniquim Erasmo Dias.

Neste sábado, as vinhas não são da ira, como no admirável romance-panfleto de John Steinbeck, denunciando em 1939 a escravidão no campo, como ainda hoje acontece neste pobre Brasil, em fazendas que ignoram a Lei Áurea.

As vinhas deste sábado – esteja o leitor onde estiver, à beira-mar, numa mesinha da Litorânea, ou navegando na baía de São Marcos – são as vinhas de o bom viver e do melhor vadiar. É hora de tomar “umazinha”, sempre respeitando a lei: de dia, bebida clara; de noite, bebida escura. Antes do meio-dia, vale qualquer clarinho: uma taça gelada de um Muscadet é magnífica escolha, não viesse esse branco francês diretamente das vinhas amorosas do vale do Loire.

Uísque antes do sol se por não chega a ser heresia, mas é uma descortesia aos rótulos que sustentam os saiotes de “Sir” Walter Scott e os guerreiros de “Sir” William Wallace, o “Coração Valente”.

Vinho tinto, antes de ser uma bebida, é uma arte e um rito, uma espécie de “namoro gustativo”. Em primeiro lugar, vinho tinto não pode ser qualquer um. Há que ser um chileno honrado, safra anterior à ditadura do general Pinochet. Ou um francês de estirpe: os de Bordeaux – um Château Latour, um Château Mouton ou um Château Lafite. Ou, quem sabe, um autêntico “Borgonha”: um Chambertins, um Clos de Vougeot ou – “assim tu me arrombas!” – um Romanée Conti. Em ambos os casos teríamos que entregar a conta à generosidade perdulária de alguns poucos abonados e dispostos a meter a mão no bolso.

Degustar um vinho é uma cerimônia – quase se exige casaca e polainas. Começa no cálice de cristal translúcido, passa pelo movimento de rotação do líquido, pela captura do “buquê” e termina lá no palato, onde se manifestam todos os sentidos do bom bebedor.

Beber, no entanto, não tem regras. Só manias, além do gole do santo, claro, sob pena de mandinga das brabas. Fernando Sabino, oráculo da crônica, mal começa uma digressão etílica e logo esbarra em todas as lembranças do passado. O “advento do uísque”, por exemplo:

– Começou a ser servido em copos grandes, desses de refresco, com gelo e clube-soda. Ou com sifão – aquele mesmo que o Carlitos costumava borrifar nos outros em suas comédias. Havia ignaros que tomavam com guaraná, para a indignação dos iniciados. Old Parr era o mais comum e President o mais fino, em sua bela garrafa com tampa de cristal. A cerveja preta também tinha o seu lugar. Não a Malzibier, execrada por ser doce e sem álcool, mas a Porter, bem forte, parecida com a Guiness dos ingleses, e a Caracu, brasileiríssima, cujo nome inspirava gracejos chulos a partir da terceira garrafa.

Mas se continuarmos nesta incursão “sabiniana”, rumo a uma “recherche” etílica, então neste balcão logo se produzirá a espumante garrafa da saudade, relembrando “O tempo das vacas gordas”, como cronicou o autor de “O Encontro Marcado”.

Era um tempo em que “o melhor da festa era esperar por ela. Mais valia um gosto que seis vinténs. A areia da praia era mais clara. As ladeiras eram mais suaves. As distâncias eram mais curtas. Os dias eram mais longos, o amor era mais puro e a mocidade era eterna”.

Mas aí também já não seria apenas um drinque numa manhã de sábado. Seria porre certo. Pra varar a tarde e a eternidade.

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Há 100 anos morria Euclides da Cunha

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Euclides da Cunha

Para marcar os cem anos da morte de Euclides da Cunha, que transcorre hoje, a Ediouro relança Os Sertões, numa versão ricamente ilustrada e com introdução da professora Walnice Nogueira Galvão, especialista na obra e no universo euclidiano.

Na edição histórica, a obra-prima de Euclides da Cunha é acompanhada de uma seleção de desenhos de Aldemir Martins (edição de 1968), de Alfredo Aquino (edição de 1975) e de J.B. Andersen (edição em língua alemã). Traz, também, reproduções de pinturas de Debret, Benedito Calixto, Vítor Meirelles, Trípoli Gaudenzi e Otoniel Fernandes Nieto, entre outras, além de uma série de fotos da época e do conflito retratados em Os Sertões.

A primeira edição de Os Sertões chegou às livrarias em dezembro de 1902.

Para quem não leu, o livro Os Sertões é o resultado do intenso envolvimento de Euclides da Cunha com a Guerra de Canudos.

Declaradamente republicano, em 1897 ele escreveu diversos artigos sobre a comunidade independente de Canudos, no interior da Bahia, e sobre o líder do movimento, Antônio Conselheiro, tido como monarquista.

Em setembro daquele ano, Euclides da Cunha acompanhou como correspondente de guerra para o jornal A Província de S. Paulo, a quarta e derradeira expedição militar contra Conselheiro e seus seguidores.

Além dos artigos escritos diretamente do front, Euclides da Cunha também fez intensa pesquisa sobre o sertão baiano, a política local e sobre a vida de Antônio Conselheiro.

De posse desse material, levou três anos para finalizar Os Sertões.

Para muitos, o livro é a gênese da brasilidade.

 

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Brevíssimos segundos de paixão

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Dizem que, quando é agosto, rios submersos correm nas profundezas do Pacífico, que torrentes abissais revolvem as raízes de ilhas e de continentes, que de vórtices ocultos jorram metais desconhecidos, capazes de subverter os aparelhos de navegação, o pulsar dos astros e a ronda das estações.

Deve ser verdade. Começava o mês de agosto e despertei em meio à noite com a sensação de andar extraviado no tempo, pois rugia lá fora uma tempestade inusitada. Dançavam as árvores, todo o horizonte era uma imensa nuvem pressaga. E, no entanto, o calor era insuportável e por toda a vizinhança de concreto rugiam centenas de aparelhos de ar-condicionado. A casa dormia, eu era uma alma penada e insone e só.

Recomendo às pessoas que se virem um dia nesse transe que mergulhem num livro tedioso e enorme, que liguem uma dessas rádios que varam a madrugada condenando a humanidade ao fogo do inferno, que joguem paciência. Só não se ponham a inventariar coisas e lembranças, já que aí é certo que não tornam a adormecer. Sei do que falo: foi o que aconteceu comigo.

Havia uma mesa. Eu contemplei essa mesa e a revi povoada dos risos e das vozes de algumas pessoas e me pegou uma ternura antiga e boa, pois com tantas já não tenho me encontrado.

Havia uma foto. Eu examinei essa foto e me voltou a tarde em que foi batida e me tomou uma saudade calada e quieta de seus personagens, pois com tantos já não me tenho reunido.

Havia uns discos. Eu ouvi esses discos e retornei aos momentos a que pertenciam suas músicas e me envolveu uma nostalgia silente e branda de certos lugares, pois a tantos já não tenho regressado.

E havia um espelho. Eu olhei para esse espelho, não por vaidade, mas por precaução. Esse espelho é, de todos os objetos que me cercam, o mais revelador e o mais discreto. Esse espelho sou eu mesmo e tanto que, não me dando importância, importância não lhe dou. Podem passar meses sem que o note, sem que lhe dedique mais atenção do que a uma tela banal ou ao desenho de um tapete. Ele, no entanto, me percebe sempre, conhece de mim segredos que a mim mesmo esqueço de contar. Devo ter olhado distraído para esse espelho, supondo que era para mim que olhava, em instantes de drama e de contentamento, em singraduras de alto-mar e rasas travessias. E talvez por uns brevíssimos segundos de paixão.

E um dia voltarei a olhar para esse espelho, quem sabe em outra insólita travessia de agosto, e verei o espelho, mas não me verei.

 

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Tirania do virtual e o concerto de dois gatos

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Não quero assustar ninguém, mas viver está ficando complicado. Ouço agora uma música lindíssima, e me bate o desejo de preservá-la. Corro ao gravador mais próximo e aí topo com uma floresta compacta de botões enigmáticos. Resultado: não consigo captar sombra da melodia.

Coabito desconfiado com essas engenhocas. O prosaico microondas da cozinha devia ter uma função singela: aquecer os pratos destas insossas eras de refeições congeladas. A cada vez que o busco, no entanto, derrapo na multidão de teclas, que suspeito criadas com o solerte propósito de me humilhar.

Se vou ao banco, o terminal me recebe com 11 mandamentos irrecorríveis, a principiar pela senha, mutante sopa de letrinhas e números que nunca vou decorar. Minha valente máquina de escrever Olivetti era um lógico, prestante monumento ao bom senso. Já este computador é uma armadilha permanente, que certo dia detonou 20 páginas de um romance para sempre inacabado.

Hoje esqueci o telefone de uma amiga, recorri ao Auxílio ao Cliente, que fez o possível para me desauxiliar. Uma voz metálica declarou que de momento todas as posições estavam ocupadas e em seguida me brindou com um rap atroz. Volvida meia eternidade, fui intimado a discar infinitos coquetéis de algarismos. É óbvio que perdi na hora qualquer vontade de me comunicar com minha amiga ou com o universo.

Refleti, melancólico, que a informática não passa de uma forma requintada de burocracia. Houve um tempo em que te pediam certidões, carimbos, selos. Mas eram exigências sólidas, inteligíveis. Agora, na tirania do virtual, te requerem o domínio de comandos que jamais irás entender.

Nesta última quarta-feira de julho prefiro tentar entender – ou até mesmo decifrar – a reação de animais à música. A reação dos gatos, por exemplo, tem sido motivo de interpretações que tendem a dotar os gatos de especial sensibilidade (de um modo semelhante à humana) a certos sons musicais. Há exemplos conhecidos.

Li, certa vez, que uma gata lambia as mãos do dono pianista, sempre que este tocava determinadas peças. De outra vez. Li sobre um gato que fugia para o ponto mais afastado possível sempre que tocava “O Pássaro de Fogo”, de Stravinsky. No primeiro exemplo, tratava-se de os sons emitidos poderem levar a gata a “pensar” o dono em perigo, lambendo-lhe as mãos em sinal de proteção. No segundo exemplo, o gato refugiava-se por causa das notas agudas emitidas, associando estes sons a sinais de perigo.

Agora apareceram discos com música especialmente arranjada para gatos. E há o gato de Domenico Scarlatti (1685-1757) que tinha a especial predileção de passear por cima do teclado do cravo do compositor, detendo-se por vezes em determinada nota e esticando as orelhas até que o som cessasse.

Bom! Esse gato é o único exemplo de gato compositor: uma noite, o seu passeio sobre o teclado, que acordou Scarlatti, produzia uma linha melódica que o músico transcreveu para um papel que tinha à mão, tendo daí nascido a “Fuga do Gato” (K.30 ou L.499). Há ainda o gato do poema “Cancíon novísima de los gatos” de García Lorca, que também passeava de noite no teclado, que escutava Debussy, mas não gostava de Beethoven. Este mesmo Debussy, que de acordo com o poema foi um gato filarmônico na sua vida anterior, compreendia bem a beleza do acorde felino sobre o teclado.

Compositores especialmente sensíveis a gatos: Tchaikovsky, no bailado “A Bela Adormecida” (O Gato das Botas), Rossini a quem é atribuído o dueto para dois sopranos Duetto buffo di due gatti  e Stravinsky que compôs canções para embalar gatos .Brahms, por outro lado, odiava gatos e entrava em pânico, sempre que avistava algum.  ( Veja o vídeo abaixo )

Na área de outras músicas (jazz e pop), há também compositores e instrumentistas que se inspiraram em gatos para títulos de composições, de discos e até do seu próprio nome artístico. No teatro musicado, uma das melhores obras é Cats, de Andrew Lloyd Weber, baseada em versos do poeta T. S. Eliot.

A tirania do virtual, a te requerer o domínio de comandos que jamais irás entender, não deixa de ser também uma forma de te distanciar de pequenos gestos de sensibilidade como a tentativa de decifrar a reação de animais – o gato como exemplo – à música.
 
Talvez não demore muito a época em que proscreverão os livros, banirão os sonhos, exilarão os poemas. E seremos todos comportados autômatos, alheios aos mistérios do amor, incapazes de distinguir o som de uma canção do ruído espectral de máquinas que pouco a pouco engolirão o mundo.

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As faces de Machado de Assis

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A propósito da crônica em que faço referência à minha paixão pelo universo do Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis (1839-1908), leitor do blog se apressa em informar que um dos mais respeitados críticos literários brasileiros, o ensaísta mineiro Fábio Lucas, radicado em São Paulo desde a década de 1970, homenageia o autor de “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” no livro “O Núcleo e a Periferia de Machado de Assis”, que está sendo lançado pela editora paulista Amarilys.

“Há 40 anos estudo a obra de Machado de Assis. Não é pouco, nem o bastante. Resolvi escolher, submetidos a revisão, os meus trabalhos sobre o escritor, que estavam espalhados em outras publicações”, afirma o autor de “O Caráter Social da Literatura Brasileira” e “Mineiranças”.

Continua Fábio Lucas: “Notei que muitos aspectos pioneiros de minhas análises sobre Machado de Assis estavam sendo adotados e copiados por outros sem menção ou respeito à autoria. Resolvi então trazer estas ideias de volta ao debate. Novas interpretações e juízos críticos ocorreram-me nas comemorações do centenário de Machado de Assis”.

O crítico esmiuça os motivos que o levaram a usar as palavras “núcleo” e “periferia” no título desta obra, uma resposta dialógica a um estudo clássico de interpretação machadiana de Roberto Schwarz, “Um Mestre na Periferia do Capitalismo”, lançado na década de 1970.

“No meu livro, o núcleo diz respeito às obras de Machado de Assis. A periferia se refere às suas circunstâncias”, salienta
Fábio Lucas, que estuda o criticismo de Machado.

“Superada a fase de confronto direto com as obras, deu maior elasticidade à visão do mundo e efetivou, sem desfalecimento, a ação corrosiva contra ideias feitas e herdadas da tradição conservadora. Machado entregou-se à crítica implícita, sem visar diretamente às obras e seus respectivos autores. Punia conceitos mal concebidos, vícios de linguagem e estilo, atacava a empáfia humana, as contradições e injustiças”, frisa o grande ensaísta.

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Memórias: o humano além da conversa

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Quando comecei a estudar longe de minha casa, deixando para trás uma infância de sonhos de criança simples do interior, fui viver, durante algum tempo, numa casa de muitos livros – e eles eram algo mais do que simples peças decorativas.
 
Da bem provida biblioteca, uma prateleira em especial me dominava a atenção. Era a ocupada por uma longa série de volumes verde-escuros. Já tinha então aprendido a decifrar as lombadas e me enchia de admiração o fato de que em todas elas constava um nome: W.M. Jackson, Inc.
 
Um dia perguntei que espantoso autor era aquele e logo me esclareceram que aquele era o editor, o que imprimia a larguíssima coleção. O escritor era outro. Seu nome aparecia mais em cima: Machado de Assis.
 
– Ele é bom? – indaguei.
 
– Ele é o melhor – me esclareceram.
 
Apesar da propaganda, foi só na quarta série do ginásio – que era um curso que havia entre o primário e o colegial – que abri pela primeira vez um dos livros verde-escuros. Chamava-se Memórias Póstumas de Brás Cubas, e não só o li como o reli. E não só o reli como fui atrás de tudo o que havia sobre o criador de Brás e de Virgília, desafio que naquele tempo não se resolvia na internet, mas imergindo em cada enciclopédia ao alcance da mão.
 
As enciclopédias são breves, cada verbete não te dá mais que umas coordenadas gerais. De modo que resolvi tirar um curso intensivo de Machado de Assis percorrendo toda a sua obra. É o que venho fazendo desde então.
 
Mas, para ser bem sincero, o que eu estou querendo mesmo, nesta manhã de julho e de sol, é falar de beleza e de poesia. Na poesia de hoje, há uma lei oculta: a beleza é proibida. É inconveniente dizer que um poema é belo, como uma senhora não pode dizer, no meio da festa, que vai ao banheiro. O belo é um palavrão. Diga que a madame foi ao toalete, diga que o poema é instigante. O belo pesa nos ombros do poeta.
 
Os substantivos abstratos entraram numa crise irreversível. Ninguém acredita mais em nomes que são apenas conchas vazias. Mas não acreditar em conchas vazias como beleza, maldade, ética não implica se abster de perceber o concreto, de vivê-lo. Renunciar à palavra beleza e a seu arquétipo não significa ficar mudo diante da mulher bela: é preciso dizê-lo, com o adjetivo concreto, não com o substantivo abstrato – ela é bela.
 
Por delicadeza, só se fala do belo sozinho em casa, para as paredes. Mas por delicadeza se pode perder a vida. O belo é brusco, intrusivo, antieconômico. É o conflito entre a forma desejada e a forma percebida. Pense no conflito entre uma curva de concreto armado e o cálculo estrutural de um vão livre, a forma suspensa de uma obra de Niemeyer! Pense no conflito entre a técnica da veladura, da sobreposição de cores espessas, de onde emergem formas semi-iluminadas, e o custo das tintas, o preço dos tubos de cores, que tanto preocupou Antonio Almeida. O belo não é politicamente correto, ele valoriza contrastes específicos e exclui partes da vida que não geram o efeito pretendido. O belo escolhe e discrimina.
 
E o burburinho em torno do poeta é sempre o mesmo: modere o tom, baixe a guarda, deponha as armas! Cultive o não-eu e o sem-sentido!
 
Como toda diferença é aceitável, o idêntico domina. E o poeta, com medo, renuncia ao conflito físico com o belo, a luta corporal com a forma percebida. A beleza migrou para os objetos funcionais, a sede de beleza está à venda.
 
Um monitor de computador, um aparelho de DVD, no design e na cor, devem gerar prazer estético, que todos reconhecem e aceitam, mas de um poema se espera apenas que proteste moderadamente contra a identidade da linguagem, com a voz sufocada atrás de uma parede de uma casa de ninguém. Ao poeta é concedido o seu subúrbio.
 
O arquiteto da voz, o poeta, o artista da arte mais humana, feita apenas com as cordas vocais vibradas com sopros curtos e precisos, rajadas de vento, o arquiteto da voz calcula a largura da onda sonora e luta com o resultado que ela incita no ouvido e na mente. O poeta produz o belo com a laringe.
 
Essa arte começa humilde. É preciso amor para sintonizar a voz modulada do outro, o eu-outro imbricado no poema. O amor que se dedica a uma conversa de vizinho, mas despida do momentâneo e do casual.
 
Imagine conversar com um vizinho que modula o tempo de sua voz, que converte sua conversa no ritmo de sua existência, que funde forma e informação, que transforma o eu do momento num tom preciso. A poesia nos converte em leitores de eus instantâneos.
 
Nós sabemos identificar uma pessoa que sabe conversar, um grande causeur. E podemos ainda identificar o arquiteto da voz, aquele que funde conversa e universo, o fundador do belo que vem da laringe, criando o humano além da conversa.

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