Larápios e ladrões

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Professor universitário Oduvaldo Cruz
Professor universitário Oduvaldo Cruz

Por Oduvaldo Cruz

A etmologia da palavra ladrão remonta ao Império Romano. Diz-se que na Roma antiga havia um pretor (juiz, magistrado) chamado LUCIUS ANTONIUS RUFUS APPIUS que ficou célebre por proferir decisões favoráveis a quem melhor lhe pagasse. Ele assinava suas sentenças com as iniciais de seu nome (L.A.R.) mais o sobrenome APPIUS: L.A.R. APPIUS. Revoltadas, as vítimas daquele funcionário malvado passaram a chamá-lo pejorativamente de LARAPPIUS. Criado o léxico, desde então, o neologismo “larápio” passou a significar aquele que furta, o gatuno, o ladrão.

Também na Roma antiga, eram chamados de “LATERONIS” os soldados que guardavam as laterais (e as costas) do imperador. Ocorre que, de tanto estarem ao lado do poder, aqueles soldados passaram a acreditar que eram o Poder. Assim, nos dias de folga, cometiam delitos, tomando, mediante a força das armas, os pertences de camponeses e viajantes. Eles acreditavam que eram impunes, já que estavam tão perto do rei, a quem os pobres não tinham acesso e, desse modo, não podiam se queixar. Com o correr do tempo, os “lateronis” passaram a ser chamados de “latronis”. Posteriormente, a língua protuguesa traduziria o que verdadeiramente eram: ladrões.

É claro que já existiam ladrões em Roma, antes do magistrado Appius vender sentenças e dos soldados do rei virarem bandidos. O dramaturgo Tito Mácio Plauto (255-185 a.C.) chamava o ladrão de “homem de três letras”, pois, em Roma eram conhecidos pelo nome de “fur”, do cujo radical derivaram o substantivo “furto” e o verbo “furtar”. Desse modo, aquele que furta o dinheiro público, ou se vale de cargo público para tomar o alheio deve, acertadamente, receber o nome de ladrão.

A corrupção alastrou-se de tal modo no seio do Império Romano que o poeta e senador Caio Salustio Crispo (86-34 a. C.) escreveu: Romae omnia venalia esse (em Roma tudo está à venda). Note-se que tanto o magistrado Appius, quanto os  “lateronis” do rei eram servidores do Estado. Daí decorre a noção de que o poder conferido ao Estado, e, por conseguinte, o poder de que dispõem os servidores do Estado, está associado à possibilidade de corrupção, porquanto favorece seu uso abusivo e estimula atos de violação à moral e aos costumes.

O Império Romano não resistiu a seus muitos vícios, vindo a ser diluído em meio à fragmentação medieval. Mas, o ideal de Estado não sucumbiu à corrupção. Ao contrário, o Estado se reinventou e se fortaleceu muito a partir do Renascimento. Na Revolução Gloriosa, de 1689, na Inglaterra, o parlamento destronou o rei absolutista Jaime II e coroou Guilherme de Orange, sob o compromisso do novo monarca respeitar a lei. A Declaração de Direitos (Bill of Rights), votada pelo parlamento inglês ganhou a feição do que posteriormente seriam as modernas constituições e, desde então, o Estado evoluiu bastante em matéria de controle.

A Revolução Francesa, de 1789, pôs abaixo a monarquia absolutista de Luis XVI, reduziu drasticamente os privilégios da nobreza e do clero, instituiu a República e proclamou o direito do povo à igualdade, à liberdade, à propriedade e à resistência a toda forma de opressão. Com a Revolução Francesa nasceu o Estado moderno, embora fragmentos dele tenha origem nas ideias renascentistas de Maquiavel (1469-1527) que denunciou o absolutismo dos papas Júlio II e Alexandre VI e associou a ideia de liberdade política ao conceito de República. O Estado moderno, tal como hoje o conhecemos, caracteriza-se por uma rigorosa e inescapável submissão à lei, pela iguadade jurídica de todos os cidadãos e por um rígido sistema de controle, capaz de punir exemplarmente a corrupção e o abuso de poder.

No entanto, é sabido que cada nação assenta seus alicerces sobre a sua própria história. Ora, a formação histórica do povo brasileiro não escapa à cultura do patrimonialismo, da ordenha do Estado, do “jeitinho brasileiro” e das mil e uma facilidades em contornar a lei. A cultura colonial braileira exerce, ainda hoje, enorme influência sobre a consciência privada e a moralidade pública da nação.

Mas há culturas, nas quais a corrupção é tomada por um rigor quase extremado. Entre os japoneses, a corrupção é tão intolerável e significa tão alta desonra, que o agente público flagrado nessa prática, normalmente recorre ao suicídio por não suportar o peso da vergonha que sobre si se abate.

No Brasil, o corrupto não tem crise de consciência. Aqui prevalece o entendimento, mais ou menos generalizado, de que a apropriação do erário é uma prática de certa forma normal e, não fazê-lo, seria até uma certa tolice. Talvez seja forçoso concluir que a extensão da nossa corrupção é proporcional à extensão da nossa tolerância.

Recentemente tomamos conhecimento da existência de um esquema de corrupção de proporções bíblicas no Brasil: o Petrolão. Sua apuração é tarefa da Operação Lava-Jato, a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro de que se tem notícia no país. A cargo da 13ª Vara Federal de Curitiba, a Lava-Jato já encontrou o rastro de quase todos os partidos do governo petista, de dezenas de membros do Congresso Nacional, de ministros de Estado e suspeita do envolvimento de gente bem mais destacada da República. Cerca de 160 poíticos, funcionários púbulicos e empresários foram presos. Mais de 600 operações de busca e aprensão de bens, valores e documentos foram realizadas e estima-se em 40 bilhões de reais o montante de recursos desviados dos cofres públicos. Essa fortuna destinava-se a irrigar campanahas eleitorais e financiar a luxúria e o enriquecimento ilícito de muitos. A estatal Petrobrás pagou o grosso da astronômica gastança, mas, também a construção de estádios de futebol e hidrelétricas serviram para bancar a festa.

Ladrões envolvidos até a alma no bilionário propinoduto costumam falar aos órgãos de controle e à imprensa com tanta desenvoltura que nem coram a face. Parece gente virtuosa. Nenhum deles lançou sobre si o rigor da autocondenação. Ao contrário, tal como a antiga nobreza da França, todos gozam de privilégios e buscam escapar à branda lei por meio de diversificados mecanismos de fuga. Muitos conseguirão. Logo, logo, eles irão ao cinema, ao restaurante, ao shopping center e desfilarão entre nós sem receberem sequer a primeira e mais elementar punição: a censura pública. Com um pouco de sorte (e por que não, de esperteza), alguns alcançarão até mesmo o sucesso eleitoral em pleitos vindouros.

O Brasil precisa ser reinventado em sua cultura ética. Roubar e escapar à lei pelas frestas da própria lei tem sido corriqueiro desde os tempos da indústria colonial portuguesa aqui instalada. O perverso método brasileiro de roubar para governar e governar para roubar deita raízes na poeira dos séculos. Mas, é necessário reconhecer: os últimos ocupantes do Palácio do Planalto aperfeiçoaram e elevaram essa máxima a expoentes, antes,  impensáveis.

É chegada a hora de instituir, para além da lei, a cultura da conduta moral irrepreensível,  do valor supremo da justiça e da honradez. Aquela, de que  falava o filósofo alemão Immanuel Kant: “duas coisas me deixam maravilhado (…) o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim“. O cidadão honesto não deverá permitir que suceda à nação o que denunciou o civilista Rui Barbosa (1849-1923): “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto“.

Abracemos, pois, a virtude, cultivemos a honra na vida privada e no espaço público, e tenhamos orgulho de ser honestos. Fora, aos que se ocupam de furtar as riquezas do Brasil, do Maranhão e da nossa castigada São Luís. Larápios e ladrões, envengonhem-se de suas desonras e tomem logo o caminho da cadeia!

*Oduvaldo Cruz é professor universitário e pré-candidato a vereador de São Luís.

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