JOSUÉ MONTELLO E A GRIPE ESPANHOLA

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Da fabulosa obra romanesca do escritor Josué Montello, constituída de vinte e quatro livros, quatorze ele privilegiou o Maranhão como cenário.

São Luís e Alcântara foram as cidades que serviram de pano de fundo para o intelectual conterrâneo  construir os enredos de seus romances, que se tornaram nacionalmente conhecidos com estes títulos: Janelas fechadas, Labirinto de espelhos, Os degraus do paraíso, Cais da Sagração, Os tambores de São Luís, Noite sobre Alcântara, A coroa de areia, Largo do Desterro, Aleluia, Pedra Viva, Perto da meia-noite, Um beiral para os bentevis, Uma sombra na parede e Sempre serás lembrada.

A GRIPE E A ELETRICIDADE

No terceiro livro, da saga montelliana, intitulado “Degraus do paraíso”, editado em 1965, a ação transcorre em São Luís durante a epidemia da gripe espanhola e trata do fanatismo religioso, em que a morte é a presença constante, tanto física como espiritual.

Ao escolher tema tão dramático como a morte,  Josué transporta o leitor para o século passado, mais precisamente para o ano de 1918, quando a  gripe espanhola invadiu o Brasil e chegou ao Maranhão num momento paradoxalmente auspicioso, em que o prefeito de São Luís, Clodomir Cardoso, inaugurava a iluminação elétrica na cidade, fazendo-a ingressar no processo de modernização, assunto tratado com muita competência pelo professor Raimundo Palhano, no extraordinário livro “A coisa pública em São Luís”.

A GRIPE ATACA

Ao mesmo tempo em que a população ludovicense vibrava com a introdução da eletricidade, se deparava com a presença da gripe espanhola, assim relatada pela pena brilhante de Josué: “Como se a nova luz da noite os atraísse, começaram a chegar as más notícias do Norte, do Centro e do Sul. A morte andava lá fora matando às cegas. Um arrepio de frio, febre alta, delírio, e o que há pouco não era nada passou a ser o desespero e a sepultura. Dezenas, centenas de casos, destruindo famílias inteiras de um dia para outro, no Rio de Janeiro. Ninguém tinha sossego. E quando a morte chegaria também a São Luís? Toda gente se entreolhava, apegando-se aos seus santos. E as lâmpadas elétricas, nos negros postes da iluminação urbana, tinham um ar de espanto, que amedrontava. De repente, uma noite, no começo de outubro, a morte entrou de manso pelas ruas tortas que se esgueiram para o mar, escondida no corpo de um marujo de olhos em brasa e andar gingado. Dias depois a cidade lhe sentiu a presença fatal, nos primeiros esquifes roxos que saíram as casas do meretrício para o cemitério, à noite, sem acompanhamento, sob o olhar das lívidas lâmpadas elétricas.”      

O PÂNICO NA CIDADE

Prossegue o escritor, fazendo da realidade um episódio de sua obra ficcional: “Dentro em pouco, não apenas dali, das sombrias ruas cambaleantes, partiram outros esquifes. Também dos sobrados da Rua Grande, da Rua da Paz, do Largo do Desterro, da Praça da Misericórdia, do Largo da Madre Deus e do Beco de Santo Antônio. Depois, foi o pânico. Todos fugiam da morte e a morte os seguia, invisível e tenaz. Quando menos se esperava, ei-la a dar de si, levando homens, noivas e crianças. E São Luís a fulgurar, nas suas horas de recolhimento e medo, perplexa, atarantada, o esbanjamento da luz elétrica no ermo das ruas.”

A METÁFORA DA MORTE

Num trabalho, sobre a metáfora da morte em Os degraus do paraíso, de Josué Montello, inserido no livro “Entre memória, ficção e cultura”, os professores Thiago Victor Araújo dos Santos Nogueira e José Dino Costa Cavalcante, escreveram: “N’os Degraus do Paraíso, não raro, buscou-se a morte como última demonstração de Vontade, de consciência diante da inevitabilidade da Morte, logo nos primeiros momentos em que a doença se espalha pela cidade, em que a fuga também foi um recurso derradeiro na tentativa de manterem-se vivos. Entretanto, a Morte os segue, faz-se presente quando tentam fugir do ambiente urbano, ou se manifesta num tiro de revólver direcionado à própria têmpora, ou ainda as cordas de uma rede a servirem de instrumento para dar cabo a própria vida, como nos dizeres do autor do romance.

A REALIDADE DA MORTE

Dizeres assim registrados por Josué Montello: “Quem podia dispor de um abrigo no interior da Ilha, nas casas de sitio ou nas palhoças de beira de estrada, tratara de fugir da Morte. E a Morte não raro acompanhava os fugitivos, oferecendo-lhes de repente na Maioba, no Anil, Jordoa, em São José de Ribamar, e obrigando os sobreviventes a novas fugas para lugares ainda mais apartados. Na Rua dos Afogados, um senhor louro tinha-se atirado da janela do mirante, depois de gritar que estava doente. E não fora esse o único caso do medo da Morte, a impedir ao suicídio. Um oficial da Polícia, sentindo-se febril, encostara o cano da arma na cabeça e dera ao gatilho, diante dos companheiros estupefatos. Um funcionário do Tesouro, gripado havia dois dias, amanhecera enforcado na escápula da rede. E mais de um corpo amanhecera boiando na orla da Praia do Caju.”

ONTEM COMO HOJE

Naquele tempo, relatava o romancista maranhense: “Com a morte a devastar a cidade, já as famílias não se socorriam mutuamente, como nos primeiros dias da gripe. As reuniões e ajuntamentos tinham sido proibidos pela Saúde Pública. Cada pessoa cuidava de si, agarrando-se à vida com as cautelas mais desumanas. Não raro os corpos das vítimas eram abandonados nas casas vazias ou largados à porta do Cemitério. E do Sul, continuavam a chegar notícias arrepiantes de cadáveres que eram jogados uns sobre os outros, nas largas cavas coletivas. No Maranhão, por seu lado, não havia mais ataúdes. Até mesmo a simples mortalha dos lençóis tinha sido dispensada. Um horror. Ninguém parava nas calçadas para saudar um conhecido, na velha São Luís ensolarada e jovial: andava-se de fugida, passo apressado, lenço ao nariz, e só por extrema necessidade se saia à rua. Um espirro, longe, criava o pânico, determinando reviravoltas e correrias. As janelas fechadas, nas estreitas ruas desertas, mesmo nas horas altas do dia, em pleno centro da cidade, davam medo.”               

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