Troca de frivolidades num “Flagrante Delitro”

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primavera

1

É fim de primavera e ainda sopra um vento frio que vem do mar. Em Póvoa de Varzim faço um discreto aceno para Jacinto de Thormes e por onde passo sinto um cheiro de sal e a presença marcante de Eça de Queiroz, que não gostava das cidades, como deixou claro no seu libelo contra essa “criação antinatural”, em A Cidade e as Serras.
Na comparação entre as selvas – a verde e a de pedra – o monóculo do escritor só tinha olhos para a primeira:
– Na Natureza, nunca se descobriria um contorno feio ou repetido. Nunca duas folhas de hera se assemelharam na verdura ou no recorte. Na cidade, pelo contrário, todos repetem servilmente a mesma casa, todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação.

2

Na Praça do Almada, fixo os olhos no coreto, no pelourinho, nos canteiros, nas árvores e na estátua de Eça esculpida em bronze. Mas a paisagem refletida nas minhas retinas é São Luís.
Bigode cincunflexo no sobrelábio, pincez-nez no olho direito, “fato” escuro, colete cinza, sapatos impecavelmente engraxados, Eça de Queiroz passeia pela Praia Grande, observa os sobrados antigos, presta atenção em cada veneziana, cada bandeirola, cada sacada, cada “meia-porta” – casas portuguesas que a gente dos Açores plantou.
Não é miragem, nem o último brincante de bumba-meu-boi flanando pelas imediações do velho Mercado e do antigo prédio da Alfândega. Tampouco algum “músico” desterrado ali para aqueles paralelepípedos, esquadrinhando a paisagem, com movimentos rotativos de nuca, como um enérgico curió.
Sua recompensa não parece ser alpiste, mas a visão de alguma janela setecentista, beirais em rococó manuelino, algum sótão parecido com o que hospedava “Amelinha”, a desejada do padre Amaro.

3

José Maria Eça de Queirós perscruta a Rua Portugal, atirando olhares a esses novos portugueses da tropical ilha lusitana, léguas abaixo do Bojador.
Nem tenho coragem de me aproximar, com medo do ilustre visitante virar pó, retornando ao prisma temporal do qual havia escapado. E toda a estampa explodiria diante de mim, como uma bolha de sabão.
No chão, de lembrança, restariam o pincez-nez e, quem sabe, a famosa piteira.

4

Ali naquelas esquinas já encontrei Machado de Assis, num por-de-sol especialmente belo, como só São Luís é capaz de produzir.
E, certa noite, bem na confluência de Rua da Palma com a Rua de Nazaré, percebi o poeta Fernando Pessoa ordenando um “prego” – xicrinha fumegante da rubiácea, ali no Canto do Protesto.
Quem sabe não seria o momento de convidar o grande satírico, o anticlerical, o crítico de costumes, o iconoclasta, o debochado romancista de “Os Maias”, “O Primo Basílio”, “A Relíquia”, “O Crime do Padre Amaro”, “A Ilustre Casa de Ramires” e tantos outros himalaias da literatura portuguesa, para “um dedo de prosa”, uma cervejinha, com tira-gosto de camarão seco, ali no Mercado da Praia Grande?
Imagino Fernando Pessoa, olhando-nos de longe, a bordo de seu próprio pincez-nez, escrevendo depois para a quase-namorada Ofélia:
– Encontrei aqui o fantasma do Eça com um escribazinho da terra, os dois trocando frivolidades num “Flagrante Delitro”…
À distância, ainda sem ânimo para abordagem, vejo o romancista aproximar-se de uma banca de jornal, interessando-se pelas manchetes. Que visão levaria de nós, de São Luís, do Brasil?

5

Do Brasil, Eça guardava alguns desenhos mentais não muito lisonjeiros e um certo preconceito da ligeireza com que imitavam, aqui, idéias da “república positivista”, instalada assim “num estalar de dedos” e o bacharelismo de dupla descendência, tanto português quanto francês:
– No dia em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, haverá na Terra uma grande nação. Desde que acreditem que mais vale ser um brasileiro original, com a beleza de suas mulheres e esse bom café, do que resultarem todos num doutor mal traduzido do francês.
Agora, do inglês, mestre. Mas com que olhar estaria vendo aquelas manchetes recheadas de violência – ai, Jesus! – nossa São Luís já com mais de 10 homicídios por mês? O que deve fazer a Polícia para devolver nossa inocência perdida?
– Ah, a Polícia! – desdenhou o conhecido demolidor social. A Polícia é uma instituição que passeia aparatosamente em certas ruas – só para prevenir aos malfeitores que se dirige para outras…
– E as mulheres, mestre, o que achou das mulheres?
– Lindas raparigas. Mas não lhes corro atrás. Digo, como Lamartine: a mulher é igual a sombra – se correis atrás dela, foge-vos. Se fugis dela, corre atrás de vós.
Para não espantar “o pássaro”, deixei que uma perna de vento o levasse na direção das serras, posto que das cidades o gênio de “O Mandarim” decididamente não gosta.

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