O domingo ou o dia do juízo final

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1

O domingo chega com a cores do juízo final da semana. Você institui seu tribunal do júri pessoal e intransferível. Os julgadores são os olhos, seus membros, o umbigo, o fígado vulnerável e a ambição malsã.
Indisfarçáveis são os infortúnios dominicais, em São Luís ou em Nova York, tanto quanto as rugas das mulheres e a ânsia de mostrar coxas, este comportamento similar ao frenesi de dar bananas do poema de Vinícius de Moraes.
Estamos rendidos na batalha diária, por nós mesmos, enquanto esperamos a segunda-feira. Aos domingos, os bombardeiros psicológicos desovam mais bombas sobre a areia movediça de nossa alma.
Nesse conflito insípido nem sangue há.

2

Proclama Shakespeare no ato II de Cymbeline: “Arma-me, audácia!”. Aos domingos as audácias são difíceis de armar as pessoas.
Domingo é dia de descanso. Convivemos apenas com nossas falácias. Paradoxalmente silenciosas.
E terminamos vencidos no primeiro instante da luta ornamentada como uma festinha de Natal fora de época.

3

Manhã de puro desencanto atiça pés do vento. Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto atravesso a ponte de Brooklyn. Existem afagos em um certo apartamento em Hans Road, Knightsbridge. Ali Eliot dizia pela voz morta: “Aqui passado e futuro estão/ Conquistados e reconciliados.”
Administro o cansaço entre uma viagem e outra. O cansaço se mede com régua ou fita métrica. Como se mede busto ou nádegas de uma mulher que já não nos interessa.
Na rua 42, certo inverno, vi pintor descer de yellow cab. Era Salvador Dali, de quem retomo obsessões. O pintor confessa, com a voz quase inaudível da morte, que organiza a catástrofe. Assim como Hiltler organizou sua descida ao Walhalla.
O artista observa que Hitler era masoquista e queria o abismo. Pretendeu e conseguiu mais. Conquistou o insulto absoluto.
Pela voz de Verlaine faz-se a síntese do sentimento da humanidade. As lágrimas inundaram meu coração como a chuva alaga a cidade.

4

Foi a última a primeira vez em que a vi. Perguntei-lhe sem perguntar em que trapézio voador voaria. Bateu as asas. Imperiosamente como quem mente ou como quem inicia a construção dos próprios olhos para olhar o mundo.
A cena se passou enquanto se projetavam cenas de Casablanca. Humphrey Bogart despedia-se de Ingrid Bergman. Como se pudesse despedir-se. Até hoje continua despedindo-se em preto-e-branco para a convulsão da inveja dos efeitos em cores.
Hoje, revejo-a na memória que se eleva ao ar como o grito das gaivotas aflitas. Pude vê-la enquanto se desvanecia no meio da rua. Tangível como um pedaço de pão.

5

Mulher no espelho. Homem no espelho. Pessoas no espelho no Guggenheim Museum de Nova York. Distorções. Paro e penso igual a Albert Camus: “O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.”
Entre as sirenes das ambulâncias e o cume dos arranha-céus da Primeira Avenida, Heráclito paira entre ruídos para dizer que não se pode andar duas vezes no mesmo rio.
Por isso nos apartamos como nos momentos em que as pétalas caem das flores.

6

Homem vestido como um monge. Vestuário verde e vinho. Quando precisa de esperança, olha o verde do tecido. Bebe quando quer beber o vinho da cor da indumentária. A cabeça pende para a direita. Está suspensa entre ombros e mãos amarelas.
Rua 53. Dentro do Museu de Arte Moderna a cabra de Picasso berra no jardim. Protesta. Quer ser um minotauro e é apenas uma cabra. Cabras dão berros e leite. Homem vestido como um monge. Pergunto-lhe sobre o desapontamento da cabra de Picasso exilada no jardim do Museu.
Mudo, entretanto, a interrogação: a que ordem religiosa o sr. pertence? “À ordem da desordem!”, responde.

7

Em nenhum momento pergunte-se sobre os limites da cidade e as divisas do seu corpo. De um lado estão as águas do East River e do outro as águas do Hudson. Você já veio como se visitasse um de seus arrabaldes, uma de suas casas.
Talvez sinta que até se despede das coisas. Da cama de seu pequeno quarto de hotel, das longas caminhadas entre downtown e a Strand, onde compra livros com a reprodução de quadros de Lucian Freud e de Edward Hoper, do sushi que busca na Rua 45, do banco de madeira do Central Park.
A cidade deu-lhe solidões inumeráveis, O Fantasma da Ópera, Le Cirque du Soleil, chá de lychee… Um dia deixará de dar. Você não estará mais aqui para receber tudo isso. Nem eu.

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Em Nova York com Sarney e Diana Ross

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1

NY_mirante_comDe volta a São Luís, quero escrever direto e pouco como um gesto. Quero escrever sem subterfúgios como quem prepara o livro do dever e do haver. Quero escrever direto como o riso do homem velho que vi na esquina, braços em ascensão, aquele louco varrido com a vassoura da alucinação.
Quero apreender o estilo do temporal que caiu sobre mim na Sexta Avenida, em Nova York.
Lá, galos não cantam nos quintais da vizinhança. Meu vizinho é este ar umedecido decorado por nuvens alongadas como os vasos lécitos gregos em que eram guardados perfumes.
Quero escrever direto como quem decide a hora de ir para a cama ou quem apanha um livro na estante. Tudo são gestos.
Emily Dickinson escrevia em linha reta. A beleza não se faz, ela é.
Aprendi a síntese. Foi longo o aprendizado. Quero ser direto como o sim e o não.

2

Nessa volta à mais efervescente megalópole do mundo reencontrei uma Nova York sempre em movimento. Ora eram os néons que nunca apagam, as ruas que nunca (ou quase nunca) estão vazias, ou até mesmo gente que simplesmente vagueia por elas.
Nova York é uma tela pintada de táxis amarelos e néons multicolores em cada esquina, uma mescla de cores, que nunca um pintor teve a ousadia de criar. A cidade é uma pintura, cujos traços mostram uma agressividade celestial, de algo que o Homem sonhou, e Deus o ajudou a criar!.
Houve uma noite de Manhattan em que falamos sobre o destino gravado em nossas mãos de veludo púrpura. São Luís estava tão longe quanto um padre rezando missa na igreja do Desterro. Antes, o pecado morava ao lado.
De pássaros, caixas, anéis, olhos, flores, flechas disparadas, estrelas e sortilégios são feitos os sonhos púrpura de nossas mãos. Como a noite gasta que ficou nos olhos cegos de Jorge Luís Borges, São Luís era, naquele instante em que meus olhos se abriam para a paisagem única do Central Park, essa visão exaurida que persistia apenas fraturada.

3

No apartamento de Salwa Aboud Smith, histórias de vida foram passadas a limpo. Champagne transbordava nas flutes. Salmão, caviar e blinis enfeitavam as bandejas. Requintes de quem mora em Boston e mantém um refúgio na Big Aple só para receber os amigos.
Mistura de memória e desejo aviva raízes agônicas. No mesmo espaço, brasileiros, americanos, noruegueses. Delírios de conversas no salão e uma grande colisão de palavras. Confusão de Torre de Babel. Relembranças da São Luís dos anos 60.
Nada existe sem uma razão, dizia Leibniz. Por alguns instantes fiquei debruçado sobre Virginia Woolf, que fala sobre personalidades triviais decompondo-se na eternidade da impressão dos jornais.

4

O som do saxofone de Paul Desmond inundou a minha manhã em Nova York. O sol, ali, era tão flamejante como na praia do Calhau, em São Luís. Olhei atentamente os cogumelos servidos no restaurante Le Cirque. Cogumelos e ervas suscitam pensamentos – disse-me Fides, olhando para o marido Erick Ostbye. Quanto mais velhos somos mais vulneráveis ficamos às emoções da volta ao passado – arrematou o artista plástico Erick Vittorino.
Quem passa por Nova York, mesmo por uma semana, sente na pele a carga da energia pipocante que move a cidade em cada minuto do dia.
Ali, multidões de turistas misturados aos mais exóticos exemplares de cada parte do planeta, infinidade de sinais, vitrines, portas abertas para milhares de opções em todas as áreas da curiosidade humana, fachadas, concreto, vidro, muito aço, buzinas e sirenes.
Na saída do Le Cirque (agora na Rua 58) o reencontro com a mineira Alessandra e seu marido Michael Bush. Falamos de viagens. Para eles o dilema: Atenas ou Paris? Qualquer lugar na Europa sempre vale a pena.
Despeço-me pensando com Robert Louis Stevenson: “De minha parte, viajo não para ir para qualquer lugar, mas para ir. Viajo pelo interesse da viagem. A grande coisa é ir.”

5

Nova York é a cidade que dita as modas nas finanças e na cultura dos Estados Unidos. Não há metrópole tão influente no mundo. Só Londres, na era vitoriana, ou Paris, na belle époque, usufruíram tanto prestígio.
Há mais de três anos radicado em Nova York, o empresário maranhense Antonio Cordeiro Filho vive um tórrido romance com a brasileira, quase novaiorquina, Diana Engel. Na Madison Avenue, o casal me amarra com um cinto da Hermès. É um regalo pelo aniversário, que comemoramos antes, com um vinho de honra no Bar Bouloud, do lendário Daniel Boulud.
Nova York está sempre em movimento. Ora são os néons que nunca se apagam, as ruas que nunca (ou quase nunca) estão vazias, ou até mesmo gente que vagueia pelas ruas da cidade.
“Viver em Nova York é viver a experiência fantástica de conhecer uma cidade de que toda a gente fala. É estar num lugar que se ama ou se odeia”, arremata Cordeiro, a caminho de sua casa, no condado do Bronx.
A magnitude da cidade passa principalmente pela luz, cor e energia que é, no final de contas, o cartão de visita para quem gosta da confusão normal de uma grande metrópole.

MAIO_Le_Bernardin_Chef_Eric_Ripert

6

Quarta-feira, 19 de maio de 2010. Passaram-se 9 anos e novamente estou em Nova York. Canto com Frank Sinatra “Come fly Away”. “Eu estou planando em um céu bonito,/ um dia incrivelmente claro/ Continue/ Nas suas doces canções de ninar/ Venha e voe comigo”.
Cercado de amigos, no restaurante Le Bernardin, se me perguntassem sobre o que é mudar de idade eu saberia o que era, mas não saberia dizer, porque existem coisas que a palavra não dá conta. Apenas diria “Venha e voe comigo”.
Nova idade é tempo vivido. E tempo, esse senhor tão bonito, não cabe em nenhuma das três palavras que inventamos para tentarmos falar dele: o passado, o presente, o futuro, a não ser como taxonomia de coisas que acreditamos descrever, no máximo.
O tempo que vivemos pode ser a imagem móvel da eternidade imóvel, de que nos fala Platão. Mas, para o poeta Cazuza, o tempo não pára.
E foi para celebrar esse tempo novo que estava se inaugurando em minha vida que me reuni com amigos na mais poderosa cidade do mundo.
No Le Bernardin, o Chef Eric Ripert (foto) continua a definir padrões inigualáveis com seu paraíso piscatório, uma parceira perfeita para uma confraternização de amigos.
Atravesso o asfalto, inoculado de pequenos cristais que brilham ao sol das três horas da tarde, como uma pessoa que retira do centro da mesa uma posta de peixe prateado.

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7

Como tâmaras, recordo a queda do Império Romano depois de mais de mil anos de devaneios de que tudo é para sempre, como os diamantes, e ignoro tramas. Toda trama, esse sombrio poço, perde-se com a distância do Brasil.
Folheio esquecimentos e entrevejo o brilho furta-cor do besouro (suas asas anteriores são córneas) que anda, antenas ligadas entre os olhos e a fronte, pela calçada lateral do Central Park.
No Radio City Music Hall um encontro com a voz de Diana Ross. A mulher não parece ter envelhecido. É toda energia. Sua voz continua a mesma e ouvir milhares de pessoas cantando as músicas dela em uníssono é um sentimento que não pode ser descrito, mas se pudesse uma palavra que vem à mente é “incrível!”
Depois de 13 álbuns top 10 e de cinco décadas de música pop – a sua música tornou-se o som da América jovem nos anos 60 –, Ross ainda sorri com hits como The Supremes, sua voz quase inalterada e o rosto com um ar escovado.
Nomeada tutora dos filhos de Michael Jackson, Ross se rendeu à memória dele, cuja imagem gigante surgiu no telão, e cantou “You Are Not Alone”. “Se você precisar de mim, me ligue”, ela aconselhou a platéia, antes de deixar o palco para a mudança de seu vestido final, cor de prata.
Mas o que ficou marcado na minha memória foi a voz eterna de uma verdadeira lenda da música cantando a trilha sonora de nossas vidas.

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Nova York, a cidade que nunca dorme

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1

Quem já foi a Nova York sempre quer voltar. Quem não foi sonha um dia conhecer. A meca do cinema, da literatura, do consumo e dos negócios frenéticos, dos bairros charmosos e da arte é tudo aquilo que se viu, leu, imaginou ou fantasiou.
Mas é sempre e incrivelmente surpreendente.
Há nove anos não ia a Nova York. Sentia medo de testemunhar a ânsia vã da cidade sem as Torres Gêmeas. Três meses antes da tragédia eu estive lá. E do observatório do último andar senti a sensação de que estava, literalmente, numa janela aberta para o mundo. E para o mais colossal espetáculo da Terra.

2

Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta desse acontecimento surpreendente que é Nova York à noite. Esta cidade resistiu a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que tentaram descrevê-la, copiá-la.
E conserva o frescor, o inesperado, a surpresa. Na voz de Frank Sinatra, New York é New York, a cidade que nunca dorme.
De que cidade você está vindo? De São Luís ou de Paris? Não me lembro. Recordo apenas ter lido O Jovem Audaz no Trapézio Voador, de William Saroyan.
Conversas sobre o fim de tudo, de Roma e sim da Babilônia, deslizando como um réptil em abstração.
Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto exercito-me atravessando a pé a 5ª Avenida.
Aqui, percorro as memórias errantes de Jim Dine. O artista pop que saiu de Ohio, estudou em Boston e começou a construir, construindo-se, com a utilização de instrumento de mídia.
Sinto vontade de vestir o paletó pintado de verde de Dine. Temos talvez o mesmo número de paletó.
Ligação arbitrária com o mistério dos pigmentos duradouros da frase de Nabokov em que o escritor pensa também em bisões extintos e anjos, além do refúgio da arte.

3

Quando visitei Nova York, pela primeira vez, há muitos anos, ali era o Birdland. Era um nobre pedaço de Times Square. Ouvi o trompetista Maynard Ferguson e o saxofonista Cannonball Adderley.
Tudo ali era música, bruma de cigarros, tilintar de copos.
A legenda estava em pé, muito embora aqueles fossem os últimos dias do clube jazzístico naquele lugar.
Reapareceria em Greenwich Village.
O Birdland era uma espécie de Teatro Apollo da mid town. Na up town, no Harlem, Billie Holiday cantava suicidando-se.
Personagens de tempos heróicos parecem velhos fantasmas que reaparecem, na memória enlutada, como se estivessem expiando as próprias culpas.

4

Paro diante da fonte do Hotel Plaza. Existem lá dentro candelabros em que hóspedes mais experientes praticam acrobacias. Umas sexuais, outras de investimentos em Wall Street.
Enquanto atuam, as pessoas refletem-se nos cristais. Gostam de se ver espelhadas enquanto praticam a dispensável aventura no ar. Não lhes dou importância.
O que me importa é imaginar Zelda, mulher de F. Scott Fitzgerald, saindo nua da flor das águas da fonte. Naquele tempo as mulheres ainda não raspavam os pêlos pubianos para ir à praia ou tomar banho defronte ao Hotel Plaza.
Somente por esse detalhe valeria a pena ver de novo.

5

Deste final de primavera em Nova York colho o tempo amável e a visão dos peitos retardatários que as moças deixam balouçar espetando as primeiras blusas leves da temporada.
Sensuais nestes primórdios do verão são a atmosfera e as mamas.
Sensual é a voz rouca de Billie Holiday cantando Fine and Mellow em estação de rádio apunhalada pela estática. Ou com aquela orquídea colocada sobre a orelha direita enquanto manda Speak Low.
Leio em biografia que Orson Welles namorou a moça que nasceu prostituída em Eleanora Fagan, Baltimore.
Sinto mais inveja de Welles por Cidadão Kane e por Billie Holiday do que por Rita Hayworth.
Nunca houve uma mulher como Gilda? Claro que sim. Billie Holiday no seu aparato de autodevastação.

6

Na elegante manhã do breakfast no restaurante do hotel boutique Night, sou eu com certeza a única pessoa a saber que o pianista Thelonius Monk toca Round Midnight.
A música da gravação inunda o ambiente de mesas clean.
O passado mora ao lado. Subo a escada de um velho prédio. E minha emoção esboça desenhos tão transitivos como esta viagem em que revejo velhas pedras e ouço, música antiga, Bye, Bye, Black Bird, gravada por John Coltrane e Miles Davis. Os dois estão mortos.
Deslizo os dedos pelo corrimão. Apalpo a madeira como se apalpasse a vida. É primavera. Quase verão. Tempo de carícias entre as árvores do Central Park.

7

Ficar só em Nova York é algo que não me incomoda. Na verdade, diverte-me. Às vezes serve-me até como alento de uma vida obscura emoldurada por umas poucas pessoas que amo e muitas outras especialistas em acrobacias.
A maioria do mundo é composta de indivíduos voadores, praticando saltos no escuro, mesmo no claro, como os trapezistas do Cirque de Soleil.
Prefiro, entretanto, a solidão, em restaurante dos anos 40, do quadro de Edward Hopper em que aparecem duas mulheres em primeiro plano, dentro do realismo americano onde contrastam as grandes manchas escuras do ambiente com as lâminas de luz coadas lá fora.
Lembro-me freqüentemente de Hopper, quando me encontro só em Nova York, ninguém para abrir portas trancadas, apenas reticências despejadas numa lata de ervilhas.

8

Manhã mal raiada em Nova York. Penso em quadros cósmicos de René Magritte e Paul Devaux. Surpreende-me ver na pista do aeroporto um avião todo branco. Tudo seria banal não fosse o fato de que ele se prepara para levantar vôo sem turbinas.
Pássaro sem asas, disse de mim para comigo. Cão sem plumas, avisou-me o poeta. Mulher sem peitos, surpreendeu-me, constrangido, o voyeur.
Penso mais, como não haveria de pensar, se acordei tão cedo e ainda estou envolto em pesadelos de paisagens lunares para realizar o distante trajeto entre Nova York e São Paulo?
Aguarda-me na verdade aquele avião branco, sem turbinas, para me levar em seu bojo como um passageiro absurdo, o fantasma da ópera.

9

No aeroporto Kennedy, homens tristes transitam levando bagagens em carrinhos que parecem cavalos-marinhos adormecidos.
Um japonês tira fotografia do neto. Clarão de bomba de Hiroxima dentro do salão. Enquanto isso, desfilam mulheres de coxas de fora. Sapatos altos apreciam a vertigem das alturas e a sugestão da libidinagem.
Olho as coxas das mulheres. Olho as bainhas de minhas calças jeans. Estão manchadas de tinta branca. Gosto dessas imperfeições. O mundo é imperfeito.

10

Dentro do avião, converso com meus botões. As mulheres deveriam embarcar de camisola para atravessar oceanos. Sem calcinhas. Assim, não precisariam tirá-las quando fossem aos estreitos WCs para urinar nos ares.
Demora mais de dez horas a travessia sobre o Atlântico. Minhas calças jeans são confortáveis, mas eu preferiria estar de pijama.
Uma noite passada em avião equivale a uma noite em lugar algum. Morremos todos por uma noite os que viajam e fazem longas travessias. As mulheres sem camisolas e calcinhas e os homens com suas calças jeans manchadas de imperfeições.

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Alegria (Joie de vivre)

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Do Livro das Cortesãs – Um Catálogo das Suas Virtudes, de Susan Griffin, Editora Rocco, li, gostei e dou de graça para vocês:

A capacidade de sentir prazer na vida é uma virtude como as outras. A alegria não é tão simples como parece. Há pessoas que, por medo ou prudência, se acostumam tanto a resistir ao sentimento que acabam perdendo totalmente a prática de se sentirem satisfeitas.

Outras, confundindo domínio com prazer, preferem a conquista ao deleite e jamais saboreiam realmente o produto de seus esforços. É uma arte saber gozar a vida, sentir desejo e aceitar o que vem, saborear cada detalhe, em todas as suas minúcias, de cada sabor, sensação ou momento que surge, por acaso ou intenção.

A experiência requer uma coragem sutil. Deleite, júbilo, exaltação podem tirar uma pessoa do prumo, perturbando a ordem estabelecida do dia (ou, como é mais freqüente, da noite).

E, como quase todas as formas de alegria são fugazes, o prazer deve acabar conduzindo à perda, por menor que seja – uma perda que traz junto a certeza de que tudo passa.

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Tempo de liturgias penitenciais

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Abril_4

A celebração da Paixão de Cristo, no Brasil, não é apenas uma efeméride religiosa, mas foi secularizada pela tradição. Certamente, a prática da penitência, ou a maior afluência aos templos, a partir do Domingo de Ramos, tem uma conotação mais visível no ritual dos católicos, onde se estimula a prática penitencial. Ainda assim, está dirigida, nos anos recentes, para a convivência com os temas da nossa vida social. Este ano, por exemplo, com uma atenção forte para unir a sociedade na promoção de uma economia a serviço da vida, sem exclusões, criando uma cultura de solidariedade e trazendo paz.

A Semana Santa é, para os religiosos, um tempo apropriado aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às privações voluntárias como o jejum e a partilha fraterna em obras de caridade, ou da simples esmola aos desprotegidos. Entre nós, 50 anos atrás, as rádios se limitavam, a partir da quinta-feira até a chegada do sábado de Aleluia, a divulgar músicas instrumentais, de preferência de ritmo lento, dos chamados autores clássicos. Hoje, não há modificação sensível na programação diária dos veículos de comunicação.

A abstinência de carne foi há muito substituída por mesas fartas, ainda que exclusivamente com peixes e produtos vegetais. No nosso caso, desde o bacalhau importado até os pescados frescos de nossos mares, rios e alagados (às vezes os açudes e barragens construídas para gerar energia elétrica). As comidas de coco, inclusive o feijão e o arroz, fazem parte do ritual mundano da Semana Santa. E o vinho tem seu lugar garantido à mesa, até em muitas famílias de baixa renda. Recente é a introdução de práticas importadas como a distribuição de “ovos de Páscoa” em forma de chocolate.

Tudo isso, em homenagem ao Cristo que, há dois mil anos, incorporou ao espírito conturbado do Planeta Terra sua lição de paz que deveria servir de roteiro ao mundo interior de todos nós.

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Nascem lilases da terra morta

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Abril_1

Para T.S. Eliot, abril é o mais cruel dos meses. Em abril nascem lilases da terra morta. Mistura de memória e desejo aviva raízes agônicas com a chuva da primavera. Tensão entre o renascer da vida e os desejos que hibernaram durante o inverno.

Para Robert Frost, não. Cada poeta é um poeta.

Eliot escrevia no seu Terra Desolada (Waste Land), traduzido por Ivan Junqueira. Aliás, a tradução para o poema é brilhante, mas peca por uma falta de adaptação de hemisfério, deveria trazer o texto “Setembro é o mais cruel dos meses…”, e colocar uma nota de rodapé explicando a tradução de April por Setembro.

Nosso inverno definitivamente não é o inverno de Eliot, não ficamos debaixo de neve, não temos animais que hibernam (os sabiás, meus vizinhos, cantaram durante todo os meses de junho a agosto, e continuam a cantar loucamente), nem flores como as tulipas que brotam no meio do gelo. Nossa primavera provavelmente não deveria ser, como no poema, uma estação cruel.

Gabriel Celaya, um poeta espanhol, no seu “La poesia es una arma cargada de futuro” , diz que quando nos defrontamos com os olhos claros da morte dizemos as verdades; as bárbaras, terríveis, amorosas crueldades. Dizemos poemas.

Como todo dia estamos a um dia a menos da morte, olhamos os seus olhos cotidianamente. E cruelmente poetamos. Nem tão maldosamente (algumas vezes sim) e certamente nunca sem algum sentimento.

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O que sempre nasce

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Março 3

A Bailarina, de Degas

1

Depois de alguns dias de vadiação, já sinto saudades das miniférias. Se soubesse que elas durariam tão pouco, teria seguido aquela falsa – mas nem por isso desprezível – receita atribuída ao mestre de Ficciones, Jorge Luis Borges, despedindo-se da vida:
– Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios, iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e comeria menos lentilhas, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários, soltaria mais pandorgas e perseguiria mais balões, cujas buchas apagaria de um sopro…
Ou seja, trocaria a vida por uma sábia alienação, posto que está cada vez mais difícil viver o duro chão da realidade. A humanidade, definitivamente, não deu certo e não há perspectivas de que venha a funcionar um dia.

2

De volta a São Luis, reencontro o Sol que deixara aqui nos trópicos. Releio o Hemingway de O Sol Também se Levanta, seja aqui ou na ensolarada Espanha, chão que aqueceu a alma dos jovens escritores dos anos 1920. Todos corriam ao encontro do Sol, para que este aquecesse suas moleiras. Lá, em terras de Castela, em Paris, na Riviera Francesa ou nas Plazas de Toro de Madrid e Sevilha.
A propósito: a novela de Papa Hemingway era muito melhor do que o filme – Agora Brilha o Sol, dirigido por Henry King – uma adaptação difícil, apesar da luminosa beleza de Ava Gardner e dos bons desempenhos de Tyrone Power e Errol Flynn.
Esse tal de “Sol” produz uma reação química no cérebro e no coração dos homens, despertando-lhes um sentimento de euforia, caracterizado por uma certa alegria inexplicável.

3

Os franceses são capazes de produzir grandes blockbusters (livros de enorme sucesso), cheios de ação, milionários. Também são craques em narrativas comerciais, como provam suas inúmeras produções refilmadas pelos americanos. Mas a França ainda é e sempre foi o centro internacional da cultura humanista. Não pode jamais querer ser americana, sob pena de sofrer um AVC, Acidente Vascular Cerebral, como acontece com o protagonista de O escafandro e a borboleta (2007), de Julian Schnabel.
O jornalista Jean-Dominique Bauby, editor da Elle, interpretado por Mathieu Amalric, está no auge: carro novo, rico, bem sucedido, invejado e pretensamente livre. Deixou a família e evita qualquer relacionamento maduro com as mulheres. Quando tem o derrame, descobre que se afastou das coisas essenciais, do amor, da responsabilidade, dos filhos, da cultura. Pelo olho esquerdo, que ainda está vivo e em movimento, ele vê o resultado do choque entre a vida estéril e o acervo acumulado que abandonou.
No fundo, tinha deixado à deriva seu próprio país ou o que há de melhor nele.

4

No filme, uma das coisas essenciais que voltam é a memória. Marcel Proust, no capítulo Combray, do livro No Caminho de Swan, escreveu: “Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis – , o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
Esses vestígios imateriais são representados, no filme, pelos espíritos, que vagam arrastando suas longas vestes e cercam o paciente terminal de visões, atenção e afeto.
Tudo some da vista, o dinheiro, o crédito, a casa hipervalorizada. Vemos então que essas evidências eram a ilusão dos nossos sentidos bem nutridos, que o sentimento de devorar o mundo todos os dias não tinha base sólida.
Em O escafandro e a borboleta, a vida desperdiçada, sem conexão com o passado, dá lugar à criação e à emoção, presas num corpo imobilizado.

5

Divagações à parte, sou do tipo de viajante para quem melhor que viajar só mesmo viajar sem compromissos de turista. Marujo de primeira viagem que chega a Paris tem de fazer a via sacra: Louvre, d’Orsay, Pompidou, Champs-Elysées, Opera, Arco do Triunfo, Montmartre, Notre Dame, torre Eiffel.
Você pode até mesmo não subir, mas terá de no mínimo de dar uma olhadela na dama de ferro.
De minha parte, acho que levei uns vinte anos para decidir-me a subir na torre. Nas minhas primeiras andanças em Paris, sempre me pareceu de uma vulgaridade extrema, um lugar comum abominável, subir na torre Eiffel. Alguns anos mais tarde, concluí que era preconceito meu. Tentei cumprir o ritual de milhões de turistas. Não deu. Havia filas de mais de duas horas em três patas da torre. Na quarta pata, destinada aos atletas que topavam subir a pé, havia pelo menos quinhentas pessoas. Claro que não subi.
Anos mais tarde, milagre dos milagres, passei por lá num dia em que as filas estavam curtas. Foi assim que, visitando Paris quase todos os anos, só depois de uns 20 subi na torre Eiffel, quase por acaso.

6

Nesta viagem de fim de inverno, mas com a Europa ainda gelada, meu descompromisso com monumentos foi total. Verdade que acabamos sempre tropeçando neles, ou Paris não seria Paris. Desta vez, dediquei-me a meu esporte predileto: a visita a livrarias, galerias de arte, bares e restaurantes.
Para a torre Eiffel só fiz um vago aceno, e isso de muito longe. Montmartre, muito rapidamente para uma prece na Sacre Coeur. La Défense, nem pensar. Não combina com o meu olhar essa Paris insólita e com ares de Nova York. D’Orsay, só para rever A Bailarina, de Degas, e Louvre, só de passagem rumo a algum boteco ou restaurante estrelado.
De cara, um choque: a P.U.F., aquela acolhedora e farta livraria da Place de la Sorbonne, com cinco andares de livros, não existe mais. Se bem que o fim de uma livraria não faz nenhum abalo na Cidade Luz. Paris oferece ainda mais de quatro centenas. Mais as FNACs, megamagazines dedicados à música, livros e eletrônicos. Em matéria de livros, CDs e DVDs, a quantidade é tal que chega a assustar o cliente. Melhor ir logo às estantes especializadas, escolher o que se quer e fugir às pressas das tentações das compras por impulso. Sem falar que livro pesa na volta.

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Quanto a bares e restaurantes, Paris parece sempre a mesma. Quando a visito, posso me dar ao luxo de eleger casas com mais de século. Lá estão, imutáveis, como se o tempo não tivesse passado, o Dôme, Deux Magots, de Flore, la Rotonde, cafés sempre charmosos mas que prefiro evitar, por demais turísticos.
Mesmo assim, entrei no Deux Magots. Era uma tarde fria e com muita sorte consegui uma mesa dentro do café. Na Brasserie Lipp, em frente ao Deux Magots, só com hora e meia de espera.
No Le Tain Bleu, passado o horário do almoço só me servem um lanche. O suntuoso restaurante dentro da estação de trem Gare de Lyon é de estilo Belle Epoque e foi construído para a Exposição Universal de 1900 ao mesmo tempo que o Grand Palais, Petit Palais e a Ponte Alexandre III.
Hoje em dia o restaurante está tombado como patrimônio histórico nacional.

8

Dura é a luta pela comida em Paris. Passo em frente ao Procope e faço uma volta no tempo. Fundado em 1686 e tido como o mais antigo café do mundo, Le Procope foi freqüentado por La Fontaine, Molière, Racine, Robespierre, Rousseau, Voltaire, Diderot, d’Alembert e demais enciclopedistas, Balzac, Victor Hugo, Verlaine, George Sand, Anatole France. Nele, Benjamin Franklin trabalhou na redação da declaração de independência dos Estados Unidos.
Numa vitrine, há um chapéu de Napoleão Bonaparte, que o teria deixado como garantia de uma dívida.
Instalado em uma antiga casa de banhos turca, tem interiores belíssimos e – surpresa! – cardápio com preços relativamente humanos.

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Não muito distante dali, na Place de Vosges, onde morou Victor Hugo, está o sempre refinado L’Ambroisie, reputado por ter um dos chefs mais estrelados de Paris, Bernard Pacaud. Mas seus padrões culinários estão em declínio. O carré de Cordeiro de leite que o Bernard prepara no Bistrô Grand Cru, em São Luís, é melhor. A decoração lembra um palazzo italiano. E os pratos mudam com as estações e pode incluir truffas brancas ou um poulard de Bresse demi-deuil (frango assado com trufas negras). Refestelei-me com esses sabores que, às vezes, me faltam em São Luís.
Faço uma lírica incursão no Bel Canto, um restaurante onde o mundo é realmente um palco. A casa possui um staff de garçons-cantores (estudantes e professores do Conservatório de Paris) que durante a refeição cantam árias de Puccini, Bellini, Rossini, Mozart, Verdi, etc. Com seu menu lírico, Le Bel Canto deve ser um dos segredos mais bem guardados de Paris.
Na rue de Rivoli, uma rápida pausa para tomar o chocolate quente do Angelina, uma delícia! A casa de chá super celebrada entre os franceses exibe, com orgulho, um de seus recordes: 300 “Mont Blanc”, a especialidade da casa à base de “merengue, crème de marron vanillée et chantilly”, servidos diariamente!
Do lado direito do Angelina fica o célebre Hotel Maurice. Há quase 200 anos Le Meurice tem sua história entrelaçada com a história da França, e com as evocações culturais e gastronômicas de Paris.
Fundado em 1835, com uma arquitetura absolutamente clássica fincada ao pé do jardim des Tuileries, no centro de Paris, o hotel ousou chamar o frenético arquiteto Philippe Starck para renovar suas áreas comuns. E, de quebra, o chef Yannick Alléno, 40 anos, que conquistou 3 estrelas do Guia Michelin para o imponente restaurante, cuja decoração foi inspirada no Salão da Paz do castelo de Versailles (que permanece em sua essência). Hoje se vêem cortinas bufantes (embora discretas) e gigantescas peças de cristais Baccarat (cuja transparência as integra com delicadeza no ambiente) em contraponto com os bronzes, mármores e afrescos originais. São o cenário para uma cozinha criativa e quase sutil, por mais que se apegue a tradições.
Aliás, há algo em comum na presença de dois artistas – o arquiteto Philippe Starck e o chef Yannick Alléno – na atual fase do hotel Le Meurice. Starck não é radicalmente futurista. Ele antes combina elementos tradicionais com interferências modernas e combinações alucinantes de elementos de várias épocas.
Alléno, longe de ser um Ferran Adrià, criador de técnicas revolucionárias, é um garimpeiro de sabores tradicionais, os quais manipula de forma extremamente habilidosa e moderna, conferindo uma delicadeza emocionante a fórmulas que estão na memória gustativa dos franceses e de boa parte da cozinha ocidental.

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É essa a Paris que me fascina. Paris e seus sabores, seus bistrôs, seus molhos que nos enfeitiçam e que nos dão tanto prazer que achamos que estamos sonhando.
Freqüento essas casas há quase três décadas e são sempre iguais. Nelas só mudam os preços e os garçons.
É de supor-se que desde séculos tenham a mesma configuração e esta é a magia das capitais européias, a sensação de transportarmo-nos para séculos passados ao entrar em um restaurante.

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O prazer de observar as ruas

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O prazer de passear pelas ruas foi identificado primeiro em francês, na virada do século XIX para o XX, e acabou gerando um personagem imortalizado por Baudelaire: o Flâneur, o flanador, aquele homem que se mistura com a multidão e vai passeando, degustando o prazer de observar as ruas.

Se eu tivesse que resumir o que seria a arte de flanar ou definir o que é um flanador, diria que é a pessoa que considera as ruas de forma diferente: elas passam (em si) a ser um espetáculo de descoberta e conhecimento de toda uma sociedade.

Foi lendo o primeiro livro de Lobo Antunes (um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo), o célebre Memória de elefante, de 1979, que acabei descobrindo quase o cheiro de uma Luanda, e, por que não?, de quase toda uma Angola arrasada pela guerra, em que as pessoas engoliam o desespero em forma de loucura.

O personagem principal, o psiquiatra, de quem toda memória sai, e com ela a prosa e a saudade de uma Lisboa, nos conta sua experiência dolorosa e sofrida pelas ruas dessa Luanda destemperada. Lobo Antunes constrói uma cidade e um personagem com forte inspiração autobiográfica, numa ópera (ou fado?) com certeza de inspiração barroca.

Na literatura urbana do Brasil, há um longo histórico de autores que trataram das ruas: Joaquim Manoel de Macedo e suas “Memórias da Rua do Ouvidor”, João do Rio, Rubem Fonseca, Machado de Assis, Marques Rebelo, Renard Perez. Mas foi lendo Flanando em Paris, de Carlinhos de Oliveira, um dos intelectuais mais populares e polêmicos do Rio de Janeiro nas décadas de 60 e 70, que encontrei um painel dos impasses e perplexidades do cidadão brasileiro, esteja em Paris, Londres, Amsterdã ou Lisboa. Sentimentos compilados durante suas andanças por essas cidades, acompanhado por artistas, dramaturgos, escritores, gigolôs e belas mulheres.

No livro estão os encontros com Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre e Fernando Sabino (a quem apresentei São Luís quando o meu olhar começava a descobrir os segredos e mistérios desta cidade). A falta de dólares, a abundância de tempo e a insaciável curiosidade. As descobertas dos sebos e dos cafés, a efervescência cultural.

Insólita e misteriosa, a Paris de Carlinhos de Oliveira não se encontra nos guias turísticos. Não se descortina dos telhados de suas antigas igrejas ou do topo da Torre Eiffel. A Paris desse cronista irreverente e inconformista está no subterrâneo, onde os olhos dos homens brilham como lâmpadas mortiças em procissão. Se revela nas observações desse porta-voz dos meandros da alma. Nas descrições da boemia, nos fragmentos de diálogos, nas reflexões sobre cultura, dinheiro, morte, solidão, amor, amizade, hipocrisia, preconceitos.

São textos construídos com humor cáustico que lançam um olhar objetivo sobre a condição humana, em tudo o que esta tem de oculto e ambíguo. São relatos que enviou do velho continente, tirados de seu caderno de andarilho, de seu espírito sensível que tenta decifrar em si próprio e nos outros o enredo desta complexa teia que é a nossa existência.

Escritor confessional por natureza, Carlinhos de Oliveira encontrou na crônica o canal ideal para exprimir toda a inquietude de seu mundo interior. Ele via, engolia, assimilava, transformava e só então escrevia. Fragmentos soluçantes, textos desesperados que não poupavam nada. Muito menos a si próprio. Tinha a autocrítica dos doutores em alma humana e sabia que viver era uma forma de colecionar prisões.

Agora, em Paris, com essas duas preciosidades literárias – Memória de elefante e Flanando em Paris – nas mãos, tento mais uma vez mergulhar na alma da cidade, cujas ruas são para mim uma questão presente, próxima. E como um flâneur, ando pelas ruas frias de Paris às vésperas da Primavera e lembro do que outrora foram as ruas de São Luís.

Em Paris, o tempo de Baudelaire admirado pelos personagens que passam, não sofreu com a fuligem do tempo. Já em São Luís, as ruas ainda precisam redescobrir sua vocação humana, no mesmo movimento em que descobrimos, no íntimo, essa vocação como um desenho ou espírito, quando já não nos lembrávamos o que exatamente significava.

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Paris não é uma cidade, é um sonho

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Março 2

1

Grandes cidades temos muitas. Nova York é a metrópole alicerçada pelo dólar, mas Paris é insuperável.
Em Paris viveram Proust, Victor Hugo, Balzac, Zola, Sartre, André Gide, o cinema nasceu em Paris. Tem a Ópera, a Bastilha com o grito de igualdade, liberdade e fraternidade.
Existe um grande passado na sua estrutura e a cidade, como certas pessoas, nos conquista no primeiro momento.

2

Na primeira semana de março, quando estava planejando rever Paris, peguei um DVD do filme Paris, eu te Amo. São dezoito pequenas histórias, ou vinhetas, como devemos dizer, onde Paris se destaca esplendorosa como ambiente.
Apenas duas vinhetas são péssimas e nada possuem ilustrando Paris, aquelas dos vampiros e um velhote que se mete sem sentido no mundo da moda que é ridículo. Mas os outros são bons de se ver, divertimento do melhor, com doses de amor sempre presentes.
Os diretores pertencem a vários países e temos até o brasileiro Walter Salles como autor de um conto.

3

Em Paris, eu te Amo, vários atores norte-americanos que gostam da capital francesa participam, como Gena Rowlands, Ben Gazzara e Nick Nolte, ao lado de francesas maravilhosas como Fanny Ardant e Juliette Binoche.
Ao trivializarem Paris, os cineastas conseguiram destacar as emoções, sensações, descobertas, medos, enfim, a humanidade dos moradores da cidade, que estão longe de confirmarem o pastiche “loiro de olho azul”: são imigrantes, traficantes, viciados, estudantes, mães de família e demais pessoas em busca de afeto – ou seja, um mosaico de habitantes do mundo todo.
Eu poderia sempre assistir ao filme como exercício de lembranças, vendo Montmartre, Pigalle, esquecendo o “banlier” ou os subúrbios distantes, modernos imensos, feios, alguns com muita miséria.
Mas aquilo não é Paris.

4

Paris tem sido uma festa para os artistas muito antes de Ernest Hemingway beber seus tragos e escrever O Sol também se levanta no café La Closerie des Lilas, em Montparnasse.
Há muito tempo Paris vem sendo o cenário dos apaixonados, amantes e dos enlouquecidos de amor.
Vários amores que se tornaram referência para os nossos, nasceram em Paris.

5

À mesa, Paris é uma elegia aos sentidos. Do sabor delicadíssimo de um marron glacé ao gosto rasgado de um steak au poivre servido com batatas soutée na maioria dos restaurantes populares.
A Paris chique não é fashion nem está na onda. Ela tem estilo.   
Coco Chanel seria a primeira a concordar com a afirmação. É dela esta frase: “A moda morre, mas o estilo permanece”.

6

E o lado verde se espalha por todos os cantos da Cidade Luz. São mais de 600 mil árvores – uma para cada quatro habitantes; 400 parques, jardins e “promenades”; uma centena de jardins decorativos; 400 canteiros sobre as ruas; e dois imensos bosques cobrindo mais de 1.700 hectares.
Com tudo isso você pode chegar a uma conclusão: Paris não é uma cidade, é um sonho.

7

E é dentro desse sonho que vago pela noite fria de Paris pensando na bailarina de Edgar Degas que vi no Museu d’Orsay. Cada qual tem um enigma que transcende meu pensamento, o supositório que algum doente terminal está recebendo em apartamento hospitalar e os ásperos monumentos que a história tece com dedos enrolados em gaze.
No museu, a moça de Degas é companheira de faraós egípcios, deusas da Índia e assombros budistas do Japão.
E dialoga com uma figura de Rembrandt, perdida entre a poeira e o chiaroscuro da pintura setecentista do holandês sutil, ou talvez com as criaturas de Monet ou Picasso, contemporâneas e mais decifráveis.

8

Se estou me lembrando das pérolas da visita ao Museu d’Orsay, pela janela do hotel pressinto Paris crescendo dentro da noite que acende e apaga.
Enquanto no Brasil as cidades estão desonradas pelo painel onde se escreve a imutável tolerância com a politicalha generalizada, Paris é tradição e, também, desenvolvimento.
Por isso se ouve o barulho dos guindastes que transportam materiais de construção em meio ao boom de investimentos privados e públicos.

9

Esta noite tem para mim um encanto especial. Tem a bailarina de Degas que se dilui em um rosto de pincéis de sombras, mas isso não chega a ser um protesto. Ela está orgulhosa de morar definitivamente em Paris.
Ao mesmo tempo em que se destroem templos de arte em cidades cucarachas do Brasil, no processo de erupção de supermercados ou igrejas suburbanamente universais, um simples projeto de área de cinema e centro cultural conquista milhões de euros para massagear a criatividade humana.
A bailarina de Degas dança, dança e dança alegremente em Paris.

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E com o coração inundado de beleza, rompo a aurora, penso em raptar uma bailarina de Degas e saio a caminhar pelas ruas orvalhadas de Paris amanhecida. E sinto frio.

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O Carnaval é folia que recria o mundo

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Fevereiro_2

Porque não fica o que pode permanecer, nem remanesce aquilo que é transitório, o Carnaval encerrou na última terça-feira mais um de seus ciclos de alegria e agitação.

O velho Machado de Assis não gostava de Carnaval. Mas admitia não haver melhor remédio contra o tédio, o fastio, o desgosto:

– Conheci defuntos que ressuscitaram só por conta dessa celebração.

Numa crônica de fevereiro de 1864, o “fundador” das boas letras brasileiras escreveu, a propósito do tríduo:

– O Carnaval é um hiato na vida comezinha. Paixões, interesses, mazelas, tristezas, tudo “se retira” e vai viver em outra parte…

O Carnaval recria o mundo. Em que outra época do ano se poderia abraçar a moça de umbigo de fora, pular com ela horas a fio, a mão boba sobre o quadril nu, ao som do velho e interminável Jamelão?

Com direito a um “breque” no samba:

– Eu agora sou feliz / Ai eu sou feliz / Eu agora vivo em paz…

O Carnaval é permissivo, ao ponto de dispensar o ritual da cantada.

O pretendente se acercava do salão, no Lítero ou no Jaguarema, a pista de dança transformada em vitrine. Já embalado por meia-dúzia de “cubas”, cada franguinho imberbe sentia-se um conquistador vacinado contra as desilusões. A rejeição também não era incomum, mas virava “brincadeira”. As meninas se organizavam em pencas, de mãos dadas, ou num “trenzinho”, o salão arrumado em “carrossel”. A rapaziada nas beiradas, tarrafeando sorrisos, espionando as favoritas, exercendo o charme e a pescaria.

Até que o frangote ganhasse coragem e, lá pela vigésima volta – zás! Pegava na mão. Se não fosse repelido, o felizardo incorporava-se ao carrossel, com direito a enlaçar os ombros e as ancas da eleita. Uma glória!

O velho sobrado da sede social do Lítero, ancorado à boca da Praça João Lisboa, tremia nos anos 1960. Os sambas, marchas-rancho e marchinhas que animavam o salão, nutriam-se dos sucessos chegados do Rio de Janeiro e dos seus concursos carnavalescos. Tão “ricos” e talentosos que, em 1939, por exemplo, classificaram futuras obras-primas como Aquarela do Brasil.

Os anos 1960 ressoam “agora” em meus ouvidos, com Madureira chorou, Quem sabe, sabe, Vai ver que é e Eu chorarei amanhã – sons que se regeneram em minha orquestra mental, feita de trumpetes, trombones de vara e muita percussão. Notas que se alojam em minha cabeça, como um piolho, ao ponto de nela encontrar um velho confete.

No fundo, era disso que se tratava. Pegar na mão. Para os franguinhos “debutantes”, ainda não era o tempo – e as rejeições machucavam. Para os marmanjos, a vida era mais fácil. O salão era uma quase alcova: olho no olho, mão na mão, e se possível, mão em mais algum lugar.

A festa girava em torno da Praça João Lisboa, passarela natural dos blocos de sujos e das escolas de samba da cidade.

Do Casino Maranhense, velho galeão iluminado da Avenida Beira-mar, ecoava o refrão:

– Eu chorarei amanhã / Hoje eu quero é sambar… – enquanto a “strela matutina” tingia de ouro a baía de São Marcos e o sol de fevereiro iluminava a Praça, a Matriz, a Beira-mar…

Agora, resta esperar 2011 para mais uma celebração à alegria, ao amor, à vida.

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