Saramago e o pessimismo

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Saramago

No meu último encontro com José Saramago, em Lisboa, o Nobel de Literatura declarou-se um “ser insular” e um “desterrado” de continentes onde a democracia começava a definhar.

O autor de “Ensaio sobre a Cegueira” e outros 15 romances manifestava seu pessimismo sobre o futuro da democracia no mundo.

Lera na revista Foreign Affairs que as potências do G-7 protestavam contra o “grampo universal, via satélites-espiões”.

Os EUA estão grampeando os chefes de Estado do mundo em suas conversas transcontinentais. “Meu colega George Orwell tinha razão. O Grande Irmão existe”.

 

Censura e Lanzarote

A censura a seu “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, por autoridades portuguesas – ato infeliz de um obscuro Secretário de Cultura, Souza Lara –, determinara o auto-exílio na Ilha de Lanzarote, nas Canárias espanholas. Lugar eleito pela sevilhana Pilar del Río, que lhe era 28 anos mais jovem e que lhe arrebatara o coração, agora pulverizado em cinzas na nativa Azinhaga.

Nas Canárias, “recriou o Portugal de que gostava”.

Depois de visitar Alcântara, no Maranhão, Saramago, que viajou ao meu lado num velho Bandeirantes da FAB, disse-me que queria voltar um dia, com Pilar e mais livre, para desfrutar da bela cidade-monumento.

– Esta é a cidade ideal para se viver na velhice – disse.

 

Camões e Shakespeare

O autor de “Caim”, último romance, manifestou desconforto com os rumos que tomava o patrimônio “traído” da língua compartilhada por portugueses e brasileiros.

O Português estava mesmo sendo “esbarrondado” (desmontado) pelo internetês e pelo inglês predatório.

“Agora mesmo, no Rio – contou –, pedi do quarto de hotel que fechassem minha conta e me responderam num anglicismo lamentável: vamos checar”…

– Ai, Jesus! Camões não deve nada a Shakespeare!

 

 

Poema à boca fechada

Não direi:

Que o silêncio me sufoca e amordaça.

Calado estou, calado ficarei,

Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,

Se represam, cisterna de águas mortas,

Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vaza de fundo em que há raízes tortas.

 

Não direi:

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,

Palavras que não digam quanto sei

Neste retiro em que me não conhecem.

 

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,

Nem só animais boiam, mortos, medos,

Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam

No negro poço de onde sobem dedos.

 

Só direi,

Crispadamente recolhido e mudo,

Que quem se cala quando me calei

Não poderá morrer sem dizer tudo.

(De “Os Poemas Possíveis”, 1966)

 

“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. (José Saramago)

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