Crônica de José Fernandes: “Tiros no Parlamento”

NO SEU livro Entre Viana e Viena, o desembargador e escritor Lourival Serejo conta que, apesar de não ter conhecido de perto o senhor Raimundo Rodrigues Bogéa, elogiava-o em razão dele, em vida, possuir centenas de bons livros de Filosofia, Direito, Economia, História, Sociologia, Literatura, Psicologia e outras disciplinas, rigorosamente anotados nas margens das páginas, inclusive com refutações ao que escrevera Bobbio, o grande pensador italiano, em O futuro da democracia – livros que lhe foram doados pelo filho daquele cidadão, seu colega de magistratura.

Esse texto, que li há pouco tempo, me fez recordar algumas ocorrências que assisti ou participei, nas quais o elogiado pelo magistrado-cronista fora figura principal.

Tinha eu uns sete anos quando conheci Raimundo Rodrigues Bogéa, que esteve em nossa modesta casa, em Arari, para agradecer ao meu pai pelos bons serviços que este lhe prestara como funcionário de uma Agência da Capitania dos Portos, no registro de uma embarcação de propriedade da família – embarcação que transportava para a Capital do Estado os produtos oriundos das terras do seu pai, o “coronel” Custódio Bogéa, caudilho respeitado, que, diziam, acolhia seus agregados, vindos de quaisquer recantos do sertão, sem lhes perguntar de onde vieram e o que fizeram.

Naquele ensejo, o então jovem Raimundo, ao agradecer ao meu pai pelo obséquio, presenteou-o com uma cabra, e fomos buscá-la, de canoa, em Vitória do Mearim, mas logo dela nos livramos, diante de seus berros azucrinantes, que do quintal da nossa casa perturbava o sossego dos vizinhos. Isto é apenas um detalhe ilustrativo, sem nenhuma conexão com outras ocorrências.

Anos depois, como repórter que cobria as sessões da Assembleia Legislativa, encontrei-o já como prestigiado deputado, líder da maioria, eleito pelos votos do aludido “coronel” mandachuva, seu pai, dono absoluto do curral eleitoral que formara em torno dos núcleos populacionais existentes nas glebas que depois integraram, hoje, o município de Vitorino Freire.

Ainda moço, era conhecido naquele ambiente parlamentar somente como deputado Manduca Bogéa. Mantinha-se às turras e em acirradas brigas verbais e físicas com o irreverente deputado e jornalista Erasmo Dias, representante das chamadas “oposições coligadas”, com quem chegara a trocar tiros de revólver, em plena sessão. Não demorou muito, Manduca bacharelou-se em Direito e tornou-se, não por isso, Secretário de Viação e Obras Públicas, no governo Newton Belo. Era homem de governo, alicerçado na burguesia rural…

Por essa época o procurei, eu na condição de vereador, sem jetom, do município de Arari, aos 20 anos, onde só recebia descomposturas dos adversários (na verdade, pagava para ter esse cargo, bancando do meu próprio bolso as viagens fluviais para comparecer, quinzenalmente, às sessões da edilidade arariense).

Conversei com ele, no seu gabinete de secretário de Estado, e dele consegui que mandasse construir uma nova cadeia pública para a minha terra natal, de vez que a existente estava desmoronando. Logo após, tive novamente de recorrer à sua ajuda para que garantisse – e ele garantiu via policiamento – a construção da dita cadeia, de vez que o prefeito local, adversário, ameaçara derrubá-la, alegando, apenas alegando, estar sendo edificada em local inadequado. Naquela situação, involuntariamente, tornei-me “comandante” de dois soldados e um cabo da polícia militar, que garantiram a construção da obra, tudo graças ao prestígio do secretário-deputado.

Assim é que, acompanhando, à distância, a vida pública desse político que me fora útil, soube que se tornara deputado federal, integrante da bancada situacionista, conservadora.

Inclusive, tomei conhecimento de que, sob a influência de companheiros de boa formação intelectual e das boas leituras, aos poucos se foi tornando um parlamentar de ideias evoluídas, com tendências liberais e progressistas, um pouco mais à esquerda.

Passei algum tempo ausente dos trabalhos na imprensa, alheio aos acontecimentos da política e, sem querer, perdi-o de vista por longo período.

Depois, soube que abandonara a agitada carreira política e, transcorrido mais tempo, para minha surpresa e satisfação, tomei conhecimento de que o arrojado Raimundo Rodrigues Bogéa, o Manduca, que não levava desaforo pra casa, tornou-se Procurador da República, neste Estado, cargo que exercera, pelo que sei, pacífica, discretamente e com descortino, servido por uma cultura variadíssima, adquirida com o estudo dos livros – aqueles livros referidos pelo escritor Serejo – tudo isso após aquela sua intensa e agitada militância partidária, bem longe das violentas agressões físicas e tiros de revólver, nas distantes tardes legislativas da rua do Egito.

Raíssa Martins Mendonça diz que educação é arma para mudar a realidade da população LGBT

Raíssa Martins Mendonça fundou instituto pioneiro no Maranhão que acolhe população trans em estado de vulnerabilidade social

São Luís – Ela afirma categoricamente que uma democracia só se consolida a partir de uma convivência harmoniosa com a diferença. É com essa convicção que a maranhense Raíssa Martins Mendonça, 40 anos, pré-candidata a deputada federal pelo PDT, encarou o desafio de buscar uma representatividade no Congresso Nacional.

Segundo ela, o público LGBT precisa de uma voz mais firme e contundente para lutar pelos seus direitos. Em todos os discursos que protagoniza, a psicóloga transexual empoderada, fundadora do Instituto Raíssa Mendonça, prega a educação como meio primordial para que essa população vença os obstáculos que a impede de viver dignamente.

“Nós nunca tivemos representatividade de fato nos espaços de poder. As pessoas se elegem afirmando que defenderão nossas bandeiras, mas quando lá chegam, esquecem. Prova disso é que todos os nossos direitos adquiridos até hoje foram por meio do Poder Judiciário, ou seja, via coerção da lei, mas não graças àqueles que se dizem nossos representantes”, frisa.

“Nós estamos cansados dessa inércia. É chegada a hora de construir políticas e visões que fujam do tradicional”

Origem humilde

Natural da Baixada Maranhense e nascida no seio de uma família pobre que tirava o sustento da roça no município de Pedro do Rosário, Raíssa, que foi batizada como Dorivaldo Martins Mendonça, sentiu na pele o preconceito por ser transexual, mas não baixou a cabeça e foi em busca de conhecimento para poder se defender. Com muita dificuldade, saiu do interior e migrou para a capital, onde trabalhou como doméstica, pregoeiro e cabeleireira. Mais tarde, já com o prenome social em sua carteira de identidade, obtida por meio da justiça, formou-se em Psicologia, curso que abriu ainda mais seu campo de visão para a compreensão da natureza humana e das relações sociais.

“Nossa vida sempre foi pautada por desafios. Nunca encontramos uma receita pronta para nada, mas sempre buscamos manejos para enfrentar os fenômenos. Nós sabemos de onde viemos, por onde passamos, onde estamos e aonde queremos chegar. Quem tem esse entendimento existencial enfrenta de forma mais tranquila os obstáculos. Hoje, sou uma mulher trans preparada. Eu me formei em Psicologia porque sei que a educação transforma, abre horizontes e possibilidades. Nos permite ter argumentos plausíveis em um diálogo sem ferir ninguém. É preciso respeitar todos os pontos de vista e chegar a um consenso. Como se diz na Psicologia, todos estão com a sua razão dentro da sua perspectiva”, diz.

Vendo aumentarem os índices de cidadãos LGBT sendo mortos e figurando nas estatísticas da vulnerabilidade social, Raíssa Martins Mendonça sentiu a necessidade de engrossar o movimento em prol dos grupos excluídos e marginalizados socialmente, que eclodiram em várias partes do mundo buscando potencializar suas reivindicações e levar o debate da diferença à esfera pública, apesar da barreira do preconceito e da engrenagem noticiosa dos grandes conglomerados de comunicação.

“Nós estamos cansados dessa inércia. É chegada a hora de construir políticas e visões que fujam do tradicional, permitindo que pessoas trans ocupem o espaço político-institucional e possam debater não somente sobre gênero, mas sobre economia, saúde, meio ambiente e outros assuntos importantes para a comunidade. Sou uma mulher trans empoderada, mas, antes de tudo, sou da Baixada Maranhense, pobre e preta. Por isso, digo que minha luta não é de movimento apenas, mas de classe. Fundamos a maior obra de acolhimento a essa população no Maranhão, que é o Instituto Raíssa Mendonça. Escolhi esse público porque é o que mais morre no Brasil. É o mais excluído, o mais marginalizado e que precisa de ajuda. Representaremos toda uma classe social que vive à margem de políticas públicas de estado, das oportunidades de educação e de trabalho”, enfatiza a transexual, cuja história de vida é contada no livro “O Outro Lado da Maçã”, disponível na Livraria Amei do São Luís Shopping.

Transexual quer dar voz a milhares de transgêneros maranhenses e brasileiros no Congresso Nacional

Machismo, misoginia e transfobia

A pré-candidata quer quebrar paradigmas e ser uma voz ressonante para se contrapor aos discursos machistas, misóginos e transfóbicos que percorrem os corredores do Congresso Nacional.

“É preciso educar os políticos, a sociedade, o olhar das pessoas. Uma vez que se convive com pessoas trans no âmbito do trabalho e outros espaços, elas passam a ser desmitificadas. A empregabilidade ainda é um divisor de águas, pois com acesso a um emprego, muitas não precisarão, por exemplo, recorrer ao universo da prostituição. O acesso à escolaridade também é muito importante, uma vez que sabemos que muitas pessoas trans abandonam a escola no Ensino Fundamental e Médio. Infelizmente, pouco mais de 3% chegam às universidades”.

Casa FloreSer Maranhão

Com discurso firme e olhar decidido para aquilo que almeja alcançar, ela é uma mulher trans de ação. Com a ajuda de quase ninguém e zero apoio do poder público, construiu, via Instituto Raíssa Mendonça, a Casa FloreSer Maranhão, no bairro Araçagi, entidade sem fins lucrativos que atua na defesa e promoção de direitos humanos, acolhendo pessoas em situação de vulnerabilidade social da capital e interior do estado.

“Nós instigamos os nossos acolhidos a adquirirem uma disciplina, pois 90% das pessoas que já acolhemos lá chegaram sem disciplina. Mas o que leva o indivíduo a ser indisciplinado? A falta de conhecimento, a ausência da educação, pois a grande maioria não concluiu nem mesmo o ensino fundamental, não teve acesso ao ambiente escolar, por não ser acolhedor para essas camadas da sociedade. É preciso ir a fundo, desconstruir e contribuir para uma transformação nesse ambiente escolar, onde o educador tem de estar preparado para acolher a nossa população”, diz.

As casas de acolhimento para a população LGBT existem em mais de dez estados brasileiros. No Maranhão, a FloreSer é pioneira. “Em todos os estados, tudo é custeado pelo poder público estadual, mas aqui somos independentes. Não temos nenhuma parceria nem com o estado nem com o município. Já temos um ano e seis meses de funcionamento e já resgatamos mais de 80 pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nós fazemos parte do Conselho Estadual LGBT, da Rede de Amparo e Apoio à População LGBT, e mesmo estando inseridos nessas organizações, não temos parcerias com o poder público, o que nos entristece. Se tivéssemos esse suporte, poderíamos ter feito muito mais até agora. Afinal, políticas públicas de inclusão são uma responsabilidade do estado”, revela.

“Quem compra a consciência do povo não quer compromisso

Pré-campanha

Disposta a dar voz a milhares de transgêneros maranhenses e brasileiros, Raíssa tem feito uma pré-campanha propositiva para tocar a consciência das pessoas. Ela tem batido na tecla de que somente o voto transforma e que não se pode vender a consciência. Diz que sua campanha é, sobremaneira, de conscientização. Na próxima sexta-feira (29), ela oficializará sua candidatura durante a Convenção do PDT, no Estádio Nhozinho Santos.

“Quem compra a consciência do povo não quer compromisso. O que é diferente de transformar a sociedade por meio do voto. O único dia do ano em que há equidade no nosso país é o dia da eleição. O voto do agricultor, do LGBT, do carroceiro, do evangélico, do empresário, do presidente da República ou do presidente do Supremo Tribunal Federal tem o mesmo poder nesse dia. Isso sim é equidade. Nosso estado é apresentado como um dos mais pobres da população e, nesse contexto, sofre também a população LGBT. No entanto, é preciso mudar essa realidade. E nós temos pressa, porque já esperamos demais”, finaliza.

ARQUIVOS

QUEM SOU EU

Jornalista profissional formado pela Universidade Federal do Maranhão e que há mais de 20 anos integra o staff do Grupo Mirante, Evandro Júnior é do Imirante.com, titular da coluna Tapete Vermelho, dentro do Caderno PH Revista, e coordenador e colaborador diário e interino da coluna de Pergentino Holanda (PH) no Imirante.com. A proposta é trazer informações sobre generalidades, com um destaque especial para as esferas cultural, empresarial e política.

MAIS BLOGS

Rolar para cima