Crônica de José Fernandes: “A pinga e o acordo”

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Lá pelos anos de 1974, mesmo mantendo apenas uma pequena oficina tipográfica, ousadamente eu, bem jovem, presidia o Sindicato das Indústrias Gráficas do Maranhão, cuja obrigação anual, como estava prestes a ocorrer, era a de firmar Convenção ou Acordo Coletivo de Trabalho com o Sindicato dos Trabalhadores Gráficos de São Luís, na época presidido pelo sindicalista Carneiro Sobrinho, Operário do Ano. Esse tratado, obviamente, fixava, todos os anos, depois de muitos debates, os salários e as condições de trabalho da categoria laboral.

Ocorre que, naquela dada, Carneiro fez uma longa viagem, e a negociação seria complicada pois teria que ser feita tendo à frente, representando os empregados, o vice-presidente da entidade, Anastácio Dutra, dirigente radical de difícil entendimento, meu adversário ideológico. Entre nós só havia afinidade quando tomávamos, juntos, umas biritas. Naqueles dias, Anastácio, num gesto raro, prometeu ofertar-me um litro de uma aguardente considerada por ele como sendo a melhor do mundo, fabricada pelo seu irmão Valentim, raridade que viria do povoado Manoel João, no interior de Arari.                

Por coincidência, na época em que íamos firmar o Acordo acima referido, o prometido litro de pinga chegou, marcamos o dia e fomos recebê-lo na Praia Grande, na pracinha em frente ao Centro Cultural Odilo Costa, filho.

De posse da bagaceira, decidimos experimentá-la ali mesmo, e como era mesmo da “boa”, dela bebemos alguns goles, outros e mais outros. Quando já estávamos na metade do litro, eufóricos e fraternos, surgiu-nos a ideia de falar sobre o nossa Convenção Coletiva de Trabalho, que seria tratada no dia seguinte.

Como eu já havia recebido a minuta da proposta convencional, fui ao meu carro estacionado ao lado, apanhei-a e começamos a analisá-la ali mesmo, calma e sem discórdia, entre um trago e outro; aos poucos, constatamos que havia muito exagero naquelas inúmeras cláusulas reivindicatórias, e as fomos eliminando, enxugando-as dos excessos, deixando na minuta apenas o que era razoável e possível de ser cumprido pelas partes, tudo isso na maior camaradagem.

No dia seguinte, na Casa do Trabalhador Sindicalizado, as duas comissões de negociação, eleitas em assembleia geral, sentaram-se no recinto para discutir o Acordo, que costumava, nos anos anteriores, a consumir meses de acaloradas altercações. Antes, porém, de começar o provável desentendimento, o presidente da comissão dos empregados pediu um tempo para consultar seus companheiros, que sempre foram briguentos, barulhentos e inconformados.

E, para surpresa minha e dos meus pares, ao retornar à mesa negocial, o “radical” Anastácio, autoridade maior junto aos seus, apresentou-nos, aprovada pacificamente, pela sua Comissão, naquele momento, a mesma minuta que havíamos discutido enquanto havíamos bebido aquele auspicioso e não embriagante litro de cachaça. Foi, e disso tenho certeza, o mais rápido Acordo Coletivo de Trabalho já celebrado no Brasil, graças àquela rodada da boa caninha, apreciada com moderação, mesmo assim procedimento condenável, que jamais deve ser imitado.

Inobstante, não poderia encerrar esta narrativa, curiosa e imprevisível, sem destacar que Anastácio, seu personagem principal, além de boêmio e militante intransigente, era estudioso, escrevia em jornais e se expressava muito bem. Tanto assim o era que, apesar de nossas divergências políticas, dei minha contribuição para torná-lo membro-fundador da Academia Arariense de Letras, Artes e Ciências, o que já é outra história, como bem a contou o acadêmico Raphael Coutinho, seu sobrinho-neto, ao sucedê-lo naquele sodalício. Anastácio, digo ainda, morreu prematuramente.

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José Fernandes é autor, entre outros, do livro Ao sabor da memória


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