Soraia Fialho Silva e a cozinha molecular

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MARÇO Le Meurice 3

Não faz muito tempo, uma espécie de “grande conselho” da cozinha mundial, formado por mais de quinhentos cozinheiros e críticos culinários, assegurou que a nova moda no mundo é a chamada “cozinha molecular”, proclamando os melhores restaurantes do planeta em que a prática pode ser encontrada.

A cozinha molecular é uma prática em que se combinam ingredientes cuja composição molecular é compatível, mas não se sabe se, para determinar essa compatibilidade, é preciso instalar nas cozinhas um microscópio eletrônico, mas se isto acontecer também não causaria estranheza.

Até pouco tempo atrás, a melhor ou pior combinação de dois ou mais elementos em um prato era dada, antes de tudo, pela compatibilidade, fosse complementar ou antagônica (como contraste), de seus sabores, aromas e texturas. Tudo isso, naturalmente, destinado ao que deveria ser o fim de toda obra culinária: o prazer do cliente.

Hoje, poucas pessoas falam em prazer. Quando se lêem as descrições dos pratos destes cozinheiros, se encontram expressões como ”absoluto domínio da técnica”, ”alarde de conhecimentos”, ”provocação” e, às vezes, ”emoção”.

As pessoas “normais” entendem a cozinha molecular como sendo aquela em que o que chega ao cliente no prato é exatamente isso: algumas moléculas (poucas) de comida, muito bem colocadas, e em cujo enunciado se especifica a temperatura (baixa) em que foram cozidas e, qualquer dia, até a pressão a que foram submetidas no processo de cozimento.

Uma cozinha cujos autores investem nos espaços gastronômicos dos principais meios de informação, o que gera um interesse geral para ir aos restaurantes.

Minha experiência com a cozinha molecular – ou ciência que estuda os fenômenos físico-químicos que ocorre em uma cozinha de forma metódica e científica – começou no “El Bulli”, na Espanha, onde o chef catalão Ferran Adriá começou a revolucionar a gastronomia.

Depois, fiz incursões no Pierre Gagnaire, em Paris, e – mais recentemente – no Per Se, em Nova York.

Criada por Hervé This, um cientista francês que percebeu que embora se conheça a temperatura no interior de uma estrela longínqua não se conhece o que se passa no interior de um ovo que está sendo frito, a cozinha molecular resultou de um estudo das receitas e truques culinários, que passam de geração em geração sem que ninguém tenha se preocupado em saber porque funcionam assim, com os instrumentos da química e da física atuais.

E nasceu assim, a gastronomia molecular que deu origem à cozinha molecular.

Sempre antenada com as novidades mais sofisticadas da gastronomia, a maranhense Soraia Fialho Silva andou por São Paulo realizando cursos sobre a gastronomia molecular, ministrados pelo Chef Laurent Suaudeau e Armando Pucci.

E esta semana decidiu promover na loja Caves Du Vin, uma degustação de suas primeiras descobertas.

Os quitutes da cozinha molecular foram harmonizados com a degustação dos vinhos e espumantes da Premium Winery do Brasil, apresentados pelo enólogo da Casa Valduga, Alexandre Mondadori.

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Só gênios na disputa de um título

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JUNHO_flamenco

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Domingo, acordei musical. Mas com algumas perguntas que não queriam calar. Ficar com quem no final da Copa do Mundo? Qual das laranjas iria predominar? A original ou a derivada?
A laranja holandesa era cultivada na Espanha, onde o clima é mais propício, sem tanto frio. Mas laranja é cor derivada do vermelho sanguíneo, a cor de Felipe de Espanha. Ao qual se juntou o amarelo das auroras equatoriais, das quais se tornaram afeiçoados os navegadores da Companhia das Índias Ocidentais – os holandeses da Casa de Orange, entre eles, o “laranjão” Maurício de Nassau.
É claro que eu não queria entrar na história – a oficial ou a delirante – para não produzir, aqui, um laranjal de sambas espremidos diretamente do liquidificador de Stanislaw Ponte Preta – autor daquele hilariante Samba do Crioulo Doido.

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A pergunta, direta como uma lâmina de punhal, veio do meu mordomo: “Vamos ficar com quem neste domingo?”.
Em questão de segundos, comecei a fazer perguntas para os meus botões.
Vamos ficar com as cores vivas dos girassóis de Van Gogh? Ou com luminescências em meio à escuridão, como retratam as obras-primas de Diego Velazquez?
Será que a Holanda vai atacar com a volúpia ensandecida de Van Gogh, recusando-se ser vice-campeã do mundo pela terceira vez? Entrará em campo com o espírito de ganhar a Jabulani ou sacrificar a outra orelha? Aplicará, em seus “cruzamentos”, as fases oranges de Van Gogh, mescladas aos focos de luz de Rembrandt, dando lume à Lição de Anatomia?
E os espanhóis? Vestirão os cornos de um touro miúra? Vestirão a “persona” dos seus gênios da literatura, como Cervantes – pilar da grande literatura ocidental? Ostentarão o destemor de García Lorca, o poeta que desafiou a ditadura do general Francisco Franco?
Aliás, qual dos dois moinhos sobreviverá? O moinho atacado com furor por Dom Quixote de La Mancha nas pradarias de Espanha ou o moinho da antiga província do Norte, cercado de tulipas claras, primas-irmãs dos girassóis vangoghianos?

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Os galegos da Laranja Mecânica já haviam chegado a duas finais de Copa, em 1974 e 1978 – e em ambas mereciam ter arrebatado o caneco. Revolucionaram o futebol com aquele inesquecível “futebol onipresente” – 11 laranjas brotando de todos os lugares do campo.
E, em 1978, foram vítimas da pior ditadura de uma época sinistra – nada a ver com Dom Dieguito Maradona, que, aliás, por excesso de talento e juventude, nem foi convocado pelos borzeguins do general Jorge Rafael Videla.

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Sim, embora eu tivesse acordado musical no domingo, estava com o coração dividido. Perguntei a Ernest Hemingway. Ele preferiu assistir à final como se estivesse numa Plaza de Toros, à espera dos clarins e do golpe derradeiro, a espada furando a laranja bem no meio dos olhos.
Papa foi cem por cento Espanha, claro.
Perguntei a Cees Nooteboon, talvez o escritor holandês mais conhecido (Paraíso Perdido) no mundo e ao bem-humorado autor de Amsterdam Blues, Arnon Grunberg.
Ora, os dois holandeses são “laranjas” desde criancinhas, é claro, e apostaram tudo na redenção de suas cores.

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Três e meia da tarde. Entra no gramado do Soccer City quase um século de democracia. É Nelson Mandela e a multidão delira. O jogo vai começar. Lembro os versos de um poema de Leila Diniz musicado por Milton Nascimento, “Um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”, que tem muito a ver com esta conversa: “Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ O mar é das gaivotas/ Que nele sabem voar/ Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ Por que não sabem que o mar/ É de quem sabe amar”.

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De uma coisa eu tinha certeza: a Rainha Jabulani estaria bem servida com uns ou outros gênios. Mas, sem querer substituir os atributos do polvo Paul, o grande oráculo desta Copa, cheguei a suspeitar que os espanhóis continuariam na fila…
Lá de cima, o mestre Armando Nogueira tentava soprar nos meus ouvidos o nome do novo campeão do mundo, mas as vuvuzelas tocavam tão alto que eu não conseguia escutar.

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Começou o jogo. A expectativa pela final era grande. Principalmente, porque o mundo entardeceu para amanhecer nesta segunda-feira mais  vermelho, mais “furioso”, com o futebol acrescido de uma nova escola em seu templo.
Passeio pela Holanda e avisto os vultos dos mestres da pintura Rembrandt, Vincent van Gogh e Mondrian. As tulipas, os tamancos de madeira, o queijo (especialmente Edam e Gouda) e a cerâmica de Delft. Os moinhos de vento drenando as águas para evitar que elas invadam parte das terras que ficam abaixo do nível do mar.
Na Espanha, trafego entre Cervantes e os mestres revolucionários da pintura moderna, Salvador Dali, Joan Miró e Pablo Picasso, ao lado de clássicos como Goya, El Grecco e Velázquez. Ou gênios do cinema, como Luis Buñuel, Carlos Saura e Pedro Almodóvar. Mais as touradas, a dança flamenca, o violão virtuoso de Andrés Segóvia ou de Pacco de Lucia. E a voz de José Carreras e Plácido Domingo.
Meu coração continua dividido.

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Cinco horas da tarde. Nenhum gol. O “touro” espanhol afia os chifres para o golpe fatal. No gramado, nenhum um sinal de vitória. Apenas os vultos de uma seleção formada por Goya; Segovia, Casals e Buñuel; Miró e Gaudi; De Falla, Picasso, Plácido Domingo, Cervantes (o camisa 10) e Velázquez. Quando o olhar alcança o banco de reservas, estão lá Narciso Yepes, Dali e El Greco, Carlos Saura e Almodóvar.
Pelo Soccer City ecoa a voz rouca de Garcia Lorca declamando “La Cogida y la Muerte”: “Às cinco horas da tarde./ Eram as cinco em ponto da tarde./ Um menino trouxe o lençol branco/ às cinco horas da tarde./ Uma ceira de cal já preparada/ às cinco horas da tarde./ Tudo o mais era morte, apenas morte/ às cinco horas da tarde”.
O jogo segue num compasso de dança flamenca. Na arena, os “touros” holandeses equilibram-se em seus tamancos de madeira.

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Seis horas da tarde. Hora do Ângelus, momento de devoção popular descrito com tons tocantes pelo poeta A. Manzoni: “Quando surge e quando cai o dia/ E quando o sol a meio caminho o parte/ Saúda-te o bronze, que as turbas piedosas/ Convida a louvar-te”.
A clássica Ave-Maria de Gounod ecoa das torres de igrejas católicas da Espanha. Na África do Sul, os espanhóis vivem uma experiência inédita. Conquistam um lugar para poucos e sentem o gostinho que só brasileiros, argentinos, uruguaios, alemães, italianos, franceses e ingleses já haviam sentido.

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A Espanha é o novo membro do clube, com méritos. Que siga fazendo história, já que, taticamente consolidou uma lição europeia ao mundo: três atacantes, ocupação de espaços, multiplicação de funções, disciplina e objetividade.
É o novo futebol, menos bonito, mais eficiente.

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Em Lisboa, uma aceno para Saramago

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O avião estava prestes a cair. Lá dentro, entre os passageiros, estava o escritor brasileiro Jorge Amado. No momento em que todos se agitavam com medo de morrer pediu os jornais à sua mulher. “Estamos prestes a morrer e você quer ler os jornais?”, surpreendeu-se Zélia Gattai. Jorge Amado queria morrer informado sobre o que se passava no mundo. Foi esta a história com que Pilar del Río prestou a homenagem final ao marido, no discurso que fez na antecâmara do crematório, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
“E tu, Saramago, hoje ficas a saber”, continuou Pilar, agitando as mãos. “O que se passa no mundo é que todos os meios de comunicação falam de ti” e dizem que morreu um homem bom e honesto, um bom escritor, um ser humano excepcional, um lutador. “E nós não temos o direito de chorar, de derramar lágrimas, porque somos os privilegiados que te conheceram. Que chorem os milhões de pessoas que não tiveram a sorte de passar contigo os momentos de vida.”
Único prêmio Nobel de Literatura de língua portuguesa, o escritor José Saramago, deixa também entre seus legados uma ligação estreita com o Brasil, onde tinha amigos e leitores, e especialmente com o Maranhão, estado que visitou no final dos anos 1980 para conhecer São Luís e Alcântara.
Há mortes que nos afetam de modo especial. No caso de José Saramago, pela lucidez que ele emprestou à civilização. O fato de ter sido claramente ateu e comunista até o derradeiro minuto faz com que o abominem pessoas que nunca leram a sua obra, como se Literatura fosse panfleto político, ideológico ou religioso e com ele pudesse confundir-se. E como se um intelectual não pudesse ter opiniões próprias, divergentes do senso comum. Saramago propõe questões que muitas vezes abalam as certezas pétreas, e isto muita gente não consegue suportar.
Mas não é apenas esse pensador cristalino e retilíneo que se apaga com a morte anunciada no último dia 18. Morre também um dos mais importantes escritores da língua de Camões no século 20, reconhecido como tal pela imensa legião de seus leitores e pela Fundação Nobel, que lhe outorgou o Prêmio de Literatura de 1998.
Confesso que fiquei triste, mas reconfortado ao mesmo tempo. Por estar em Lisboa e poder acenar, em gesto de despedida, para Saramago. Sei que era ateu, sei que era ácido em suas críticas, sei que parecia uma pessoa inacessível do alto de sua grandeza, mas também sei que tive a honra de acompanhá-lo quando veio ao Maranhão conhecer as belezas e os monumentos históricos de nossa terra. E, mais tarde, conheci também a sua generosidade, ao ser recebido por ele em Lisboa, quando dividiu comigo sabores e emoções no seu restaurante preferido – O Farta Brutos –, em retribuição ao carinho que recebeu dos maranhenses.
Morreu um cara coerente, morreu um Quixote, como chegaram a dizer, mas pra mim, para além de tantos elogios, muitos dos quais feitos apenas pela força do hábito e de uma certa morbidez dos meios de comunicação que são obrigados a noticiar o fato, morreu sim, um pouco da nossa consciência, um pouco da nossa capacidade de contestar a hipocrisia desse mundo hostil que premia a força das armas em lugar do diálogo franco e responsável.
Saramago ficou em cada um de nós. Ele que era ateu, nos deixou ao menos pensar na louca vontade de beatificá-lo, de santificá-lo, mas não como se faz na santa madre igreja, mas no altar puro e nobre de nossos corações.

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Salgado Maranhão: o dono do Rio e da poesia

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Foi uma grande noite da palavra: da grande diversidade da palavra – falada, escrita e cantada, regada a bons papos, gurus descontraídos de muitas tribos, mulheres bonitas e o discreto e envenenado glamour carioca.

No centro da epifania, coube ao poeta Salgado Maranhão ser o catalizador da festa da poesia realizada na noite quarta-feira, 9 de junho, no Espaço Cultural Finep, debruçado sobre a praia do Flamengo no Rio de Janeiro. Apesar da discreta ressaca, lá fora, o mar era só poesia.

Salgado autografava “A Cor da Palavra”, reunião de seus sete livros de poemas, em caprichada edição da Imago Editora / Biblioteca Nacional.

Vestindo um blazer de veludo azul, anfitrionava convidados e amigos em noite badalada que incluiu exposição iconográfica (produção do poeta Carlos Dimuro) sobre o autor e a obra, com direito a canja declamatória de Elba Ramalho e Zézé Motta, que leram alguns poemas seus, e performances musicais dos cantores Ronaldo Motta, Bia Mello, Patrícia Mellodi e Mariana Baltar, já que coabitam em sua lírica o poeta e o letrista, multiplicando sons e parcerias. Ave, palavra!

Concorrido, o metro quadrado do espaço, fervilhava em densidade literária e artística. Notavam-se dentre muitos os poetas Ferreira Gullar (com Claudia Ahimsa), Carlos Nejar (com Elsa), Ivan Junqueira (com Cecília Costa), Antônio Carlos Secchin, Geraldo Carneiro, o romancista Antônio Torres, o ensaísta Silviano Santiago e o filósofo Muniz Sodré, presidente da Biblioteca Nacional.

O poeta Luiz Augusto Cassas no meio do evento, foi seduzido pelo editor Eduardo Salomão, e saíram para jantar enquanto o poeta Antônio Cícero adentrava o recinto e lá ficou até o fim da festa. Múltiplas gerações se revezavam, como mestre da Bossa Nova João Donato, o jornalista Ricardo Cravo Albin, Antônio Carlos Miguel e, ainda, as cantoras Flávia Bittencourt (residindo no Rio), que foi muito aplaudida em sua apresentação.

Precedido de ampla divulgação na imprensa carioca o acontecimento literário e cultural, revelou a capacidade de mobilização e de reconhecimento de Salgado Maranhão.

Exibindo tríplice nacionalidade lírica e civil: a maranhense, a piauiense e a carioca, já que nasceu em Caxias onde permaneceu até seus quinze anos, estudou em Teresina até aos vinte, vindo a fixar-se definitivamente no Rio em meados da década de setenta. Sua poesia é atravessada por um sopro de beleza e esperança, cuja voz poderosa e solidária abre-se à celebração e à dor dos tempos.

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Saramago e as intermitências da morte

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“Não há nada no mundo mais nu que um esqueleto”, escreve José Saramago diante da representação tradicional da morte. Só mesmo um grande romancista para desnudar ainda mais a terrível figura.

Apesar da fatalidade, a morte também tem seus caprichos. E foi nela que o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel da Literatura buscou o material para seu romance As intermitências da morte.

Cansada de ser detestada pela humanidade, a ossuda resolve suspender suas atividades. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

Ao fim e ao cabo, a própria morte é o personagem principal desta “ainda que certa, inverídica história sobre as intermitências da morte”.

O livro faz parte do tipo de literatura que nos deixa inquietos, no faz refletir, acaba com nossas certezas. Devemos nos preocupar com a morte ou o que vem depois dela? Em vez de pensar somente nela, não deveríamos viver o tempo presente, aproveitando nossa vida na Terra? José Saramago nos mostra que a morte é, paradoxalmente, parte da vida e não passagem para outra. Ateu, acredita que as religiões se apoderam da idéia da morte para existirem.

Certo ou não, se há outra vida depois dessa, espero que lá tenha romances tão bons como esse para ler.

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José Saramago (1922 – 2010)

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Ele estava com 87 anos. Viveu, cumpriu sua rotina, registrou seu nome em uma das páginas da história que a boa prosa escreve.

Uma lenda inglesa, reconstruída, diz que os bons escritores mortos levam seus livros não publicados em vida para a biblioteca de Lucien. Lucien é o guardião da biblioteca que fica no reino dos sonhos, o de Morpheus.

José Saramago já deve estar lá, já deve estar sabendo de nossos agradecimentos aos seus serviços de escritor para humanizar um pouco este mundo tão desvalido de princípios, de bons espíritos.

Que o seu nos ilumine com mais poesia, com qualidade de arte, com respeito e com mais atenção ao silêncio que o mundo tanto precisa.

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Troca de frivolidades num “Flagrante Delitro”

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primavera

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É fim de primavera e ainda sopra um vento frio que vem do mar. Em Póvoa de Varzim faço um discreto aceno para Jacinto de Thormes e por onde passo sinto um cheiro de sal e a presença marcante de Eça de Queiroz, que não gostava das cidades, como deixou claro no seu libelo contra essa “criação antinatural”, em A Cidade e as Serras.
Na comparação entre as selvas – a verde e a de pedra – o monóculo do escritor só tinha olhos para a primeira:
– Na Natureza, nunca se descobriria um contorno feio ou repetido. Nunca duas folhas de hera se assemelharam na verdura ou no recorte. Na cidade, pelo contrário, todos repetem servilmente a mesma casa, todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação.

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Na Praça do Almada, fixo os olhos no coreto, no pelourinho, nos canteiros, nas árvores e na estátua de Eça esculpida em bronze. Mas a paisagem refletida nas minhas retinas é São Luís.
Bigode cincunflexo no sobrelábio, pincez-nez no olho direito, “fato” escuro, colete cinza, sapatos impecavelmente engraxados, Eça de Queiroz passeia pela Praia Grande, observa os sobrados antigos, presta atenção em cada veneziana, cada bandeirola, cada sacada, cada “meia-porta” – casas portuguesas que a gente dos Açores plantou.
Não é miragem, nem o último brincante de bumba-meu-boi flanando pelas imediações do velho Mercado e do antigo prédio da Alfândega. Tampouco algum “músico” desterrado ali para aqueles paralelepípedos, esquadrinhando a paisagem, com movimentos rotativos de nuca, como um enérgico curió.
Sua recompensa não parece ser alpiste, mas a visão de alguma janela setecentista, beirais em rococó manuelino, algum sótão parecido com o que hospedava “Amelinha”, a desejada do padre Amaro.

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José Maria Eça de Queirós perscruta a Rua Portugal, atirando olhares a esses novos portugueses da tropical ilha lusitana, léguas abaixo do Bojador.
Nem tenho coragem de me aproximar, com medo do ilustre visitante virar pó, retornando ao prisma temporal do qual havia escapado. E toda a estampa explodiria diante de mim, como uma bolha de sabão.
No chão, de lembrança, restariam o pincez-nez e, quem sabe, a famosa piteira.

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Ali naquelas esquinas já encontrei Machado de Assis, num por-de-sol especialmente belo, como só São Luís é capaz de produzir.
E, certa noite, bem na confluência de Rua da Palma com a Rua de Nazaré, percebi o poeta Fernando Pessoa ordenando um “prego” – xicrinha fumegante da rubiácea, ali no Canto do Protesto.
Quem sabe não seria o momento de convidar o grande satírico, o anticlerical, o crítico de costumes, o iconoclasta, o debochado romancista de “Os Maias”, “O Primo Basílio”, “A Relíquia”, “O Crime do Padre Amaro”, “A Ilustre Casa de Ramires” e tantos outros himalaias da literatura portuguesa, para “um dedo de prosa”, uma cervejinha, com tira-gosto de camarão seco, ali no Mercado da Praia Grande?
Imagino Fernando Pessoa, olhando-nos de longe, a bordo de seu próprio pincez-nez, escrevendo depois para a quase-namorada Ofélia:
– Encontrei aqui o fantasma do Eça com um escribazinho da terra, os dois trocando frivolidades num “Flagrante Delitro”…
À distância, ainda sem ânimo para abordagem, vejo o romancista aproximar-se de uma banca de jornal, interessando-se pelas manchetes. Que visão levaria de nós, de São Luís, do Brasil?

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Do Brasil, Eça guardava alguns desenhos mentais não muito lisonjeiros e um certo preconceito da ligeireza com que imitavam, aqui, idéias da “república positivista”, instalada assim “num estalar de dedos” e o bacharelismo de dupla descendência, tanto português quanto francês:
– No dia em que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, haverá na Terra uma grande nação. Desde que acreditem que mais vale ser um brasileiro original, com a beleza de suas mulheres e esse bom café, do que resultarem todos num doutor mal traduzido do francês.
Agora, do inglês, mestre. Mas com que olhar estaria vendo aquelas manchetes recheadas de violência – ai, Jesus! – nossa São Luís já com mais de 10 homicídios por mês? O que deve fazer a Polícia para devolver nossa inocência perdida?
– Ah, a Polícia! – desdenhou o conhecido demolidor social. A Polícia é uma instituição que passeia aparatosamente em certas ruas – só para prevenir aos malfeitores que se dirige para outras…
– E as mulheres, mestre, o que achou das mulheres?
– Lindas raparigas. Mas não lhes corro atrás. Digo, como Lamartine: a mulher é igual a sombra – se correis atrás dela, foge-vos. Se fugis dela, corre atrás de vós.
Para não espantar “o pássaro”, deixei que uma perna de vento o levasse na direção das serras, posto que das cidades o gênio de “O Mandarim” decididamente não gosta.

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O domingo ou o dia do juízo final

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O domingo chega com a cores do juízo final da semana. Você institui seu tribunal do júri pessoal e intransferível. Os julgadores são os olhos, seus membros, o umbigo, o fígado vulnerável e a ambição malsã.
Indisfarçáveis são os infortúnios dominicais, em São Luís ou em Nova York, tanto quanto as rugas das mulheres e a ânsia de mostrar coxas, este comportamento similar ao frenesi de dar bananas do poema de Vinícius de Moraes.
Estamos rendidos na batalha diária, por nós mesmos, enquanto esperamos a segunda-feira. Aos domingos, os bombardeiros psicológicos desovam mais bombas sobre a areia movediça de nossa alma.
Nesse conflito insípido nem sangue há.

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Proclama Shakespeare no ato II de Cymbeline: “Arma-me, audácia!”. Aos domingos as audácias são difíceis de armar as pessoas.
Domingo é dia de descanso. Convivemos apenas com nossas falácias. Paradoxalmente silenciosas.
E terminamos vencidos no primeiro instante da luta ornamentada como uma festinha de Natal fora de época.

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Manhã de puro desencanto atiça pés do vento. Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto atravesso a ponte de Brooklyn. Existem afagos em um certo apartamento em Hans Road, Knightsbridge. Ali Eliot dizia pela voz morta: “Aqui passado e futuro estão/ Conquistados e reconciliados.”
Administro o cansaço entre uma viagem e outra. O cansaço se mede com régua ou fita métrica. Como se mede busto ou nádegas de uma mulher que já não nos interessa.
Na rua 42, certo inverno, vi pintor descer de yellow cab. Era Salvador Dali, de quem retomo obsessões. O pintor confessa, com a voz quase inaudível da morte, que organiza a catástrofe. Assim como Hiltler organizou sua descida ao Walhalla.
O artista observa que Hitler era masoquista e queria o abismo. Pretendeu e conseguiu mais. Conquistou o insulto absoluto.
Pela voz de Verlaine faz-se a síntese do sentimento da humanidade. As lágrimas inundaram meu coração como a chuva alaga a cidade.

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Foi a última a primeira vez em que a vi. Perguntei-lhe sem perguntar em que trapézio voador voaria. Bateu as asas. Imperiosamente como quem mente ou como quem inicia a construção dos próprios olhos para olhar o mundo.
A cena se passou enquanto se projetavam cenas de Casablanca. Humphrey Bogart despedia-se de Ingrid Bergman. Como se pudesse despedir-se. Até hoje continua despedindo-se em preto-e-branco para a convulsão da inveja dos efeitos em cores.
Hoje, revejo-a na memória que se eleva ao ar como o grito das gaivotas aflitas. Pude vê-la enquanto se desvanecia no meio da rua. Tangível como um pedaço de pão.

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Mulher no espelho. Homem no espelho. Pessoas no espelho no Guggenheim Museum de Nova York. Distorções. Paro e penso igual a Albert Camus: “O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.”
Entre as sirenes das ambulâncias e o cume dos arranha-céus da Primeira Avenida, Heráclito paira entre ruídos para dizer que não se pode andar duas vezes no mesmo rio.
Por isso nos apartamos como nos momentos em que as pétalas caem das flores.

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Homem vestido como um monge. Vestuário verde e vinho. Quando precisa de esperança, olha o verde do tecido. Bebe quando quer beber o vinho da cor da indumentária. A cabeça pende para a direita. Está suspensa entre ombros e mãos amarelas.
Rua 53. Dentro do Museu de Arte Moderna a cabra de Picasso berra no jardim. Protesta. Quer ser um minotauro e é apenas uma cabra. Cabras dão berros e leite. Homem vestido como um monge. Pergunto-lhe sobre o desapontamento da cabra de Picasso exilada no jardim do Museu.
Mudo, entretanto, a interrogação: a que ordem religiosa o sr. pertence? “À ordem da desordem!”, responde.

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Em nenhum momento pergunte-se sobre os limites da cidade e as divisas do seu corpo. De um lado estão as águas do East River e do outro as águas do Hudson. Você já veio como se visitasse um de seus arrabaldes, uma de suas casas.
Talvez sinta que até se despede das coisas. Da cama de seu pequeno quarto de hotel, das longas caminhadas entre downtown e a Strand, onde compra livros com a reprodução de quadros de Lucian Freud e de Edward Hoper, do sushi que busca na Rua 45, do banco de madeira do Central Park.
A cidade deu-lhe solidões inumeráveis, O Fantasma da Ópera, Le Cirque du Soleil, chá de lychee… Um dia deixará de dar. Você não estará mais aqui para receber tudo isso. Nem eu.

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Em Nova York com Sarney e Diana Ross

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NY_mirante_comDe volta a São Luís, quero escrever direto e pouco como um gesto. Quero escrever sem subterfúgios como quem prepara o livro do dever e do haver. Quero escrever direto como o riso do homem velho que vi na esquina, braços em ascensão, aquele louco varrido com a vassoura da alucinação.
Quero apreender o estilo do temporal que caiu sobre mim na Sexta Avenida, em Nova York.
Lá, galos não cantam nos quintais da vizinhança. Meu vizinho é este ar umedecido decorado por nuvens alongadas como os vasos lécitos gregos em que eram guardados perfumes.
Quero escrever direto como quem decide a hora de ir para a cama ou quem apanha um livro na estante. Tudo são gestos.
Emily Dickinson escrevia em linha reta. A beleza não se faz, ela é.
Aprendi a síntese. Foi longo o aprendizado. Quero ser direto como o sim e o não.

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Nessa volta à mais efervescente megalópole do mundo reencontrei uma Nova York sempre em movimento. Ora eram os néons que nunca apagam, as ruas que nunca (ou quase nunca) estão vazias, ou até mesmo gente que simplesmente vagueia por elas.
Nova York é uma tela pintada de táxis amarelos e néons multicolores em cada esquina, uma mescla de cores, que nunca um pintor teve a ousadia de criar. A cidade é uma pintura, cujos traços mostram uma agressividade celestial, de algo que o Homem sonhou, e Deus o ajudou a criar!.
Houve uma noite de Manhattan em que falamos sobre o destino gravado em nossas mãos de veludo púrpura. São Luís estava tão longe quanto um padre rezando missa na igreja do Desterro. Antes, o pecado morava ao lado.
De pássaros, caixas, anéis, olhos, flores, flechas disparadas, estrelas e sortilégios são feitos os sonhos púrpura de nossas mãos. Como a noite gasta que ficou nos olhos cegos de Jorge Luís Borges, São Luís era, naquele instante em que meus olhos se abriam para a paisagem única do Central Park, essa visão exaurida que persistia apenas fraturada.

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No apartamento de Salwa Aboud Smith, histórias de vida foram passadas a limpo. Champagne transbordava nas flutes. Salmão, caviar e blinis enfeitavam as bandejas. Requintes de quem mora em Boston e mantém um refúgio na Big Aple só para receber os amigos.
Mistura de memória e desejo aviva raízes agônicas. No mesmo espaço, brasileiros, americanos, noruegueses. Delírios de conversas no salão e uma grande colisão de palavras. Confusão de Torre de Babel. Relembranças da São Luís dos anos 60.
Nada existe sem uma razão, dizia Leibniz. Por alguns instantes fiquei debruçado sobre Virginia Woolf, que fala sobre personalidades triviais decompondo-se na eternidade da impressão dos jornais.

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O som do saxofone de Paul Desmond inundou a minha manhã em Nova York. O sol, ali, era tão flamejante como na praia do Calhau, em São Luís. Olhei atentamente os cogumelos servidos no restaurante Le Cirque. Cogumelos e ervas suscitam pensamentos – disse-me Fides, olhando para o marido Erick Ostbye. Quanto mais velhos somos mais vulneráveis ficamos às emoções da volta ao passado – arrematou o artista plástico Erick Vittorino.
Quem passa por Nova York, mesmo por uma semana, sente na pele a carga da energia pipocante que move a cidade em cada minuto do dia.
Ali, multidões de turistas misturados aos mais exóticos exemplares de cada parte do planeta, infinidade de sinais, vitrines, portas abertas para milhares de opções em todas as áreas da curiosidade humana, fachadas, concreto, vidro, muito aço, buzinas e sirenes.
Na saída do Le Cirque (agora na Rua 58) o reencontro com a mineira Alessandra e seu marido Michael Bush. Falamos de viagens. Para eles o dilema: Atenas ou Paris? Qualquer lugar na Europa sempre vale a pena.
Despeço-me pensando com Robert Louis Stevenson: “De minha parte, viajo não para ir para qualquer lugar, mas para ir. Viajo pelo interesse da viagem. A grande coisa é ir.”

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Nova York é a cidade que dita as modas nas finanças e na cultura dos Estados Unidos. Não há metrópole tão influente no mundo. Só Londres, na era vitoriana, ou Paris, na belle époque, usufruíram tanto prestígio.
Há mais de três anos radicado em Nova York, o empresário maranhense Antonio Cordeiro Filho vive um tórrido romance com a brasileira, quase novaiorquina, Diana Engel. Na Madison Avenue, o casal me amarra com um cinto da Hermès. É um regalo pelo aniversário, que comemoramos antes, com um vinho de honra no Bar Bouloud, do lendário Daniel Boulud.
Nova York está sempre em movimento. Ora são os néons que nunca se apagam, as ruas que nunca (ou quase nunca) estão vazias, ou até mesmo gente que vagueia pelas ruas da cidade.
“Viver em Nova York é viver a experiência fantástica de conhecer uma cidade de que toda a gente fala. É estar num lugar que se ama ou se odeia”, arremata Cordeiro, a caminho de sua casa, no condado do Bronx.
A magnitude da cidade passa principalmente pela luz, cor e energia que é, no final de contas, o cartão de visita para quem gosta da confusão normal de uma grande metrópole.

MAIO_Le_Bernardin_Chef_Eric_Ripert

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Quarta-feira, 19 de maio de 2010. Passaram-se 9 anos e novamente estou em Nova York. Canto com Frank Sinatra “Come fly Away”. “Eu estou planando em um céu bonito,/ um dia incrivelmente claro/ Continue/ Nas suas doces canções de ninar/ Venha e voe comigo”.
Cercado de amigos, no restaurante Le Bernardin, se me perguntassem sobre o que é mudar de idade eu saberia o que era, mas não saberia dizer, porque existem coisas que a palavra não dá conta. Apenas diria “Venha e voe comigo”.
Nova idade é tempo vivido. E tempo, esse senhor tão bonito, não cabe em nenhuma das três palavras que inventamos para tentarmos falar dele: o passado, o presente, o futuro, a não ser como taxonomia de coisas que acreditamos descrever, no máximo.
O tempo que vivemos pode ser a imagem móvel da eternidade imóvel, de que nos fala Platão. Mas, para o poeta Cazuza, o tempo não pára.
E foi para celebrar esse tempo novo que estava se inaugurando em minha vida que me reuni com amigos na mais poderosa cidade do mundo.
No Le Bernardin, o Chef Eric Ripert (foto) continua a definir padrões inigualáveis com seu paraíso piscatório, uma parceira perfeita para uma confraternização de amigos.
Atravesso o asfalto, inoculado de pequenos cristais que brilham ao sol das três horas da tarde, como uma pessoa que retira do centro da mesa uma posta de peixe prateado.

Maio_Diana-Ross

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Como tâmaras, recordo a queda do Império Romano depois de mais de mil anos de devaneios de que tudo é para sempre, como os diamantes, e ignoro tramas. Toda trama, esse sombrio poço, perde-se com a distância do Brasil.
Folheio esquecimentos e entrevejo o brilho furta-cor do besouro (suas asas anteriores são córneas) que anda, antenas ligadas entre os olhos e a fronte, pela calçada lateral do Central Park.
No Radio City Music Hall um encontro com a voz de Diana Ross. A mulher não parece ter envelhecido. É toda energia. Sua voz continua a mesma e ouvir milhares de pessoas cantando as músicas dela em uníssono é um sentimento que não pode ser descrito, mas se pudesse uma palavra que vem à mente é “incrível!”
Depois de 13 álbuns top 10 e de cinco décadas de música pop – a sua música tornou-se o som da América jovem nos anos 60 –, Ross ainda sorri com hits como The Supremes, sua voz quase inalterada e o rosto com um ar escovado.
Nomeada tutora dos filhos de Michael Jackson, Ross se rendeu à memória dele, cuja imagem gigante surgiu no telão, e cantou “You Are Not Alone”. “Se você precisar de mim, me ligue”, ela aconselhou a platéia, antes de deixar o palco para a mudança de seu vestido final, cor de prata.
Mas o que ficou marcado na minha memória foi a voz eterna de uma verdadeira lenda da música cantando a trilha sonora de nossas vidas.

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Nova York, a cidade que nunca dorme

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1

Quem já foi a Nova York sempre quer voltar. Quem não foi sonha um dia conhecer. A meca do cinema, da literatura, do consumo e dos negócios frenéticos, dos bairros charmosos e da arte é tudo aquilo que se viu, leu, imaginou ou fantasiou.
Mas é sempre e incrivelmente surpreendente.
Há nove anos não ia a Nova York. Sentia medo de testemunhar a ânsia vã da cidade sem as Torres Gêmeas. Três meses antes da tragédia eu estive lá. E do observatório do último andar senti a sensação de que estava, literalmente, numa janela aberta para o mundo. E para o mais colossal espetáculo da Terra.

2

Nem o cinema, nem a fotografia, nem a reportagem, puderam dar conta desse acontecimento surpreendente que é Nova York à noite. Esta cidade resistiu a todas as vulgarizações, a todas as curiosidades dos homens que tentaram descrevê-la, copiá-la.
E conserva o frescor, o inesperado, a surpresa. Na voz de Frank Sinatra, New York é New York, a cidade que nunca dorme.
De que cidade você está vindo? De São Luís ou de Paris? Não me lembro. Recordo apenas ter lido O Jovem Audaz no Trapézio Voador, de William Saroyan.
Conversas sobre o fim de tudo, de Roma e sim da Babilônia, deslizando como um réptil em abstração.
Estou em Nova York e penso em São Luís enquanto exercito-me atravessando a pé a 5ª Avenida.
Aqui, percorro as memórias errantes de Jim Dine. O artista pop que saiu de Ohio, estudou em Boston e começou a construir, construindo-se, com a utilização de instrumento de mídia.
Sinto vontade de vestir o paletó pintado de verde de Dine. Temos talvez o mesmo número de paletó.
Ligação arbitrária com o mistério dos pigmentos duradouros da frase de Nabokov em que o escritor pensa também em bisões extintos e anjos, além do refúgio da arte.

3

Quando visitei Nova York, pela primeira vez, há muitos anos, ali era o Birdland. Era um nobre pedaço de Times Square. Ouvi o trompetista Maynard Ferguson e o saxofonista Cannonball Adderley.
Tudo ali era música, bruma de cigarros, tilintar de copos.
A legenda estava em pé, muito embora aqueles fossem os últimos dias do clube jazzístico naquele lugar.
Reapareceria em Greenwich Village.
O Birdland era uma espécie de Teatro Apollo da mid town. Na up town, no Harlem, Billie Holiday cantava suicidando-se.
Personagens de tempos heróicos parecem velhos fantasmas que reaparecem, na memória enlutada, como se estivessem expiando as próprias culpas.

4

Paro diante da fonte do Hotel Plaza. Existem lá dentro candelabros em que hóspedes mais experientes praticam acrobacias. Umas sexuais, outras de investimentos em Wall Street.
Enquanto atuam, as pessoas refletem-se nos cristais. Gostam de se ver espelhadas enquanto praticam a dispensável aventura no ar. Não lhes dou importância.
O que me importa é imaginar Zelda, mulher de F. Scott Fitzgerald, saindo nua da flor das águas da fonte. Naquele tempo as mulheres ainda não raspavam os pêlos pubianos para ir à praia ou tomar banho defronte ao Hotel Plaza.
Somente por esse detalhe valeria a pena ver de novo.

5

Deste final de primavera em Nova York colho o tempo amável e a visão dos peitos retardatários que as moças deixam balouçar espetando as primeiras blusas leves da temporada.
Sensuais nestes primórdios do verão são a atmosfera e as mamas.
Sensual é a voz rouca de Billie Holiday cantando Fine and Mellow em estação de rádio apunhalada pela estática. Ou com aquela orquídea colocada sobre a orelha direita enquanto manda Speak Low.
Leio em biografia que Orson Welles namorou a moça que nasceu prostituída em Eleanora Fagan, Baltimore.
Sinto mais inveja de Welles por Cidadão Kane e por Billie Holiday do que por Rita Hayworth.
Nunca houve uma mulher como Gilda? Claro que sim. Billie Holiday no seu aparato de autodevastação.

6

Na elegante manhã do breakfast no restaurante do hotel boutique Night, sou eu com certeza a única pessoa a saber que o pianista Thelonius Monk toca Round Midnight.
A música da gravação inunda o ambiente de mesas clean.
O passado mora ao lado. Subo a escada de um velho prédio. E minha emoção esboça desenhos tão transitivos como esta viagem em que revejo velhas pedras e ouço, música antiga, Bye, Bye, Black Bird, gravada por John Coltrane e Miles Davis. Os dois estão mortos.
Deslizo os dedos pelo corrimão. Apalpo a madeira como se apalpasse a vida. É primavera. Quase verão. Tempo de carícias entre as árvores do Central Park.

7

Ficar só em Nova York é algo que não me incomoda. Na verdade, diverte-me. Às vezes serve-me até como alento de uma vida obscura emoldurada por umas poucas pessoas que amo e muitas outras especialistas em acrobacias.
A maioria do mundo é composta de indivíduos voadores, praticando saltos no escuro, mesmo no claro, como os trapezistas do Cirque de Soleil.
Prefiro, entretanto, a solidão, em restaurante dos anos 40, do quadro de Edward Hopper em que aparecem duas mulheres em primeiro plano, dentro do realismo americano onde contrastam as grandes manchas escuras do ambiente com as lâminas de luz coadas lá fora.
Lembro-me freqüentemente de Hopper, quando me encontro só em Nova York, ninguém para abrir portas trancadas, apenas reticências despejadas numa lata de ervilhas.

8

Manhã mal raiada em Nova York. Penso em quadros cósmicos de René Magritte e Paul Devaux. Surpreende-me ver na pista do aeroporto um avião todo branco. Tudo seria banal não fosse o fato de que ele se prepara para levantar vôo sem turbinas.
Pássaro sem asas, disse de mim para comigo. Cão sem plumas, avisou-me o poeta. Mulher sem peitos, surpreendeu-me, constrangido, o voyeur.
Penso mais, como não haveria de pensar, se acordei tão cedo e ainda estou envolto em pesadelos de paisagens lunares para realizar o distante trajeto entre Nova York e São Paulo?
Aguarda-me na verdade aquele avião branco, sem turbinas, para me levar em seu bojo como um passageiro absurdo, o fantasma da ópera.

9

No aeroporto Kennedy, homens tristes transitam levando bagagens em carrinhos que parecem cavalos-marinhos adormecidos.
Um japonês tira fotografia do neto. Clarão de bomba de Hiroxima dentro do salão. Enquanto isso, desfilam mulheres de coxas de fora. Sapatos altos apreciam a vertigem das alturas e a sugestão da libidinagem.
Olho as coxas das mulheres. Olho as bainhas de minhas calças jeans. Estão manchadas de tinta branca. Gosto dessas imperfeições. O mundo é imperfeito.

10

Dentro do avião, converso com meus botões. As mulheres deveriam embarcar de camisola para atravessar oceanos. Sem calcinhas. Assim, não precisariam tirá-las quando fossem aos estreitos WCs para urinar nos ares.
Demora mais de dez horas a travessia sobre o Atlântico. Minhas calças jeans são confortáveis, mas eu preferiria estar de pijama.
Uma noite passada em avião equivale a uma noite em lugar algum. Morremos todos por uma noite os que viajam e fazem longas travessias. As mulheres sem camisolas e calcinhas e os homens com suas calças jeans manchadas de imperfeições.

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