Brevíssimos segundos de paixão

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Dizem que, quando é agosto, rios submersos correm nas profundezas do Pacífico, que torrentes abissais revolvem as raízes de ilhas e de continentes, que de vórtices ocultos jorram metais desconhecidos, capazes de subverter os aparelhos de navegação, o pulsar dos astros e a ronda das estações.

Deve ser verdade. Começava o mês de agosto e despertei em meio à noite com a sensação de andar extraviado no tempo, pois rugia lá fora uma tempestade inusitada. Dançavam as árvores, todo o horizonte era uma imensa nuvem pressaga. E, no entanto, o calor era insuportável e por toda a vizinhança de concreto rugiam centenas de aparelhos de ar-condicionado. A casa dormia, eu era uma alma penada e insone e só.

Recomendo às pessoas que se virem um dia nesse transe que mergulhem num livro tedioso e enorme, que liguem uma dessas rádios que varam a madrugada condenando a humanidade ao fogo do inferno, que joguem paciência. Só não se ponham a inventariar coisas e lembranças, já que aí é certo que não tornam a adormecer. Sei do que falo: foi o que aconteceu comigo.

Havia uma mesa. Eu contemplei essa mesa e a revi povoada dos risos e das vozes de algumas pessoas e me pegou uma ternura antiga e boa, pois com tantas já não tenho me encontrado.

Havia uma foto. Eu examinei essa foto e me voltou a tarde em que foi batida e me tomou uma saudade calada e quieta de seus personagens, pois com tantos já não me tenho reunido.

Havia uns discos. Eu ouvi esses discos e retornei aos momentos a que pertenciam suas músicas e me envolveu uma nostalgia silente e branda de certos lugares, pois a tantos já não tenho regressado.

E havia um espelho. Eu olhei para esse espelho, não por vaidade, mas por precaução. Esse espelho é, de todos os objetos que me cercam, o mais revelador e o mais discreto. Esse espelho sou eu mesmo e tanto que, não me dando importância, importância não lhe dou. Podem passar meses sem que o note, sem que lhe dedique mais atenção do que a uma tela banal ou ao desenho de um tapete. Ele, no entanto, me percebe sempre, conhece de mim segredos que a mim mesmo esqueço de contar. Devo ter olhado distraído para esse espelho, supondo que era para mim que olhava, em instantes de drama e de contentamento, em singraduras de alto-mar e rasas travessias. E talvez por uns brevíssimos segundos de paixão.

E um dia voltarei a olhar para esse espelho, quem sabe em outra insólita travessia de agosto, e verei o espelho, mas não me verei.

 

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