Vale a pena ver o novo.

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Nestes tempos em que os ventos soprados do hemisfério norte, vindos da tão distante mas sempre presente Hollywood, nos impulsionam às salas lotadas dos cinemas para assistir às superproduções americanas, surge aqui nas nossas barbas, uma bela criação cinematográfica pelas mãos de um jovem diretor maranhense: Arturo Sabóia de Almada Lima.
Minha mulher, Beth, é uma apreciadora de bijouterias, e possui uma certa quantidade de colares, muito bem cuidados e armazenados de forma graciosa em nossa casa. Ontem à noite, ao chegarmos em casa, após assistir ao filme de Arturo, eu comentei com ela:
– Beth, quando tu morreres, tuas netas – que ainda hão de nascer – herdarão este acervo e poderão fazer dele um grande bazar… e ela me respondeu:
– “Mas, marido, nem doente eu estou …”
Este diálogo reproduz com uma leitura humorada, o denso clima vivido pelos personagens do conto A Fogueira, de Mia Couto, transformado, pela visão do diretor, nesse belo filme: Borralho.
Por estar lendo O outro pé da sereia, de autoria desse africano de Moçambique, que vem se destacando como um dos mais expressivos escritores contemporâneos, posso aqui testemunhar a qualidade do texto e parabenizar o diretor pela sua escolha.
De modo geral, as pessoas não gostam de falar da morte, fenômeno inexorável, porém nem sempre bem aceito por nós ocidentais. Somente o olhar crítico e, acima de tudo criativo, é capaz de tratar a morte, tão comovente por si só, sob um ângulo tão belo e natural.
As pessoas mais humildes tendem a tratar a morte de forma mais previsível (até porque ela, de fato, o é) e mais realista. Lá no interior, em Pinheiro, minha terra, conheço muitas pessoas que encomendam e guardam no teto da própria casa, o caixão em que vão ser enterradas. Outras fazem contratos com as funerárias e têm até carnet de pagamento!
Parece trágico, mas, na verdade, isso ainda é muito comum na zona rural de nosso Estado.
O curta metragem trata desse tema. A morte.
São 16 minutos de pura atenção para acompanhar o drama do casal de velhos que sente a proximidade da morte. Neste curto espaço de tempo o espectador é tomado por um verdadeiro torpor; o silêncio envolve a sala, imóveis, atentos, todos a acompanhar o desenlace da história.
Longe de querer fazer uma comparação com o grande Aleksandr Sokúrov, que conseguiu fazer a sua obra prima A Arca Russa em tempo real, ou seja, rodado numa única tomada, sem nenhum corte sequer, e durante uma visita ao Museu do Ermitage em São Petersbourg, num ambiente de requinte e luxo, este filme também se passa dentro de um espaço limitado. Na verdade, um minúsculo casebre descoberto pelo diretor no interior de Goiás, serve de cenário para o desenrolar do drama. As cenas, devidamente enquadradas, fechadas, iluminadas como por um raio tênue de luz, a atmosfera de uma vida de solidão, o fogão de lenha fazendo o registro de um tempo perdido e dos costumes mais tradicionais da vida no campo, carregam a emoção do espetáculo.
A interpretação dada pelos atores é impecável.
O filme retrata de forma contundente o aspecto universal da passividade da mulher, submissa, companheira e amiga, aqui divinamente representada pela atriz Gloria Rabelo, manifestada ao longo dos curtos diálogos do casal. A cena em que o outro personagem, magnificamente interpretado pelo ator Gê Martú, diz que vai cavar uma cova para sua mulher e ela se conforma em ocupá-la, colocando apenas uma singela observação de que a faça rasa e perto da janela do quarto do casal para que eles possam continuar juntos um do outro, são, na verdade diálogos surrealistas, inimagináveis! Tudo isso feito com muita criatividade e orçamento tão restrito quanto as posses do casal.
A Alumar e o Banco da Amazônia devem estar se sentindo gratificados por terem investido nesse projeto como patrocinadores, tendo os seus nomes associados a esta peça cultural e, ainda mais, pela excelente relação de custo-benefício praticada, graças ao mecanismo da Lei Rouanet.
Só assistindo para perceber a intensidade e a beleza do drama.
A trilha sonora não poderia ter sido outra. Marcelo Dalla foi de uma felicidade única ao compor esta bela melodia.
Não é à toa que o curta metragem foi recentemente condecorado pelo Festival de Brasília, tendo recebido os prêmios de melhor Filme, melhor Fotografia e melhor Música.
Denso, surpreendente, intenso, profundo, instigante, simples e belo.
Quem não viu, ainda tem a chance de vê-lo. O filme irá concorrer neste mês de março, ao Prêmio da Associação Brasileira de Cinematografia, que acontecerá em São Paulo e também irá integrar uma Mostra Cinematográfica no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro.
Vale a pena conferir.

14 comentários para "Vale a pena ver o novo."


  1. danilo furtado

    Bom descobrí-lo no site, amigo.Atenua saudades,incertezas e arrependimentos.
    Faça-o com maior frequência.Seu texto e paixão pela arte ajudam a sobreviver.

  2. Nelson Almada Lima

    José Jorge,

    Gostei bastante de sua estréia nesse espaço. Um texto leve, bem humorado e, principalmente, revelando notável capacidade de análise; em suma, uma ótima crítica sobre o filme.

    Ler seus textos que virão seguramente será uma de minhas “habitudes” ao abrir a internet.

    Muito sucesso. Com amizade,

    nelson

  3. Charles

    Vc ainda tem algo a ver com o PLPT. P q o PLPT parou?

  4. Sandra Pires

    Sr. Zé Jorge, o senhor escreve muito bem. Deu até vontade de assistir o filme! Um abraço.

  5. Valmont

    Ótimo texto. Uma crônica bem superior às que se lê, tanto nos blogs daqui quanto em jornais impressos.
    Espero lê-lo ainda mais.
    Parabéns.

  6. Anônimo

    Zejorge,
    Já tinha assistido este maravilhoso curta do Arturo, filho dos nossos amigos Beatriz Saboia E Nelson Almada Lima, cujas inteligencias e sensibilidades estão no DNA do Arturo.
    A morte para nossas populações do interior tem um ritual de passagem rumo a terra prometida,a morada eterna.Tenho na mente o canto triste e arrastado das ïncelenças¨ cantadas/rezadas nos velórios e no translado do defunto na rede pelas terras do interior do Naranhão.Incelenças que Joao Cabral De Melo ecoou no seu MORTE E VIDA SEVERINA.
    Na rua de Santana tinha um SOCIEDADE MORTUARIA, one mensalmente velhinhas e velinhos iam pagar o carnet, que lhes garantiam:caixão, mortalalha, cova e enterro cristão.
    Murilo Santos,outro bom cineasta nativo tem um excelente documentário sobre a festa de ¨FINADOS¨na BAIXADA MARANHENSE¨.
    O seu texto reproduz a qualidade do texto do seu livro AS AGUAS DE PINHEIRO.
    PARABENS CELSO VERAS

  7. Arturo Saboia

    Caro José Jorge,

    Fico feliz por saber que o filme tenha lhe comovido de forma tão bonita. Acredito que quando optamos por fazer um filme, ou qualquer outra atividade artística, partimos do pressuposto de compartilharmos emoções, sentimentos e reflexões. Fico muito contente em ver que o filme segue atingindo sua finalidade ao suscitar novos e argutos artigos como o seu. Grande abraço.

  8. Fabricio

    E por falar em hemisfério norte, escrevo daqui das terras glaciais (Canadá). Bom, aqui ainda há muito frio, mais c`est le printemps qui arrive. Fiquei com “água na boca” ao ler o seu texto e com muita vontade de estar ai para poder assistir essa tão bela obra. Bom Zé Jorge um forte abraço e parabéns pelo blog.

  9. Joaquim Nagib Haickel

    JJ eu estava te devendo mesmo uma passada por aqui pelo teu blog. Seja muito bem vindo irmão! Sua presença enriquece muito nosso portal.
    Na verdade estou te devendo mais que isso. Devo-te desculpas, é que não deu pra ir à inauguração da Casa França-Maranhão, mas me disseram que está uma beleza. Parabéns.
    Cá só pra nós, seu texto como sempre, heim!… Nos fazendo viajar. Quem como eu que ainda não viu este filme, fica com uma sensação estranha: A curiosidade, ao mesmo tempo em que se aguça, fica também um tanto saciada pela sua capacidade única em contar.
    Sobre o Borralho, de Arturo Almada Lima, Dada, eufórica e entusiasmada, me mandou o roteiro antes mesmo dele ter sido produzido.
    Com ajuda de Cássia Melo, estou tentando tirar da gaveta velhos planos de produzir um filme baseado em meus contos e pretendo conversar com o Arturo para quem sabe trabalharmos juntos.

    PS: A qualidade de seus leitores e comentaristas (excetuando-se este pobre escrevinhador aqui) é invejável!

  10. Anônimo

    Caríssimo Zjorge, vc está duplamente de parabéns: pela estréia no mundo blog e pela escolha do belo filme do Arturo,que sempre nos surpreende com sua obsessão pela temática da solidão, da incomunicabilidade, desde os primeiros trabalhos. Vc sempre foi,entre amigos, um animado contador de histórias. Espero que o blog te seja bastante inspirador e amplie bastante seus ouvintes, agora em forma de leitores.
    Forte abraço,
    William Amorim

  11. Anônimo

    1024

  12. Anônimo

    Durante o Festival de Cinema de Brasília, ” quasi” que assistí ao filme, levado por críticas favoráveis que eu havia lido nos jornais. Mas houve um grande atraso, razão pela qual desistí. Agora, diante de teu comentário sobre aquele filme, um montão de arrependimento se aposou de mim. Mas que fazer? Tão logo ele entre na cadeia de distribuição das salas de cinema, não perderei outra oportunidade.

  13. aldenor cunha rebouças

    Caro amigo, vejamos se este teste chega. confirme-me. um abraçao aldenor

  14. Aldenor Rebouças

    “Vale a Pena Ver o novo” – Naquela data fiz um comentário que não foi transmitido. Por que? Não sei, razão porque resolvi retransmitir, porque julgo oportuno.
    Na FLIP – Festa Literária Internacional de Parati que homenageou o dramaturgo Nelson Rodrigues, a qual confirmaram presença:
    -Prêmio Nobel sul-africano J.M. Coetzee
    -Dennis Lehane – autor policial que proferiu palestra sobre Samuel Beckett
    Mas também esteve presente o escritor moçambicano Mia Couto, aclamado escritor da lingua portuguesa, que escreve em estilo próprio, deveras marcante. Recomendo sua leitura. Já tive oportunidade de ler:
    – A Varanda do Frangipani – que trata da chegada do filho que fora escolhido pelo pai para cuidar do seu funeral
    – O Último voo (escrito assim mesmo sem acento) do Flamingo
    – Um Rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra. Um abração

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