CARNAVAIS IDOS E VIVIDOS

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Passaram-se os anos, mas da minha memória não saíram e nem da minha retina se apagaram as cenas, as personagens, os preparativos e as brincadeiras do carnaval de Itapecuru, marcado pela simplicidade e pela espontaneidade.
Sou um saudosista assumido, por isso sempre recordo o carnaval de minha infância e juventude, intensamente vivido na cidade onde tive a ventura nascer.
São lembranças e evocações que o tempo não consegue destruí-los. Tempos memoráveis aqueles em que o carnaval ainda não havia passado por radicais mudanças e sofrido significativos desvirtuamentos, que os modernos meios de comunicação social, principalmente a televisão, se encarregaram de difundir e de transportá-los das grandes cidades para as comunidades urbanas e rurais do país. Estas, pela sua vulnerabilidade diante da potência da mídia eletrônica, se viram compelidas a trocar as brincadeiras populares e tradicionais por manifestações culturais, que, invariavelmente, nada têm a ver com suas raízes e fontes inspiradoras.
Essa a realidade que hoje vejo, com os olhos de ontem e marejados de saudade. Na minha cidade, a população passou a brincar um carnaval longe de suas tradições, esquecendo e abandonando os bailes em casas residenciais, os blocos, as batucadas e os mascarados. No lugar deles, os abadás, as bandas, geralmente de outros estados, tocando músicas baianas e de forró, num palco iluminado e sustentado financeiramente pela prefeitura municipal.
Como os tempos idos e vividos não voltam mais, resta-me apenas registrar, através destas poucas e mal traçadas linhas, como era o carnaval brincado na minha terra, igual a todos que existiam no interior do Maranhão, mas sumidos do mapa por força da modernidade e dos meios de comunicação.
Até antes da fundação do Itapecuru Social Clube, ocorrida em 5 de novembro de 1961, todos os bailes promovidos na minha cidade, fossem carnavalescos ou não, se realizavam em casas residenciais, geralmente nas mais espaçosas, para que os foliões pudessem brincar mais livres e descontraídos. Três residências se enquadravam nesse quesito: a de Paulo Bogéa, meu avô, na Praça da Cruz, a de Wady Fiquene, na Rua do Egito, e a de Bento Nogueira da Cruz, na Rua do Sol. Havia um rodízio entre elas. Nessas espaçosas e confortáveis moradias, cedidas sem ônus pelos proprietários, com varandas amplas e salas arejadas, as famílias itpacuruenses encontravam o ambiente ornamentado e propício para brincar um carnaval à base de muito confete e serpentina.
A organização das festas de Momo cabia a uma comissão, que cuidava da programação e do levantamento das despesas, estas, bancadas pelas famílias mais influentes da cidade. Os bailes não passavam de três, sendo dois noturnos, no domingo e na terça-feira, dedicados aos adultos, e uma vesperal, na segunda-feira, oferecida aos jovens e às crianças. As noitadas começavam por volta das 20 horas e quando os relógios passavam da meia-noite, já se prenunciava o momento de acabar a festa.
Os brincantes geralmente compareciam fantasiados. As fantasias das mulheres, preferencialmente os dominós, não eram luxuosas e nem provocantes. Pontificavam pela sobriedade e singeleza, traços marcantes de uma sociedade conservadora.
O que fazia sucesso e seduzia os homens eram os lança-perfumes, comumente chamados de rodós, produtos importados e livremente permitidos pelas autoridades policiais e ainda não estigmatizados como drogas.
Abdala Buzar, meu pai, levava para os bailes dezenas de caixas de rodó, para prazerosamente lançá-los nos olhos das pessoas que ficavam dentro e fora dos bailes. Ele priorizava as mulheres que se acotovelavam no chamado “sereno” da festa, de onde e com os olhos atentos, espionavam os foliões que tentavam burlar as regras da moral itapecuruense, que, no dia seguinte, transformavam-se em futricas e ganhavam repercussão por causa do boca a boca.
A animação musical da festa era entregue ao maestro Joaquim Araújo, encarregado de recrutar e ensaiar os músicos da cidade para que nos bailes se mostrassem afinados e aptos à execução de sambas e marchas conhecidas, fáceis de cantar e sem duplo sentido, tais como Aurora, Chiquita Bacana, Jardineira, Lero lero, Nós os carecas, O teu cabelo não nega, Zé Pereira, Pirata da perna de pau, Tem gato na tuba, Taí, Tomara que chova, Daqui não saio, Cordão dos puxa-sacos, Linda morena e Touradas em Madri.
Nas noitadas carnavalescas, consumiam-se bebidas quentes- vermutes, martinis e conhaques, e frias- cervejas e refrigerantes. Bebidas refinadas, tipo whisky, nem pensar. Ninguém ficava de porre.
Além dos “bailes de primeira”, assim chamados por reunir a elite da cidade, não devem ser esquecidos os “bailes de segunda e de terceira”. Os “bailes de segunda”, freqüentados também por famílias, mas discriminadas por causa da cor da pele e da renda, realizavam-se na casa do marceneiro Bruno Guterres e animados pela banda musical do maestro Pedro Maranhão. Os “bailes de terceira” eram promovidos nas casas voltadas para a prostituição, sendo as mais famosas as pensões da Apolônia e de Maria de Taxoxa, animados pelos músicos Joca Aranha e Sinhô do Costa.
Quanto ao carnaval de rua, brilhava pela espontaneidade e participação popular. As brincadeiras concentravam-se na Praça da Cruz e giravam em torno de grupos que se organizavam em blocos ou formavam as batucadas. Havia os blocos de homens e de mulheres, que desfilavam com roupas simples e coloridas, e bailavam ao som dos instrumentos de percussão. Os blocos não deixavam de cumprir uma antiga tradição carnavalesca: entravam nas residências particulares, onde eram festivamente recebidos e aos seus integrantes serviam-se lanches e bebidas, de preferência, as alcoólicas.
Além dos blocos e das batucadas, outras figuras também chamavam as atenções da comunidade, que se acotovelava nas ruas e praças desde as primeiras da tarde: os mascarados, solitários ou agrupados. As crianças corriam atrás deles com o propósito de identificá-los.
Não posso terminar esse relato sem falar de uma figura humana que se constituía em atração no carnaval de Itapecuru : o comerciante e político Abdala Buzar. Chovesse ou fizesse sol, vestia-se de mulher e entrava nas casas dos amigos e correligionários para banhá-los de pó. Ninguém se zangava. A casa paroquial era parada obrigatória, para uma visita carinhosa ao padre José Albino Campos, que o recebia fraternalmente. Certa feita ali encontrou o arcebispo do Maranhão, dom José Delgado, seu dileto amigo. Não titubeou em cobri-lo literalmente de pó, fazendo a batina preta mudar de cor e ficar branca. O prelado reagiu a tudo aquilo com risos e alegria.

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