Alegria (Joie de vivre)

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Do Livro das Cortesãs – Um Catálogo das Suas Virtudes, de Susan Griffin, Editora Rocco, li, gostei e dou de graça para vocês:

A capacidade de sentir prazer na vida é uma virtude como as outras. A alegria não é tão simples como parece. Há pessoas que, por medo ou prudência, se acostumam tanto a resistir ao sentimento que acabam perdendo totalmente a prática de se sentirem satisfeitas.

Outras, confundindo domínio com prazer, preferem a conquista ao deleite e jamais saboreiam realmente o produto de seus esforços. É uma arte saber gozar a vida, sentir desejo e aceitar o que vem, saborear cada detalhe, em todas as suas minúcias, de cada sabor, sensação ou momento que surge, por acaso ou intenção.

A experiência requer uma coragem sutil. Deleite, júbilo, exaltação podem tirar uma pessoa do prumo, perturbando a ordem estabelecida do dia (ou, como é mais freqüente, da noite).

E, como quase todas as formas de alegria são fugazes, o prazer deve acabar conduzindo à perda, por menor que seja – uma perda que traz junto a certeza de que tudo passa.

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Tempo de liturgias penitenciais

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Abril_4

A celebração da Paixão de Cristo, no Brasil, não é apenas uma efeméride religiosa, mas foi secularizada pela tradição. Certamente, a prática da penitência, ou a maior afluência aos templos, a partir do Domingo de Ramos, tem uma conotação mais visível no ritual dos católicos, onde se estimula a prática penitencial. Ainda assim, está dirigida, nos anos recentes, para a convivência com os temas da nossa vida social. Este ano, por exemplo, com uma atenção forte para unir a sociedade na promoção de uma economia a serviço da vida, sem exclusões, criando uma cultura de solidariedade e trazendo paz.

A Semana Santa é, para os religiosos, um tempo apropriado aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às privações voluntárias como o jejum e a partilha fraterna em obras de caridade, ou da simples esmola aos desprotegidos. Entre nós, 50 anos atrás, as rádios se limitavam, a partir da quinta-feira até a chegada do sábado de Aleluia, a divulgar músicas instrumentais, de preferência de ritmo lento, dos chamados autores clássicos. Hoje, não há modificação sensível na programação diária dos veículos de comunicação.

A abstinência de carne foi há muito substituída por mesas fartas, ainda que exclusivamente com peixes e produtos vegetais. No nosso caso, desde o bacalhau importado até os pescados frescos de nossos mares, rios e alagados (às vezes os açudes e barragens construídas para gerar energia elétrica). As comidas de coco, inclusive o feijão e o arroz, fazem parte do ritual mundano da Semana Santa. E o vinho tem seu lugar garantido à mesa, até em muitas famílias de baixa renda. Recente é a introdução de práticas importadas como a distribuição de “ovos de Páscoa” em forma de chocolate.

Tudo isso, em homenagem ao Cristo que, há dois mil anos, incorporou ao espírito conturbado do Planeta Terra sua lição de paz que deveria servir de roteiro ao mundo interior de todos nós.

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O que sempre nasce

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Março 3

A Bailarina, de Degas

1

Depois de alguns dias de vadiação, já sinto saudades das miniférias. Se soubesse que elas durariam tão pouco, teria seguido aquela falsa – mas nem por isso desprezível – receita atribuída ao mestre de Ficciones, Jorge Luis Borges, despedindo-se da vida:
– Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios, iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e comeria menos lentilhas, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários, soltaria mais pandorgas e perseguiria mais balões, cujas buchas apagaria de um sopro…
Ou seja, trocaria a vida por uma sábia alienação, posto que está cada vez mais difícil viver o duro chão da realidade. A humanidade, definitivamente, não deu certo e não há perspectivas de que venha a funcionar um dia.

2

De volta a São Luis, reencontro o Sol que deixara aqui nos trópicos. Releio o Hemingway de O Sol Também se Levanta, seja aqui ou na ensolarada Espanha, chão que aqueceu a alma dos jovens escritores dos anos 1920. Todos corriam ao encontro do Sol, para que este aquecesse suas moleiras. Lá, em terras de Castela, em Paris, na Riviera Francesa ou nas Plazas de Toro de Madrid e Sevilha.
A propósito: a novela de Papa Hemingway era muito melhor do que o filme – Agora Brilha o Sol, dirigido por Henry King – uma adaptação difícil, apesar da luminosa beleza de Ava Gardner e dos bons desempenhos de Tyrone Power e Errol Flynn.
Esse tal de “Sol” produz uma reação química no cérebro e no coração dos homens, despertando-lhes um sentimento de euforia, caracterizado por uma certa alegria inexplicável.

3

Os franceses são capazes de produzir grandes blockbusters (livros de enorme sucesso), cheios de ação, milionários. Também são craques em narrativas comerciais, como provam suas inúmeras produções refilmadas pelos americanos. Mas a França ainda é e sempre foi o centro internacional da cultura humanista. Não pode jamais querer ser americana, sob pena de sofrer um AVC, Acidente Vascular Cerebral, como acontece com o protagonista de O escafandro e a borboleta (2007), de Julian Schnabel.
O jornalista Jean-Dominique Bauby, editor da Elle, interpretado por Mathieu Amalric, está no auge: carro novo, rico, bem sucedido, invejado e pretensamente livre. Deixou a família e evita qualquer relacionamento maduro com as mulheres. Quando tem o derrame, descobre que se afastou das coisas essenciais, do amor, da responsabilidade, dos filhos, da cultura. Pelo olho esquerdo, que ainda está vivo e em movimento, ele vê o resultado do choque entre a vida estéril e o acervo acumulado que abandonou.
No fundo, tinha deixado à deriva seu próprio país ou o que há de melhor nele.

4

No filme, uma das coisas essenciais que voltam é a memória. Marcel Proust, no capítulo Combray, do livro No Caminho de Swan, escreveu: “Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis – , o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
Esses vestígios imateriais são representados, no filme, pelos espíritos, que vagam arrastando suas longas vestes e cercam o paciente terminal de visões, atenção e afeto.
Tudo some da vista, o dinheiro, o crédito, a casa hipervalorizada. Vemos então que essas evidências eram a ilusão dos nossos sentidos bem nutridos, que o sentimento de devorar o mundo todos os dias não tinha base sólida.
Em O escafandro e a borboleta, a vida desperdiçada, sem conexão com o passado, dá lugar à criação e à emoção, presas num corpo imobilizado.

5

Divagações à parte, sou do tipo de viajante para quem melhor que viajar só mesmo viajar sem compromissos de turista. Marujo de primeira viagem que chega a Paris tem de fazer a via sacra: Louvre, d’Orsay, Pompidou, Champs-Elysées, Opera, Arco do Triunfo, Montmartre, Notre Dame, torre Eiffel.
Você pode até mesmo não subir, mas terá de no mínimo de dar uma olhadela na dama de ferro.
De minha parte, acho que levei uns vinte anos para decidir-me a subir na torre. Nas minhas primeiras andanças em Paris, sempre me pareceu de uma vulgaridade extrema, um lugar comum abominável, subir na torre Eiffel. Alguns anos mais tarde, concluí que era preconceito meu. Tentei cumprir o ritual de milhões de turistas. Não deu. Havia filas de mais de duas horas em três patas da torre. Na quarta pata, destinada aos atletas que topavam subir a pé, havia pelo menos quinhentas pessoas. Claro que não subi.
Anos mais tarde, milagre dos milagres, passei por lá num dia em que as filas estavam curtas. Foi assim que, visitando Paris quase todos os anos, só depois de uns 20 subi na torre Eiffel, quase por acaso.

6

Nesta viagem de fim de inverno, mas com a Europa ainda gelada, meu descompromisso com monumentos foi total. Verdade que acabamos sempre tropeçando neles, ou Paris não seria Paris. Desta vez, dediquei-me a meu esporte predileto: a visita a livrarias, galerias de arte, bares e restaurantes.
Para a torre Eiffel só fiz um vago aceno, e isso de muito longe. Montmartre, muito rapidamente para uma prece na Sacre Coeur. La Défense, nem pensar. Não combina com o meu olhar essa Paris insólita e com ares de Nova York. D’Orsay, só para rever A Bailarina, de Degas, e Louvre, só de passagem rumo a algum boteco ou restaurante estrelado.
De cara, um choque: a P.U.F., aquela acolhedora e farta livraria da Place de la Sorbonne, com cinco andares de livros, não existe mais. Se bem que o fim de uma livraria não faz nenhum abalo na Cidade Luz. Paris oferece ainda mais de quatro centenas. Mais as FNACs, megamagazines dedicados à música, livros e eletrônicos. Em matéria de livros, CDs e DVDs, a quantidade é tal que chega a assustar o cliente. Melhor ir logo às estantes especializadas, escolher o que se quer e fugir às pressas das tentações das compras por impulso. Sem falar que livro pesa na volta.

7

Quanto a bares e restaurantes, Paris parece sempre a mesma. Quando a visito, posso me dar ao luxo de eleger casas com mais de século. Lá estão, imutáveis, como se o tempo não tivesse passado, o Dôme, Deux Magots, de Flore, la Rotonde, cafés sempre charmosos mas que prefiro evitar, por demais turísticos.
Mesmo assim, entrei no Deux Magots. Era uma tarde fria e com muita sorte consegui uma mesa dentro do café. Na Brasserie Lipp, em frente ao Deux Magots, só com hora e meia de espera.
No Le Tain Bleu, passado o horário do almoço só me servem um lanche. O suntuoso restaurante dentro da estação de trem Gare de Lyon é de estilo Belle Epoque e foi construído para a Exposição Universal de 1900 ao mesmo tempo que o Grand Palais, Petit Palais e a Ponte Alexandre III.
Hoje em dia o restaurante está tombado como patrimônio histórico nacional.

8

Dura é a luta pela comida em Paris. Passo em frente ao Procope e faço uma volta no tempo. Fundado em 1686 e tido como o mais antigo café do mundo, Le Procope foi freqüentado por La Fontaine, Molière, Racine, Robespierre, Rousseau, Voltaire, Diderot, d’Alembert e demais enciclopedistas, Balzac, Victor Hugo, Verlaine, George Sand, Anatole France. Nele, Benjamin Franklin trabalhou na redação da declaração de independência dos Estados Unidos.
Numa vitrine, há um chapéu de Napoleão Bonaparte, que o teria deixado como garantia de uma dívida.
Instalado em uma antiga casa de banhos turca, tem interiores belíssimos e – surpresa! – cardápio com preços relativamente humanos.

9

Não muito distante dali, na Place de Vosges, onde morou Victor Hugo, está o sempre refinado L’Ambroisie, reputado por ter um dos chefs mais estrelados de Paris, Bernard Pacaud. Mas seus padrões culinários estão em declínio. O carré de Cordeiro de leite que o Bernard prepara no Bistrô Grand Cru, em São Luís, é melhor. A decoração lembra um palazzo italiano. E os pratos mudam com as estações e pode incluir truffas brancas ou um poulard de Bresse demi-deuil (frango assado com trufas negras). Refestelei-me com esses sabores que, às vezes, me faltam em São Luís.
Faço uma lírica incursão no Bel Canto, um restaurante onde o mundo é realmente um palco. A casa possui um staff de garçons-cantores (estudantes e professores do Conservatório de Paris) que durante a refeição cantam árias de Puccini, Bellini, Rossini, Mozart, Verdi, etc. Com seu menu lírico, Le Bel Canto deve ser um dos segredos mais bem guardados de Paris.
Na rue de Rivoli, uma rápida pausa para tomar o chocolate quente do Angelina, uma delícia! A casa de chá super celebrada entre os franceses exibe, com orgulho, um de seus recordes: 300 “Mont Blanc”, a especialidade da casa à base de “merengue, crème de marron vanillée et chantilly”, servidos diariamente!
Do lado direito do Angelina fica o célebre Hotel Maurice. Há quase 200 anos Le Meurice tem sua história entrelaçada com a história da França, e com as evocações culturais e gastronômicas de Paris.
Fundado em 1835, com uma arquitetura absolutamente clássica fincada ao pé do jardim des Tuileries, no centro de Paris, o hotel ousou chamar o frenético arquiteto Philippe Starck para renovar suas áreas comuns. E, de quebra, o chef Yannick Alléno, 40 anos, que conquistou 3 estrelas do Guia Michelin para o imponente restaurante, cuja decoração foi inspirada no Salão da Paz do castelo de Versailles (que permanece em sua essência). Hoje se vêem cortinas bufantes (embora discretas) e gigantescas peças de cristais Baccarat (cuja transparência as integra com delicadeza no ambiente) em contraponto com os bronzes, mármores e afrescos originais. São o cenário para uma cozinha criativa e quase sutil, por mais que se apegue a tradições.
Aliás, há algo em comum na presença de dois artistas – o arquiteto Philippe Starck e o chef Yannick Alléno – na atual fase do hotel Le Meurice. Starck não é radicalmente futurista. Ele antes combina elementos tradicionais com interferências modernas e combinações alucinantes de elementos de várias épocas.
Alléno, longe de ser um Ferran Adrià, criador de técnicas revolucionárias, é um garimpeiro de sabores tradicionais, os quais manipula de forma extremamente habilidosa e moderna, conferindo uma delicadeza emocionante a fórmulas que estão na memória gustativa dos franceses e de boa parte da cozinha ocidental.

10

É essa a Paris que me fascina. Paris e seus sabores, seus bistrôs, seus molhos que nos enfeitiçam e que nos dão tanto prazer que achamos que estamos sonhando.
Freqüento essas casas há quase três décadas e são sempre iguais. Nelas só mudam os preços e os garçons.
É de supor-se que desde séculos tenham a mesma configuração e esta é a magia das capitais européias, a sensação de transportarmo-nos para séculos passados ao entrar em um restaurante.

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O prazer de observar as ruas

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O prazer de passear pelas ruas foi identificado primeiro em francês, na virada do século XIX para o XX, e acabou gerando um personagem imortalizado por Baudelaire: o Flâneur, o flanador, aquele homem que se mistura com a multidão e vai passeando, degustando o prazer de observar as ruas.

Se eu tivesse que resumir o que seria a arte de flanar ou definir o que é um flanador, diria que é a pessoa que considera as ruas de forma diferente: elas passam (em si) a ser um espetáculo de descoberta e conhecimento de toda uma sociedade.

Foi lendo o primeiro livro de Lobo Antunes (um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo), o célebre Memória de elefante, de 1979, que acabei descobrindo quase o cheiro de uma Luanda, e, por que não?, de quase toda uma Angola arrasada pela guerra, em que as pessoas engoliam o desespero em forma de loucura.

O personagem principal, o psiquiatra, de quem toda memória sai, e com ela a prosa e a saudade de uma Lisboa, nos conta sua experiência dolorosa e sofrida pelas ruas dessa Luanda destemperada. Lobo Antunes constrói uma cidade e um personagem com forte inspiração autobiográfica, numa ópera (ou fado?) com certeza de inspiração barroca.

Na literatura urbana do Brasil, há um longo histórico de autores que trataram das ruas: Joaquim Manoel de Macedo e suas “Memórias da Rua do Ouvidor”, João do Rio, Rubem Fonseca, Machado de Assis, Marques Rebelo, Renard Perez. Mas foi lendo Flanando em Paris, de Carlinhos de Oliveira, um dos intelectuais mais populares e polêmicos do Rio de Janeiro nas décadas de 60 e 70, que encontrei um painel dos impasses e perplexidades do cidadão brasileiro, esteja em Paris, Londres, Amsterdã ou Lisboa. Sentimentos compilados durante suas andanças por essas cidades, acompanhado por artistas, dramaturgos, escritores, gigolôs e belas mulheres.

No livro estão os encontros com Samuel Beckett, Jean-Paul Sartre e Fernando Sabino (a quem apresentei São Luís quando o meu olhar começava a descobrir os segredos e mistérios desta cidade). A falta de dólares, a abundância de tempo e a insaciável curiosidade. As descobertas dos sebos e dos cafés, a efervescência cultural.

Insólita e misteriosa, a Paris de Carlinhos de Oliveira não se encontra nos guias turísticos. Não se descortina dos telhados de suas antigas igrejas ou do topo da Torre Eiffel. A Paris desse cronista irreverente e inconformista está no subterrâneo, onde os olhos dos homens brilham como lâmpadas mortiças em procissão. Se revela nas observações desse porta-voz dos meandros da alma. Nas descrições da boemia, nos fragmentos de diálogos, nas reflexões sobre cultura, dinheiro, morte, solidão, amor, amizade, hipocrisia, preconceitos.

São textos construídos com humor cáustico que lançam um olhar objetivo sobre a condição humana, em tudo o que esta tem de oculto e ambíguo. São relatos que enviou do velho continente, tirados de seu caderno de andarilho, de seu espírito sensível que tenta decifrar em si próprio e nos outros o enredo desta complexa teia que é a nossa existência.

Escritor confessional por natureza, Carlinhos de Oliveira encontrou na crônica o canal ideal para exprimir toda a inquietude de seu mundo interior. Ele via, engolia, assimilava, transformava e só então escrevia. Fragmentos soluçantes, textos desesperados que não poupavam nada. Muito menos a si próprio. Tinha a autocrítica dos doutores em alma humana e sabia que viver era uma forma de colecionar prisões.

Agora, em Paris, com essas duas preciosidades literárias – Memória de elefante e Flanando em Paris – nas mãos, tento mais uma vez mergulhar na alma da cidade, cujas ruas são para mim uma questão presente, próxima. E como um flâneur, ando pelas ruas frias de Paris às vésperas da Primavera e lembro do que outrora foram as ruas de São Luís.

Em Paris, o tempo de Baudelaire admirado pelos personagens que passam, não sofreu com a fuligem do tempo. Já em São Luís, as ruas ainda precisam redescobrir sua vocação humana, no mesmo movimento em que descobrimos, no íntimo, essa vocação como um desenho ou espírito, quando já não nos lembrávamos o que exatamente significava.

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Paris não é uma cidade, é um sonho

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Março 2

1

Grandes cidades temos muitas. Nova York é a metrópole alicerçada pelo dólar, mas Paris é insuperável.
Em Paris viveram Proust, Victor Hugo, Balzac, Zola, Sartre, André Gide, o cinema nasceu em Paris. Tem a Ópera, a Bastilha com o grito de igualdade, liberdade e fraternidade.
Existe um grande passado na sua estrutura e a cidade, como certas pessoas, nos conquista no primeiro momento.

2

Na primeira semana de março, quando estava planejando rever Paris, peguei um DVD do filme Paris, eu te Amo. São dezoito pequenas histórias, ou vinhetas, como devemos dizer, onde Paris se destaca esplendorosa como ambiente.
Apenas duas vinhetas são péssimas e nada possuem ilustrando Paris, aquelas dos vampiros e um velhote que se mete sem sentido no mundo da moda que é ridículo. Mas os outros são bons de se ver, divertimento do melhor, com doses de amor sempre presentes.
Os diretores pertencem a vários países e temos até o brasileiro Walter Salles como autor de um conto.

3

Em Paris, eu te Amo, vários atores norte-americanos que gostam da capital francesa participam, como Gena Rowlands, Ben Gazzara e Nick Nolte, ao lado de francesas maravilhosas como Fanny Ardant e Juliette Binoche.
Ao trivializarem Paris, os cineastas conseguiram destacar as emoções, sensações, descobertas, medos, enfim, a humanidade dos moradores da cidade, que estão longe de confirmarem o pastiche “loiro de olho azul”: são imigrantes, traficantes, viciados, estudantes, mães de família e demais pessoas em busca de afeto – ou seja, um mosaico de habitantes do mundo todo.
Eu poderia sempre assistir ao filme como exercício de lembranças, vendo Montmartre, Pigalle, esquecendo o “banlier” ou os subúrbios distantes, modernos imensos, feios, alguns com muita miséria.
Mas aquilo não é Paris.

4

Paris tem sido uma festa para os artistas muito antes de Ernest Hemingway beber seus tragos e escrever O Sol também se levanta no café La Closerie des Lilas, em Montparnasse.
Há muito tempo Paris vem sendo o cenário dos apaixonados, amantes e dos enlouquecidos de amor.
Vários amores que se tornaram referência para os nossos, nasceram em Paris.

5

À mesa, Paris é uma elegia aos sentidos. Do sabor delicadíssimo de um marron glacé ao gosto rasgado de um steak au poivre servido com batatas soutée na maioria dos restaurantes populares.
A Paris chique não é fashion nem está na onda. Ela tem estilo.   
Coco Chanel seria a primeira a concordar com a afirmação. É dela esta frase: “A moda morre, mas o estilo permanece”.

6

E o lado verde se espalha por todos os cantos da Cidade Luz. São mais de 600 mil árvores – uma para cada quatro habitantes; 400 parques, jardins e “promenades”; uma centena de jardins decorativos; 400 canteiros sobre as ruas; e dois imensos bosques cobrindo mais de 1.700 hectares.
Com tudo isso você pode chegar a uma conclusão: Paris não é uma cidade, é um sonho.

7

E é dentro desse sonho que vago pela noite fria de Paris pensando na bailarina de Edgar Degas que vi no Museu d’Orsay. Cada qual tem um enigma que transcende meu pensamento, o supositório que algum doente terminal está recebendo em apartamento hospitalar e os ásperos monumentos que a história tece com dedos enrolados em gaze.
No museu, a moça de Degas é companheira de faraós egípcios, deusas da Índia e assombros budistas do Japão.
E dialoga com uma figura de Rembrandt, perdida entre a poeira e o chiaroscuro da pintura setecentista do holandês sutil, ou talvez com as criaturas de Monet ou Picasso, contemporâneas e mais decifráveis.

8

Se estou me lembrando das pérolas da visita ao Museu d’Orsay, pela janela do hotel pressinto Paris crescendo dentro da noite que acende e apaga.
Enquanto no Brasil as cidades estão desonradas pelo painel onde se escreve a imutável tolerância com a politicalha generalizada, Paris é tradição e, também, desenvolvimento.
Por isso se ouve o barulho dos guindastes que transportam materiais de construção em meio ao boom de investimentos privados e públicos.

9

Esta noite tem para mim um encanto especial. Tem a bailarina de Degas que se dilui em um rosto de pincéis de sombras, mas isso não chega a ser um protesto. Ela está orgulhosa de morar definitivamente em Paris.
Ao mesmo tempo em que se destroem templos de arte em cidades cucarachas do Brasil, no processo de erupção de supermercados ou igrejas suburbanamente universais, um simples projeto de área de cinema e centro cultural conquista milhões de euros para massagear a criatividade humana.
A bailarina de Degas dança, dança e dança alegremente em Paris.

10

E com o coração inundado de beleza, rompo a aurora, penso em raptar uma bailarina de Degas e saio a caminhar pelas ruas orvalhadas de Paris amanhecida. E sinto frio.

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O Carnaval é folia que recria o mundo

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Fevereiro_2

Porque não fica o que pode permanecer, nem remanesce aquilo que é transitório, o Carnaval encerrou na última terça-feira mais um de seus ciclos de alegria e agitação.

O velho Machado de Assis não gostava de Carnaval. Mas admitia não haver melhor remédio contra o tédio, o fastio, o desgosto:

– Conheci defuntos que ressuscitaram só por conta dessa celebração.

Numa crônica de fevereiro de 1864, o “fundador” das boas letras brasileiras escreveu, a propósito do tríduo:

– O Carnaval é um hiato na vida comezinha. Paixões, interesses, mazelas, tristezas, tudo “se retira” e vai viver em outra parte…

O Carnaval recria o mundo. Em que outra época do ano se poderia abraçar a moça de umbigo de fora, pular com ela horas a fio, a mão boba sobre o quadril nu, ao som do velho e interminável Jamelão?

Com direito a um “breque” no samba:

– Eu agora sou feliz / Ai eu sou feliz / Eu agora vivo em paz…

O Carnaval é permissivo, ao ponto de dispensar o ritual da cantada.

O pretendente se acercava do salão, no Lítero ou no Jaguarema, a pista de dança transformada em vitrine. Já embalado por meia-dúzia de “cubas”, cada franguinho imberbe sentia-se um conquistador vacinado contra as desilusões. A rejeição também não era incomum, mas virava “brincadeira”. As meninas se organizavam em pencas, de mãos dadas, ou num “trenzinho”, o salão arrumado em “carrossel”. A rapaziada nas beiradas, tarrafeando sorrisos, espionando as favoritas, exercendo o charme e a pescaria.

Até que o frangote ganhasse coragem e, lá pela vigésima volta – zás! Pegava na mão. Se não fosse repelido, o felizardo incorporava-se ao carrossel, com direito a enlaçar os ombros e as ancas da eleita. Uma glória!

O velho sobrado da sede social do Lítero, ancorado à boca da Praça João Lisboa, tremia nos anos 1960. Os sambas, marchas-rancho e marchinhas que animavam o salão, nutriam-se dos sucessos chegados do Rio de Janeiro e dos seus concursos carnavalescos. Tão “ricos” e talentosos que, em 1939, por exemplo, classificaram futuras obras-primas como Aquarela do Brasil.

Os anos 1960 ressoam “agora” em meus ouvidos, com Madureira chorou, Quem sabe, sabe, Vai ver que é e Eu chorarei amanhã – sons que se regeneram em minha orquestra mental, feita de trumpetes, trombones de vara e muita percussão. Notas que se alojam em minha cabeça, como um piolho, ao ponto de nela encontrar um velho confete.

No fundo, era disso que se tratava. Pegar na mão. Para os franguinhos “debutantes”, ainda não era o tempo – e as rejeições machucavam. Para os marmanjos, a vida era mais fácil. O salão era uma quase alcova: olho no olho, mão na mão, e se possível, mão em mais algum lugar.

A festa girava em torno da Praça João Lisboa, passarela natural dos blocos de sujos e das escolas de samba da cidade.

Do Casino Maranhense, velho galeão iluminado da Avenida Beira-mar, ecoava o refrão:

– Eu chorarei amanhã / Hoje eu quero é sambar… – enquanto a “strela matutina” tingia de ouro a baía de São Marcos e o sol de fevereiro iluminava a Praça, a Matriz, a Beira-mar…

Agora, resta esperar 2011 para mais uma celebração à alegria, ao amor, à vida.

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A máscara e os anônimos foliões

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Fevereiro_4

Adereço indispensável nos bailes carnavalescos de outrora, a máscara vem aos poucos sendo deixada de lado na composição das fantasias usadas pelos foliões. Por detrás das máscaras, as pessoas se libertam, assumem diferentes comportamentos, e como anônimos, caem na folia.

As máscaras aparecem na história de vários países. Tiveram conotações religiosas, culturais e contaram um pouco do misticismo de vários povos. Foram representações de deuses para os africanos, que as usavam em rituais, de magia para índios. Mas ganharam força pelo mundo afora quando passaram a representar o lazer, a brincadeira. E é por isso que as máscaras são relacionadas ao carnaval no mundo inteiro.

No teatro grego serviam para a criação do personagem e no carnaval de Veneza para a transgressão das ações. Os personagens mais famosos e inspiradores das marchinhas de carnaval – o pierrô e a colombina – são representados por máscaras. Onde têm confete, serpentina e simbologia de Momo, estão as máscaras.

Ao contrário de antigamente, os bailes de máscaras tornaram-se eventos restritos. Em São Luís, por exemplo, são raríssimas as festas deste gênero. Até mesmo no carnaval de rua, são poucas as pessoas fantasiadas com máscaras, a não ser, é claro, entre alguns figurantes de blocos e escolas de samba que desfilam na Passarela do Samba.

Uma das vantagens do mascarado é o anonimato. Em muitos casos, até é difícil dizer se é homem ou mulher. Quem sabe se, por detrás de uma máscara que cruzamos na rua não está uma personalidade pública famosa. Graças ao disfarce, se diverte livremente num mar de gente, longe da perseguição dos ´paparazzi´.

Também chamados de bailes à fantasia ou “Bal Masqué”, os bailes de máscaras foram os eventos precursores do carnaval moderno no Brasil. Importados pela elite carioca, na primeira metade do século XIX, os bailes marcaram a adesão da nova burguesia capitalista à folia e a incorporação ao carnaval brasileiro do luxo e sofisticação característicos das festas de Paris e Veneza. Nos disputados bailes de máscaras, chovia confete e serpentina. As fantasias eram cuidadosamente elaboradas, não faltando o brilho de lantejoulas e paetês. Os motivos das fantasias quase sempre obedeciam os padrões e costumes europeus: pierrôs, colombinas, arlequins, palhaços, etc.

Confeccionadas em cêra muito fina, papelão ou em papel machê, simulam caras de animais, caretas, entre outros. As fantasias apareceram logo após o surgimento das máscaras, dando mais vida, charme e colorido ao carnaval, tanto nos salões quanto nas ruas.

No Brasil, o primeiro baile de máscaras foi realizado no Hotel Itália, no Rio de Janeiro, em 1840, por iniciativa dos próprios proprietários italianos, empolgados pelo sucesso dos grandes bailes de máscaras da Europa. A repercussão foi tamanha que outras cidades, como foi o caso de São Luís, por exemplo, entraram na onda dos famosos bailes.

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Uma voz chamando de Paris

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Março 1

Dias desses recebi um telefonema de Paris. Uma amiga, a cantora Anna Torres, desejava ternamente bom Carnaval e descrevia a paisagem gélida da mais bela cidade do mundo.

Por uma dessas casualidades, haviam-me dado de presente na véspera o Dicionário Amoroso da América Latina, uma das mais sedutoras obras de Mario Vargas Llosa. Lançado há pouco tempo em português, o livro era um presente de um velho amigo, que acertou com rara intuição o que eu poderia gostar de ler nos feriados.

O nome Dicionário pode talvez assustar. Ledo engano. Por detrás desse título se esconde uma declaração de amor a esta parte do continente em que vivemos, com largo espaço para o Brasil, de Jorge Amado a Guimarães Rosa, de Rubem Fonseca a Euclides da Cunha. E ainda sobra lugar para o Carnaval, o futebol e o Rio de Janeiro.

Mas o que mais me atraiu nos ensaios de Vargas Llosa foi seu amor a Paris. Conheci a cidade em 1982 – e a ela retornei o que me parece um milhar de vezes, seja pessoalmente, seja em livros, em filmes ou em discos. O que me ficou de toda essa experiência múltipla foi que Paris é eterna, mas quem realmente a reinventou foi a Geração Perdida. Ninguém melhor a retratou do que Ernest Hemingway em Paris é uma Festa.

O que não sabia – e aprendi agora – é que não houve apenas uma geração, e de um único hemisfério, apaixonada por aqueles mágicos domínios que vão de Montmartre a Montparnasse.

“Depois que escrevi meus primeiros contos”, narra Vargas Llosa, “me convenci de que nunca chegaria a ser um verdadeiro escritor se não fosse viver em Paris. Isso pode parecer muito ingênuo, mas há meio século, tenho certeza, essa ilusão era compartilhada por inúmeros jovens de todos os rincões do planeta. (…) Quando por fim consegui realizar meu sonho de viver na cidade, a primeira coisa que aprendi na França foi, na verdade, descobrir a América Latina e descobrir a mim próprio como latino-americano. (…) Meus sete anos parisienses foram os mais decisivos de minha vida. Aqui me fiz escritor, aqui realmente descobri o amor-paixão de que tanto falavam os surrealistas e aqui fui mais feliz, ou menos infeliz, que em qualquer outra parte.”

Fico por aqui, ou acabo copiando o Dicionário inteiro. É um desses livros inesquecíveis e plenos de verdade, o que significa cheios de vida.

A mais bela crônica que jamais escrevi foi Primavera em Paris. Depois de ler o Dicionário de Vargas Llosa, eu a reescreveria com igual paixão.

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Tudo Azul no Réveillon da Lua Azul

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Dezembro_2O Réveillon é sempre um momento mágico. As pessoas ficam mais alegres e enxergam no novo momento que se aproxima uma chance de consertar tudo de errado que aconteceu durante o ano que passou. Mágoas são resolvidas, discussões perdoadas, amores se fortalecem e outros novos surgem. Tudo isso sob um céu estrelado. Os que têm chance de ir até um lugar belo e distante de toda a poluição das cidades grandes, enxergam os astros de verdade. Já os que ficam nas metrópoles, recebem as boas-vindas de uma imensidão repleta de pontinhos brilhantes artificiais, de cores e formato diferentes, que fazem barulho e promovem a alegria de pessoas de todas as idades logo que os ponteiros dos relógios apontam para cima, marcando a meia-noite.

No Réveillon da Lua Azul não foi diferente. A começar pela decoração – uma viagem pelos diversos tons de azul contrastando com dourado e prata, feita pela designer Cíntia Klamt Motta, que mandou vir de Gramado e Canela, na serra gaúcha, hortênsias azuis e folhas de plátanos também azuis, algumas douradas e prateadas, para compor um cenário que incluía painéis de palácios franceses e todo um conjunto de obras de arte dos mais famosos gênios da pintura universal.

Logo no hall de entrada dos salões, a famosa tela “Bal Au Moulin de la Galette”, de Renoir, saudava os convidados. E dividia os olhares, no mesmo espaço, com O Jardim de Monet, em Giverny, e as bailarinas de Degas (“Uma nuvem passa entre o chão/ e os pés das bailarinas/ como a nuvem/ mudam de forma/ e estão poucas vezes em terra/ as mãos em pontas/ nos braços também aparecem/ como a inconstância do vento/ as bailarinas de Degas/ não precisam do nosso olho/ – menos rápido, quase sempre/ para as elevar do solo.” – canta o poeta).

No primeiro salão, “A Mulher com Sombrinha”, de Claude Monet, cujo fascínio está no modo pelo qual a luz e a brisa conservam-se na tela para um eterno deleite. Ela parece flutuar ali, levada pela sombrinha e envolta na luminosidade do instante. No mesmo salão, a presença exuberante de Van Gogh, com sua “Noite estrelada sobre o rio Ródano” (1888), cujo procedimento ele repetiu no quadro “A Noite Estrelada” (1889): o uso de estrelas como fundo de suas telas. Em destaque no fundo do salão, a famosa tela pintada de memória – e não a partir da vista correspondente de uma paisagem, como de costume – era a melhor prova de que nenhum pintor sentiu melhor a força da música cromática da noite que o atormentado holandês. Van Gogh era um artista que não desprezava a realidade dos fenômenos. E soube, como ninguém, ouvir a sinfonia cromática do céu.

No grande salão, grandes painéis de pintura com desenhos de papéis de parede, em dourado e azul, remetiam aos palácios franceses e faziam uma belíssima e deslumbrante composição com os variados tons de azul dos lustres de voil e dos balões japoneses também azuis que despencavam do teto. No centro do salão, o palco onde se apresentaram as bandas. Mákina du Tempo, All Times, Bicho Terra e Sambauê conseguiram manter a pista de dança lotada até o dia amanhecer.

Ao se despedirem, com o dia já claro, os últimos convidados, tal e qual uma pintura impressionista de Monet, mesmo sem os traços  fortes iluminados pelos fogos da meia-noite, ainda conseguiam refletir a luz natural do mundo…

REVEILLON-2009-2010

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Natalança ou pretexto para homenagear o estômago

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Dezembro_Luzes_do_Natal_3

Machado de Assis, no fecho de ouro do seu “Soneto de Natal”, fala do homem a quem faltou inspiração, quando desejoso de “transportar ao verso doce e ameno as sensações de sua idade antiga, naquela mesma velha noite amiga, noite cristã, berço do Nazareno”.

Vale a pena repetir os tercetos finais do imenso escritor e também grande poeta: “Escolheu o soneto… A folha branca pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, a pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o metro adverso, só lhe saiu este pequeno verso: Mudaria o Natal ou mudei eu?”

Para o Papa Bento 16 “o materialismo” e os exageros da mesa são pecados que vêm “poluindo o espírito de Natal”. “O Natal deveria ser marcado apenas por celebrações e os cristãos deveriam comemorar a data em sua casa, de maneira simples, apenas para demonstrar a fé às suas crianças” – disse.

Antes de partir para a eternidade, o Papa João Paulo 2º também expusera a sua preocupação com o lado “excessivamente festivo” do Natal e com o “ânimo” daqueles cristãos que confundem “comemorar” com “comer”. Quer dizer: todo mundo.

Os dois Papas talvez não tivessem notado que o Natal há muito deixou de ser uma festa da fé para se transformar numa “festa de Babette”.

Os sininhos, as luzes e a cordialidade entre os homens (“Boas Festas!”) – é só um pretexto para a grande comilança. O Senhor veio ao mundo para nos salvar de todos os pecados, inclusive o da gula, exatamente o mais praticado entre o Natal e o Ano Novo.

O Natal está aí, e já me sinto “um Menino” em plena engorda. Já prelibo os perus e seus recheios. Os camarões, as carnes defumadas, as régias sobremesas, as uvas graúdas deglutidas com a languidez de uma Agripina, a mãe de Nero, pouco antes do grande incêndio…

Atualmente, o Natal parece se resumir nisso: a engorda pagã dos meninos e dos adultos, o bom comer e o melhor beber. Depois da ceia, já não é hábito ir-se à Missa do Galo. Os galos, os chesters, os perus, estão todos “cacarejando” dentro do estômago dos fiéis, boiando num mar de champanha. Depois, rendemo-nos incondicionalmente ao sono, panças cheias.

Mas há o dia seguinte. Deveria ser um dia devotado ao renascimento da vida ascética. Passaríamos a frutas e a torradinhas. Chás e alka-selzers para rebater o pantagruélico empanzinamento. Mas o Dia de Natal é feriadão dos mais chatos. Tudo está fechado. O mormaço de dezembro instala no ar uma estufa abafada e sufocante. Resultado: o pessoal retorna à “manjedoura”, requentando o banquete da véspera…

Natal quer dizer renascimento. Pois o homem natalino já nasce reincidente no pecado da gula. Acendem-se outra vez os fogões da comezaina, abrasam-se de novo as aves, as caças, os camarões. Reerguem-se, depois de um “chuveirinho” na pia, as taças para o vinho, as tulipas para a cerveja, os “tubos de ensaio” para as cevadas de Sir Walter Scott.

Somos todos esfaimados insaciáveis, monstrinhos onívoros (aqueles que comem “de tudo”), primo-irmãos da “bernunça”, bicho que come tudo “o que lhe dão”. Em nome da celebração do Menino, recomeça a gincana estomacal, o rescaldo da grande mistura, todos investidos na “personna” de Gargântua, o comilão. Boas festas e feliz digestão – se forem capazes!

Sonho que subi aos Céus e que só não me sento à mão direita de Deus-Pai porque este é o lugar cativo do “Menino”. Mas fico confortavelmente à Sua esquerda, junto com uma turma de maranhenses folgados, todos recém-chegados de festas natalinas.

O Todo Poderoso nota que o pessoal está meio “alto” e vale-se do bom humor para perguntar:

– Como é que foi o alegre Natal?

– Ótimo! – rebatem os glutões. “Principalmente depois que o Nazareno teve a delicadeza de transformar água em vinho!”

O Senhor notou a velada intenção de transferirem ao seu “Menino” a responsabilidade pelo porre, mas conduziu a conversa para outro caminho:

– Mas o Brasil não está em crise?

– Está. Há 510 anos. Mas no Natal todos viram milionários, todo mundo come bem e bebe melhor. O homem fica mais humano e até se despoja do que tem para ajudar os mais necessitados. O Natal é a confraternização da humanidade em torno de uma taça de espumante ou um copo de “rabo-de-galo”.

Somos todos Reis Magos na fila da manjedoura, com um presentinho na mão, mero pretexto para homenagear o Menino e o estômago.

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