Ave Fernando Pessoa e Jair Andrade.

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Minha mãe reinventou o almoço em família. É! Na nossa, assim como acredito que em todas, esse evento acontece aos domingos e é regado, variando de um lugar para o outro, pelos sempre maravilhosos pratos especiais da vovó ou da nona, conforme a etnia e o sotaque.

Mas voltemos à minha mãe, avó de Laila, Nagib Neto e Pilar e de mais duas dúzias de netos que não são filhos de seus filhos legítimos, mas de filhos que se deram para ela, de presente, sem que tivessem que deixar de serem filhos de suas próprias mães. Algumas mães têm essa capacidade de irem acumulando filhos postiços pela vida afora, e a minha é uma dessas.

Pois bem, acontece que a minha mãe, Dona Clarice Pinto Haickel, estabeleceu que além do almoço de domingo, às vezes tipicamente árabe, comida que ela aprendeu a fazer com minha avó, mãe de meu pai, às vezes tipicamente maranhense, cuxá, torta de camarão, peixe pedra frito, carurú, carne de porco assada ou ainda, assessorada por mãe Teté que faz carne de grelha, assada no fogareiro, servida com um arrozinho branco quentinho, passado na manteiga Real, ou ainda uma suculenta feijoada de mulata gorda, com legumes, verduras, toicinho, linguiça e até com banana, milho, caju, ou sua tradicional macarronada com carne moída, frango ao forno e galinha ao molho pardo, ou o velho e rico arroz de toicinho, acompanhado de sua maravilhosa salada de camarão seco e o tradicional molho d’água, espécie de acompanhamento inventado por meu avô, pai de minha mãe, destinado a saciar a fome de sua família, grande e não abastada, complementando a refeição, feito à base de água fria, cebola, alho, limão, uma ou outra folhagem verde, daquelas usadas para temperar peixe, uma pitadinha de sal e pimenta murici, ingrediente indispensável para atrair o freguês a comer algo parecido com nada e ainda assim se sentir satisfeito e refestelado. Comida de pobre mesmo.

Não estou fazendo rodeios, é que preciso desenhar esse cenário todo para poder chegar onde desejo, o novo dia do almoço familiar Pinto-Haickel. Dona Clarice que arrumou uma função melhor que ser nossa mãe ou presidente da Fundação Nagib Haickel, agora só quer ser é avó de Nagib Neto, pois Pilar está morando com a mãe dela em Paragominas e Laila, agora com vinte anos, namorando, fazendo faculdade, passa pouco tempo em casa. Nagib Neto, que é um gigante de cento e noventa centímetros de altura, oitenta e cinco centímetros de largura e dezesseis anos de idade, é um ser que visto de longe já é imenso e de perto só não é assustador por causa de seu sorriso infantil e doce. Ele resolveu que vai comer todo o jerimum e toda a vinagreira do extraordinário cozidão maranhense que minha irmã de criação Litiane, sob a supervisão de mamãe, faz agora todas as sextas-feiras, o tal novo dia de almoço familiar.

A minha velha é muito esperta. Ela inventou esse outro dia para almoçarmos em sua casa, para poder fazer com que meu indisciplinado irmão Nagib coma direito, pois se depender dele, passa o dia todo só no cafezinho, além de aproveitar para ter os homens de sua vida aos seus pés.

Numa dessas sextas-feiras de almoço familiar, cujo prato era um daqueles imensos cozidões, presentes à mesa, dona Clarice na cabeceira, ladeada por mim e por meu irmão, que tinha ao seu lado Nagib Neto, que por sua vez tinha a sua frente, mãe Tetê e do seu outro lado mãe Loló, conversávamos sobre as coisas do dia a dia. De repente eu suspirei fundo e disse a eles uma coisa que queria ter dito há muito tempo: “Eu sou muito feliz” e continuei depois dos améns das mães, da aleluia do meu irmão e da cara de espanto de meu sobrinho gigante. “Sou muito feliz porque tenho uma família maravilhosa, mesmo que minha mãe insista em colocar apenas três quilos de jerimum no cozido, causando briga entre mim e esse mastodonte do Nagib Neto; sou feliz, porque tenho dito para todos que não sou mais candidato a deputado e de todos a quem já disse isso, só ouvi palavras de apoio, mesmo que às vezes discordantes de minha decisão; sou feliz por que amo e sou amado por uma mulher sensacional; sou feliz porque me sinto realizado em minha vida profissional, em todos os âmbitos e aspectos; sou tão feliz, que até quando as coisas não acontecem do jeito que eu queria que acontecessem, acontecem de um jeito melhor; sou feliz porque mesmo sendo agnóstico, sinto que meu Deus fala comigo das formas mais variáveis possíveis, sem precisar de intermediários, sem precisar de religare; sou feliz…” e continuei por um bom tempo enumerando os motivos de minha felicidade, quando cheguei a uma comprovação que havia tido naquela manhã, uma certeza de felicidade, em que pese ser uma certeza triste e pesarosa, pois me foi dada em um depoimento choroso, de uma pessoa que estava em um velório de um de meus grandes amigos, colega do Dom Bosco e correligionário político do município de São Domingos do Maranhão, Francisco Jair Sousa Andrade, que faleceu pouco antes de completar 52 anos, vítima de derrame cerebral.

Uma pessoa veio falar comigo e disse que ele, Jair, gostava muito de mim. Gostava tanto que se alguém dissesse que eu era feio ou mesmo gordo, duas coisas que eu realmente sou, ele partia para cima dessa pessoa, tentando mostrar as qualidades que ele achava que eu tinha.

Naquela hora comprovei que sou realmente muito feliz, pois tenho amigos verdadeiros, pessoas que estão comigo por carinho, amizade, respeito, companheirismo… Amor mesmo.

A absurda e prematura morte de Jair, de certa forma quebrou as minhas pernas, mas me fez ter certeza que a fragilidade de nossas vidas deve ser exercida de maneira liberta, simples, despojada, para que no final possa se chegar à conclusão que eu cheguei ao ver todas aquelas pessoas no velório. Como disse Fernando Pessoa, “Tudo vale a pena se a vida não é pequena” e a vida de Jair Andrade, mesmo simples, pacata, modesta, valeu muito a pena. Tenho que seguir o seu exemplo.

Depois de dizer isso, em meio ao almoço familiar das sextas-feiras, minha mãe que me acha um rebelde religioso, e eu sou mesmo, deve ter acreditado que suas orações foram ouvidas e eu encontrei o bom caminho.

Quanto a mim, tive a certeza de que Deus realmente escreve palavras corretas por tortas linhas, basta apenas que saibamos lê-las e interpretá-las.

9 comentários para "Ave Fernando Pessoa e Jair Andrade."


  1. msimplicio

    Parabens pelo texto, pela familia e , p rincipalmente pela constatação da felicidade.! parabens!

  2. Glacimar Rodrigues

    Desculpe me meter em seu texto, mas acho que ele deveria ter sido publicado no dia das mães, pois é uma homenagem maravilhosa para a sua e para a de muitos que tem a mesma sorte de ter como mãe uma mulher extraordinária.
    De qualquer forma parabéns, seu texto é impecável, sua mãe é maravilhosa, o falecido Jair Andrade era verdadeiramente seu amigo e você nesse provou aqui que era amigo dele, e ficou-nos a certeza de que Deus pai realmente escreve certo por linhas tortas.

  3. Leitor de São Domingos

    O senhor demonstra claramente sua postura digna e o seu bom caráter em seus textos, coisas que não condizem muito com o que deveria ser a postura de um membro dessa oligarquia que escraviza o Maranhão já fazem quarenta anos.
    Eu sou partidário do grupo adversário ao seu aqui em São Domingos do Maranhão, mas sempre achei que o senhor era diferente dessa gente, tanto dos daqui, quanto dos de São Luis. Não voto no senhor mas gostaria muito que existissem mais homens como o senhor na política, pois talvez assim houvesse alguma esperança de que as coisas poderiam mudar para os mais desvalidos.
    Me emocionei com esse seu artigo, em que o senhor fala do Jair Andrade. Ele nasceu preá e virou folha, mas era um homem bom e correto e pelo visto tinha no senhor um amigo a altura da dedicação e do apreço que ele lhe reservava.

    Resposta: Meu caro, esse seu comentário me deixa a certeza de que não custa caro o preço da amizade, da lealdade, do amor…
    Minha amizade com Jair é coisa que transcende a política, a verdadeira amizade não conhece barreiras nem limites, nem de grupos políticos, nem de fronteiras nacionais, nem planos físicos.
    Muito obrigado por suas palavras, são comentários como o seu que me dão a certeza de estar no caminho que escolhi trilhar.
    Um grande e afetuoso abraço.

  4. Alanna Muniz

    Joaquim,
    Embora nos conheçamos há tanto tempo, nunca duvidei do seu lado intelectual e culto, porém, desconhecia esse seu lado deveras sensível.
    Hoje com uma família redusidíssima, pois perdi meu único irmão há dois anos, meu pai querido há dois meses e os dois filhos estudando fora, me sinto muito comovida com essa homenagem valorizando os encontros familiares e sua família…sei o quanto fazem falta…Parabéns para você, para sua família e em especial `a Jacira!
    Sucesso!
    Alanna Muniz

  5. Diogo Adriano

    Joaquim,
    Mesmo agnóstico ou rebelde religioso, você anda praticando o que chamo de “verdadeiro agradecimento a Deus”, a felicidade.
    Parabéns!

  6. Junior Lobo

    Deputado Joaquim,
    Quero expressar a minha admiração e o meu repúdio numa nota só. Admiração pelo artigo, onde vemos além do brilho intelectual do jovem ousado que "arrombou" a porta da Acadamia de Letras para arejar aquele mausoléu, a extrema sensibilidade de um homem justo e humilde. Justo quando reconhece o carinho e o zelo dos que lhe querem, e ainda manifesta que também ama tanto ou mais os seus amigos e humilde quando tenta minimizar suas qualidades de bom filho, bom pai, bom amigo, cada vez mais raras no caldeirão de egoísmo em que se transformou o nosso planetinha. Embora sem conhecer-lhe pessoalmente, acompanho sua atividade intelectual pelos jornais, que sempre me renovam as esperanças deste nosso velho babaçual romper a blindagem da "curtura" das calcinhas-pretas, calcinhas-furta-cor, etc., e continuar produzindo gente com essa engranagem fundamental, o cérebro, para a consolidação disto o que a gente costuma chamar de civilização.
    O repúdio, entretanto, é por conta da precoce aposentadoria da vida pública. Mesmo sem nuca ter votado no nobre deputado, reconheço agora o seu valor e lamento que numa terra de tantos maus exemplos políticos (de todos os lados, bandas ou bandos, sem exceção) uma figura do seu porte (moral, entenda bem!) desista de remar contra a maré.
    Tenho 45 anos, sou casado, três filhos, ex-quase padre, tive a oportunidade de estudar na Alemanha e Espanha, escrevi um romance chamado Pátria Armada – e já estou concluindo outro – (que gostaria de ter a oportunidade de presentear-lhe), viajei por meio mundo, mas vejo neste momento que os mais significativos aprendizados às vezes tiramos de coisas leves, lúdicas e líricas, como o seu artigo. Parabéns!!!
    J. Lobo

    Resposta: Não tenho palavras… A não ser OBRIGADO! E ainda assim essa é uma palavra que expressa muito pouco o prazer, a satisfação e o orgulho de receber tamanha manifestação de carinho. Obrigado!

  7. Kátia

    Deputado Joaquim, essa crônica nos faz viajar, gosto dos seus textos e como você consegue fazer, nós leitores, sentir o cheiro da comida, e nesse em especial ao cozidão com jerimum. Confesso que ao ler
    fiquei até com água na boca.Quando falo nas suas crônicas essa é a minha favorita (do blog). No livro me encantei por todas…
    bjus na comadre Jacira.

  8. fran

    Navegando pela net, a procura de uma receita de salada feita com carmarão seco, para servir hoje no jantar que estou preparando para minhas queridas irmãs, me deparei com seu belissímo texto, que me reportou aos tempos de infância e adolescencia, dos maravilhosos almoços de família, aos domingos, coisa que a cada tempo que passa vai ficando mais distante, pois as famílias atualmente preferem almoçar nos shoppings. Particularmente, tento resgatar esses encontros na minha família, tal qual faz a sua mãe que transferiu para as 6ª feiras. São momentos muito prazerosos! Sempre falo aos meus filhos, irmãos e sobrinhos, que não há nada mais importante e imprescendível nesse mundo do que família. Agradeço muito a DEUS pelos 03 filhos homens maravilhosos que ELE me deu. Agradeço, também a você pelo maravilhoso texto. Que DEUS te abençoe e te inspire infinitamente para continuar escrevendo textos assim: Simples e maravilhoso!

  9. E. Lima

    Jair Andrade era homem de fibra, descendente de uma boa família de São domingos. Vc foi colega de aula do Jair como escreveu no artigo, eu fui vizinho dele na infância. Deus dê ao Jair um descanço em PAZ!!

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