Nova York, a cidade que nunca dorme

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Quem já foi a Nova York sempre quer voltar. Quem não foi sonha um dia conhecer. A meca do cinema, da literatura, do consumo e dos negócios frenéticos, dos bairros charmosos e da arte é tudo aquilo que se viu, leu, imaginou ou fantasiou.
Mas é sempre e incrivelmente surpreendente.
Há nove anos não ia a Nova York. Sentia medo de testemunhar a ânsia vã da cidade sem as Torres Gêmeas. Três meses antes da tragédia eu estive lá. E do observatório do último andar senti a sensação de que estava, literalmente, numa janela aberta para o mundo. E para o mais colossal espetáculo da Terra.

2

Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta desse acontecimento surpreendente que é Nova York à noite. Esta cidade resistiu a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que tentaram descrevê-la, copiá-la.
E conserva o frescor, o inesperado, a surpresa. Na voz de Frank Sinatra, New York é New York, a cidade que nunca dorme.
De que cidade você está vindo? De São Luís ou de Paris? Não me lembro. Recordo apenas ter lido O Jovem Audaz no Trapézio Voador, de William Saroyan.
Conversas sobre o fim de tudo, de Roma e sim da Babilônia, deslizando como um réptil em abstração.
Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto exercito-me atravessando a pé a 5ª Avenida.
Aqui, percorro as memórias errantes de Jim Dine. O artista pop que saiu de Ohio, estudou em Boston e começou a construir, construindo-se, com a utilização de instrumento de mídia.
Sinto vontade de vestir o paletó pintado de verde de Dine. Temos talvez o mesmo número de paletó.
Ligação arbitrária com o mistério dos pigmentos duradouros da frase de Nabokov em que o escritor pensa também em bisões extintos e anjos, além do refúgio da arte.

3

Quando visitei Nova York, pela primeira vez, há muitos anos, ali era o Birdland. Era um nobre pedaço de Times Square. Ouvi o trompetista Maynard Ferguson e o saxofonista Cannonball Adderley.
Tudo ali era música, bruma de cigarros, tilintar de copos.
A legenda estava em pé, muito embora aqueles fossem os últimos dias do clube jazzístico naquele lugar.
Reapareceria em Greenwich Village.
O Birdland era uma espécie de Teatro Apollo da mid town. Na up town, no Harlem, Billie Holiday cantava suicidando-se.
Personagens de tempos heróicos parecem velhos fantasmas que reaparecem, na memória enlutada, como se estivessem expiando as próprias culpas.

4

Paro diante da fonte do Hotel Plaza. Existem lá dentro candelabros em que hóspedes mais experientes praticam acrobacias. Umas sexuais, outras de investimentos em Wall Street.
Enquanto atuam, as pessoas refletem-se nos cristais. Gostam de se ver espelhadas enquanto praticam a dispensável aventura no ar. Não lhes dou importância.
O que me importa é imaginar Zelda, mulher de F. Scott Fitzgerald, saindo nua da flor das águas da fonte. Naquele tempo as mulheres ainda não raspavam os pêlos pubianos para ir à praia ou tomar banho defronte ao Hotel Plaza.
Somente por esse detalhe valeria a pena ver de novo.

5

Deste final de primavera em Nova York colho o tempo amável e a visão dos peitos retardatários que as moças deixam balouçar espetando as primeiras blusas leves da temporada.
Sensuais nestes primórdios do verão são a atmosfera e as mamas.
Sensual é a voz rouca de Billie Holiday cantando Fine and Mellow em estação de rádio apunhalada pela estática. Ou com aquela orquídea colocada sobre a orelha direita enquanto manda Speak Low.
Leio em biografia que Orson Welles namorou a moça que nasceu prostituída em Eleanora Fagan, Baltimore.
Sinto mais inveja de Welles por Cidadão Kane e por Billie Holiday do que por Rita Hayworth.
Nunca houve uma mulher como Gilda? Claro que sim. Billie Holiday no seu aparato de autodevastação.

6

Na elegante manhã do breakfast no restaurante do hotel boutique Night, sou eu com certeza a única pessoa a saber que o pianista Thelonius Monk toca Round Midnight.
A música da gravação inunda o ambiente de mesas clean.
O passado mora ao lado. Subo a escada de um velho prédio. E minha emoção esboça desenhos tão transitivos como esta viagem em que revejo velhas pedras e ouço, música antiga, Bye, Bye, Black Bird, gravada por John Coltrane e Miles Davis. Os dois estão mortos.
Deslizo os dedos pelo corrimão. Apalpo a madeira como se apalpasse a vida. É primavera. Quase verão. Tempo de carícias entre as árvores do Central Park.

7

Ficar só em Nova York é algo que não me incomoda. Na verdade, diverte-me. Às vezes serve-me até como alento de uma vida obscura emoldurada por umas poucas pessoas que amo e muitas outras especialistas em acrobacias.
A maioria do mundo é composta de indivíduos voadores, praticando saltos no escuro, mesmo no claro, como os trapezistas do Cirque de Soleil.
Prefiro, entretanto, a solidão, em restaurante dos anos 40, do quadro de Edward Hopper em que aparecem duas mulheres em primeiro plano, dentro do realismo americano onde contrastam as grandes manchas escuras do ambiente com as lâminas de luz coadas lá fora.
Lembro-me freqüentemente de Hopper, quando me encontro só em Nova York, ninguém para abrir portas trancadas, apenas reticências despejadas numa lata de ervilhas.

8

Manhã mal raiada em Nova York. Penso em quadros cósmicos de René Magritte e Paul Devaux. Surpreende-me ver na pista do aeroporto um avião todo branco. Tudo seria banal não fosse o fato de que ele se prepara para levantar vôo sem turbinas.
Pássaro sem asas, disse de mim para comigo. Cão sem plumas, avisou-me o poeta. Mulher sem peitos, surpreendeu-me, constrangido, o voyeur.
Penso mais, como não haveria de pensar, se acordei tão cedo e ainda estou envolto em pesadelos de paisagens lunares para realizar o distante trajeto entre Nova York e São Paulo?
Aguarda-me na verdade aquele avião branco, sem turbinas, para me levar em seu bojo como um passageiro absurdo, o fantasma da ópera.

9

No aeroporto Kennedy, homens tristes transitam levando bagagens em carrinhos que parecem cavalos-marinhos adormecidos.
Um japonês tira fotografia do neto. Clarão de bomba de Hiroxima dentro do salão. Enquanto isso, desfilam mulheres de coxas de fora. Sapatos altos apreciam a vertigem das alturas e a sugestão da libidinagem.
Olho as coxas das mulheres. Olho as bainhas de minhas calças jeans. Estão manchadas de tinta branca. Gosto dessas imperfeições. O mundo é imperfeito.

10

Dentro do avião, converso com meus botões. As mulheres deveriam embarcar de camisola para atravessar oceanos. Sem calcinhas. Assim, não precisariam tirá-las quando fossem aos estreitos WCs para urinar nos ares.
Demora mais de dez horas a travessia sobre o Atlântico. Minhas calças jeans são confortáveis, mas eu preferiria estar de pijama.
Uma noite passada em avião equivale a uma noite em lugar algum. Morremos todos por uma noite os que viajam e fazem longas travessias. As mulheres sem camisolas e calcinhas e os homens com suas calças jeans manchadas de imperfeições.

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