Crônica de José Fernandes: “Boêmios só os de outrora”

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UM VELHO jornal dos meados do século passado, que por curiosidade li no arquivo da Biblioteca Pública Benedito Leite, fazia referência a um grupo de boêmios, todos conhecidos intelectuais, que floresceu em São Luís nos primeiros anos do século findo, constituído por advogados, escritores, médicos, professores e, entre estes,  Nascimento Morais, jornalista famoso, de quem se dizia que, ao ditar seus artigos diretamente ao linotipista, tresnoitado, constantemente dormia no meio de uma frase e, ao ser despertado, prosseguia exatamente a partir das últimas palavras que ditara, sem perder o sentido da frase e do assunto abordado.

Aquele grupo de cultos boêmios, todos muito bem relacionados socialmente e nos meios culturais, e respeitados pelas suas atividades profissionais, notabilizava-se pela irreverência, pela crítica mordaz, pelas piadas irônicas como escrachavam, nos seus encontros de bar, as mazelas procedimentais das autoridades dos três poderes, dos maus profissionais de todas as categorias, incluindo os que lhes eram próximos.

Esses barulhentos homens letrados gozavam da intimidade dos donos dos bares; não raramente penduravam as despesas, e quem não aceitasse os fiados seria desprestigiado e ninguém se surpreenderia se logo em seguida não aparecesse nos jornais referências desairosas a respeito do estabelecimento que lhes negara a pendura: propagavam mal atendimento por parte dos proprietários ou dos garçons, falta de higiene, tira-gosto prejudiciais à saúde, fornecimento de cerveja choca, enfim, tudo o que os denegrisse a reputação. Não perdoavam as desfeitas.

Em tempos mais recentes, aí pela década de 1960, conheci um grupo de boêmios integrado, também, por jornalistas, poetas, escritores, pintores e alguns “penetras” que eram admitidos em decorrência de velhas amizades, afinidade de humor ou outras “qualidades”. Entre os poetas e jornalistas boêmios encontravam-se os irmãos José e Paulo Nascimento Morais, José Chagas (e seu saxofone), Antônio Almeida, Erasmo Dias, Amaral Raposo, Saraiva Neto e outros ocasionais.

Em um certo dia eu, ainda não entrado na casa dos 20 anos, em razão de ter publicado um livrinho de versos, e por especial concessão de Zé Morais, participei, como discreto convidado, de uma farra homérica com alguns daqueles renomados praticantes do jornalismo, das artes e da poesia maranhense da época.

E ali, durante um dia inteiro, em meio aos goles de cervejas “estupidamente geladas”, ouvi os inteligentes bate-papos daquela gente, conversas opinativas nas áreas da política, da literatura e das artes; destrinchavam obras e autores nacionais e estrangeiros, com citações de frases e conceitos judiciosos; havia momentos de verdadeiros debates de ideias sobre os temas que surgiam; de vez em quando se tornavam acerbadas as discursões, em face das divergências entre os contendores, sempre enfáticos na exposição de seus pontos de vista, mas respeitosos entre si, mesmo alterados pelas emanações etílicas.

No decorrer das horas, de vez em quando transferiam os locais de libação e eu os acompanhava – passávamos a beber e deglutir em bares mais afastados do centro, animados pelo saxofone de Chagas, tudo num clima de alegria e descontração, como se eles, comumente ocupados, não tivessem outro compromisso senão gozar momentos de descontração.

Ao mudarem de ambiente, mudavam também os temas das conversas, para diversificar os diálogos e evitar a monotonia. Pelo que senti, ninguém ficava bêbado, ninguém brigava, embora cordialmente discordassem, partissem para gozações mútuas, apimentadas e sutis.  

E no final da farra daquele dia, quando parecia que os assuntos se esgotaram, Erasmo Dias, sempre irônico e imprevisível, comandou a “saideira”: “Senhores, agora vamos falar mal da vida de todo mundo, e quando não faltar nenhum, vamos falar mal de nós mesmos, a começar por aqueles que forem saindo; mas fica combinado que eu serei o último a ir embora”.

Alguém, um dia, haverá de contar, minuciosamente, e com o devido humor, as histórias impagáveis dos grandes boêmios que pontificaram nos antigos bares desta pitoresca ilha.

José Fernandes é membro da Academia Ludovicense de Letras, autor, entre outros, do livro “Ao Longo do Caminho”.

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