Não é só uma questão de gosto…

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Por que algumas pessoas acham que filhotes de gatos numa cesta são bonitinhos e a foto dos mesmos impressa num calendário vira uma coisa brega?” Essa divertida questão proposta pelo jornalista, escritor e agitador cultural Alex Antunes mostra o quanto é espinhoso se aventurar numa discussão que se torna para lá de subjetiva quando se envolve as preferências pessoais de qualquer ser humano.
Afinal, julgar o que é “de bom gosto” em se tratando de arte ou, mais especificamente, de música, é algo que precisa ser observado dentro de um contexto. “Nesse processo de discutir-se as expressões, as obras ganham e perdem um valor que não é intrínseco a elas”, diz o jornalista.

Justamente por essa razão, é provável que esta matéria frustre aqueles que esperam um embate entre a “boa” e a “mᔠmúsica. No entanto, buscaremos entender alguns fenômenos que nos apontam a trilha do que se pode definir como um colapso cultural alardeado por parte da crítica musical. Nessa busca por um entendimento maior da relação música e cultura de massa surgem várias questões controversas.

É fato que vivemos num país em que a maioria da população encontra-se a anos-luz do mínimo necessário, em termos de educação, que possa despertar anseios por um aprofundamento cultural.

Por outro lado, é notório que a música ouvida hoje pelas classes menos abastadas da população sofreu uma simplificação poética e um esvaziamento intelectual, se comparada à de algumas décadas. “Nos anos 60 não existia um fosso entre o que era produzido para se tocar na rádio e nossos artistas mais interessantes. Um país que tem ‘caras’ como Caetano, Gil e Chico Buarque entre seus músicos populares mais importantes é, no mínimo, um país privilegiado”, opina Alex Antunes.

O ponto de vista é compartilhado pelo jornalista e crítico musical Zuza Homem de Mello, que recorda a presença freqüente de nomes como Tom Jobim e Vinícius de Moraes nas TVs. “É possível se imaginar hoje compositores como José Miguel Wisnick ou Luiz Tatit no programa do Faustão? Impossível. No entanto, esses são nomes de compositores que estão na mesma linha de seus antecessores”. Zuza relembra que os festivais de MPB produzidos nos anos 60, que contavam com nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Geraldo Vandré, entre outros, são prova de que houve um retrocesso na qualidade musical daquilo que se entende por música popular nos dias de hoje.

– A preferência por essa ou aquela música que concorria nos festivais era discutida nas escolas e bares. Era como uma final de Copa do Mundo -. Apesar de admitir que a questão é controversa, o crítico arrisca: – Acredito que o gosto esteja ligado à sensibilidade; as pessoas menos sensíveis tendem a ter um gosto menos refinado -. Ressaltando que essa suposta sensibilidade nada tem a ver com a condição social do indivíduo, complementa: – Conheci pessoas que, de acordo com suas origens, eram bastante rudes, mas tinham um gosto surpreendentemente sofisticado. Uma dessas pessoas foi o cantor Orlando Silva, que cresceu numa comunidade muito pobre no subúrbio do Rio de Janeiro -.

Tangos e tragédias

Se, por um lado, é difícil definir teoricamente o que é a música “de mau gosto”, por outro é fácil para a crítica classificá-la já durante os primeiros versos ou acordes tocados. Provavelmente, a característica que mais incomoda aos ouvidos “sensíveis” é o abuso de um romantismo exagerado, trágico e quase caricato na poesia.
Muitos historiadores garantem que essa maneira mais simplória de expressar o amor sempre esteve presente na música brasileira.

Porém, é sabido que a Jovem Guarda, durante os anos 60, teve papel fundamental na disseminação dessa estética posteriormente batizada como “brega”.

Uma década depois, artistas como Odair José, Fernando Mendes, Reginaldo Rossi e outros que se diziam influenciados pelo movimento acabaram produzindo verdadeiros hinos às dores de amor – “pérolas” como “Pare de Tomar a Pílula”, “Cadeira de Rodas” e “Garçom”, por exemplo.

Em matéria para a revista Bravo!, ao fazer uma análise desse estilo o jornalista Marco Frenette escreve: “Se a favor da música cafona pode-se argumentar que ela é importante ‘patrimônio afetivo’ de grandes contingentes das camadas populares, há muito também o que se observar de negativo.
O estilo é depositário de uma mentalidade restrita sobre os problemas do mundo, ao mesmo tempo em que valoriza excessivamente as coisas pequenas da vida, tomando-as como tragédias”. Em outro trecho, complementa: “Contra este mundo nonsense marcado por um infantilismo emocional e amoroso quase mórbidos, em que se sofre absurdamente por não possuir a mínima adaptação à rejeição e à frustração, o humor pode ser uma defesa natural”.

No entanto, pode-se dizer que os artistas considerados brega nos anos 70 e cultuados por alguns intelectuais pela sua autenticidade fizeram sucesso apenas entre as classes de menor poder aquisitivo, enquanto a classe média sempre olhava para eles num misto de paternalismo, escárnio e preconceito. “É importante deixarmos claro que mesmo dentro deste segmento (como em qualquer outro) existe o bom e o ruim. Eu particularmente gosto de cantoras como a Núbia Lafaiete”, comenta Zuza.

O jabá

A partir do início dos anos 90, duplas sertanejas optaram por se distanciar de suas raízes étnicas e passaram a vender milhões de CDs, apostando num “pop romântico” e pasteurizado.

A poesia adotada seguia uma estética, segundo a crítica especializada, semelhante às obras consideradas “cafona” nos anos 70, porém sem a autenticidade das mesmas. Curioso é constatar que hoje em dia, as classes de maior poder aquisitivo – que teriam mais acesso à cultura – também passaram a consumir esse estilo que há poucos anos estaria confinado às programações das rádios AM mais populares.

O mesmo se pode dizer das centenas de grupos de pagode, indiscriminadamente promovidos por todo o país, que teoricamente teriam uma ligação com o samba – mas optam por repetir à exaustão uma única e desgastada fórmula romântica.

Para Conrado Paulino, músico e professor da ULM, coincidência ou não a profissionalização do mercado fonográfico justamente nessa época contribuiu – e muito – para a queda da qualidade da produção nacional.

– Até aquele momento os diretores artísticos das gravadoras eram, na maioria, músicos ou produtores, um misto de idealistas e administradores que lançavam intérpretes baseados no ‘faro’ e na intuição. Assim, eles tinham ainda um certo compromisso com a qualidade ou, pelo menos, a intenção de unir a qualidade com o lucro -, diz Paulino.

Segundo o músico, a partir de então os cargos executivos foram ocupados por administradores, cujo único interesse era o ganho. Se esses fatores interligados já teriam poder suficiente para forçar uma mudança nos hábitos de consumo da classe média em relação a música, o quebra cabeça começa a tomar contornos ainda mais nítidos com uma prática comum da indústria fonográfica atual.

Conforme entende Zuza Homem de Mello, “a crise não é de intelectualidade e sim dos veículos de comunicação”. O crítico aponta o chamado “jabᔠ– acerto financeiro entre gravadoras e programadores de rádios – como o principal responsável por transformar estilos em sucesso nacional.

– É uma manipulação paga, divulgada e oficializada, e que ninguém nega a existência. As partes envolvidas a admitem como um fato corriqueiro e isso leva a quem tiver mais dinheiro ser mais beneficiado -. Para piorar, muitas rádios brasileiras adotam gerenciamento similar aos moldes norte-americanos, como explica Antunes: “Hoje existem rádios que tocam exclusivamente 160 músicas por dia. Imagine uma emissora que em 24 horas toque apenas esse número de músicas. As discotecas das rádios foram abandonadas”.

A opção, nos dias de hoje, por investimento em estilos mais “acessíveis”, ao que parece reflete aspectos de nossa sociedade que são alheios a qualquer critério musical. “A existência de revistas que evocam encontros de um casal separado para discutir assuntos pessoais como sendo motivo de uma reportagem de capa e dando a esses dois personagens o título de celebridade é uma distorção dos valores”, diz Zuza. “Nessa interpretação estão contidos vários fatores que contribuem para as pessoas adotarem valores absurdos, e a própria música acaba recebendo o reflexo dessas distorções”, complementa.

Alex Antunes agrega ainda outra hipótese para explicar o que grande parte da classe média vem consumindo: “Pode parecer exagero, mas acredito que é conseqüência da perda de influência da esquerda como formadora de opinião. A defesa da expressão popular de raiz tinha esse viés, que para mim é distorcido, apriorista e paternalista, mas que era defendido por uma intelectualidade pertencente a essa classe média engajada”.

Ao que parece, a década de 70 foi determinante para todo esse processo.

– O que aconteceu na música brasileira no pós-tropicalismo não supriu a demanda de qualidade que a MPB tinha até então. Artistas como Djavan naquele momento tinham uma obra muito consistente, já outros como Fagner fizeram três ou quatro discos interessantes, para depois entregar os pontos e fazer um álbum mais popularesco – que acredito também fazer parte do DNA dele -, arremata Antunes.

Fatores econômicos e sociais também tiveram importante papel no processo; como afirma Conrado Paulino, “existe uma conseqüência indesejável, porém normal, de um fato positivo: a notável melhoria das condições econômicas das classes D e C no Brasil, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)”. De acordo com o raciocínio do músico, se a pirâmide social nacional tem a base alargada, a média do nível cultural cai. “Isso é um fato próprio do processo, mas que permitirá, no futuro e mediante ações educativas, elevar esse parâmetro”. Paulino alerta ainda para outro aspecto interessante que diz respeito às classes mais abastadas: “diversos sociólogos e analistas já advertiram que boa parte da elite econômica brasileira possui a pior das combinações – bastante dinheiro e pouca cultura”.

Como explicar universitárias de famílias abastadas dançando o que se batizou erroneamente como “funk” carioca em boates de bairros nobres da capital paulista? O estilo que tomou conta das rádios e programas de TV do Brasil começa agora a ser exportado para o mundo, causando calafrios em muitos músicos acostumados a receber elogios pela sofisticada imagem da música brasileira no exterior.

Porém, se existe uma trilha perfeita para o caos urbano que vivemos, essa parece ser o batidão. “Para você romper certas barreiras sociais é preciso chocar. Por isso os assuntos escolhidos englobam o sexo, o crime, o abuso, a miséria e a violência”, opina o psiquiatra e antropólogo Rodney Taboada, e acrescenta:

– É um jogo de tabus, assuntos que existem, são desempenhados e reconhecidos, mas que vivem à margem do discurso padrão de uma determinada sociedade”. A explosão do estilo como fenômeno cultural passou, segundo o psiquiatra, por um processo de comercialização da expressão da sexualidade, sendo transformado num produto, e “quando esta mercadoria ganha espaço a partir dos meios eletrônicos, ela adquire todas as características dos produtos comuns dentro da sociedade massificada”. O conflito entre os altos padrões de consumo e a exclusão parece ser o responsável pela geração de duas formas de violência, uma objetiva e outra subjetiva. Na avaliação do psiquiatra, “a periferia reage no primeiro caso através do crime, e no segundo por meio da arte de protesto”. Essa opinião é compartilhada por Alex Antunes, que arremata:

“É o mesmo que o cara descer o morro atirando, com a diferença de que ele não mata ninguém, só fere de morte a sensibilidade das pessoas de bom gosto”. Entretanto, nesse processo social a indústria fonográfica acaba tirando seu proveito. “O problema é que o que passa no rádio e na TV é entendido como ‘arte’. Você pode chamar o funk carioca de porcaria, mas como o negócio vende, a sociedade começa a se identificar com o produto e os padrões perdem-se cada vez mais”, considera Taboada.

Defendido por alguns como expressão artística de uma população desesperançada e vítima do esmagamento social gerado na escandalosa má distribuição de renda, o “funk” carioca serviu como elemento iconoclasta para aqueles que ainda olhavam a miséria dos morros cariocas com certo romantismo. “A obra de caras como Cartola, Nelson Cavaquinho, Monsueto, etc.

Representava um argumento muito confortável do ponto de vista marxista, porque nesse caso podia-se usar o discurso de que quando se dá a mínima condição para um artista da classe humilde, ele consegue expressar seu talento que estava em estado latente.

Meu ponto de vista pode ser cruel, mas o batidão é um tapa na cara do intelectual bem intencionado. Os ‘funkeiros’ não estão nem aí para o que falam deles”, opina Alex Antunes. O jornalista vê ainda um lado positivo nesse processo, e argumenta: “Tanto o Cartola como a Deise Tigrona sofreram com a exclusão, a carência e as necessidades. Porém, se vejo que a Deise não leva em consideração os valores de excelência com que as pessoas tentaram escravizá-la, tenho que reconhecer que sob certo ângulo as coisas melhoraram, nos aspectos psíquico e político”.

Apesar de reconhecer alguns elementos interessantes no estilo que o remete a origem dos sons eletrônicos, o jornalista dispara: “Passamos por um momento de transformação social.

O que está acontecendo é importante. Você introduzir uma ‘bomba atômica’ como a Deise Tigrona e a Tati Quebra Barraco no mundo das celebridades no mínimo é irônico. O funk carioca é o ruim do ruim. É o fundo do poço.
E isso indica uma transformação”.

Mas afinal, é possível se projetar um futuro para a música popular?

– A cultura funciona cada vez menos do jeito que a gente quer”, diz Alex Antunes. “A realidade cultural se parece muito com um supermercado em que cada um enche seu carrinho com o que quer”, opina.

É nítido que, aos poucos, as pessoas vão se adaptando a uma nova realidade dentro do colapso cultural. “Estamos vivendo uma fase de transição em relação ao registro da música. Tudo isso causou uma situação anárquica em relação àquilo que durante anos foi a maneira de consumi-la”, argumenta Zuza Homem de Mello citando o exemplo da cantora Rosa Passos, que apesar de não ter seu trabalho divulgado nas rádios e TVs, fez uma recente temporada de sucesso em São Paulo, com ingressos esgotados. “Isso prova que existem pessoas que sabem o que e onde procurar. Para os que buscam qualidade, basta ir atrás dela”. Texto: Fernando Savaglia. Colaborador: Nicolas Brandão.

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