Crônica de José Fernandes: “O difícil alfabeto”

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FOI ÁRDUA e longa a minha batalha com o alfabeto. Não foi difícil, foi dificílimo aprender os dígitos gráficos que formam palavras. Dominar a Carta do ABC, distinguir uma letra da outra era uma luta férrea contra o desânimo, diante da impossibilidade que sentia para aprender aqueles caracteres horrorosos que me faziam dormir sobre eles, sentindo-os como inimigos indomáveis, fáceis para outras crianças da minha idade.

Todos se admiravam como eu conseguira aprender facilmente a andar, a correr, a pular a cerca do nosso quintal e até a nadar no rio, aos quatro anos, e não aprendia a diferençar as letrinhas infernais, não indo além das primeiras.

Minha dificuldade, que se transformara em ojeriza ao alfabeto, levaram-me a perguntar ao meu pai quem havia inventado as letras; para se livrar da indagação incômoda, ele respondeu aleatoriamente haver sido uma pessoa chamada Getúlio, o homem mais importante do Brasil, e eu, na minha ingênua revolta infantil, afirmei-lhe que, se tivesse uma espingarda, daria um tiro nesse tal Getúlio.

Esses fatos, reais, mostram o tamanho da minha aversão contra as letras, que me eram hostis e indecifráveis. Por causa delas estava até propenso a cometer aquilo que eu não sabia, em linguagem culta, ser um crime de lesa-majestade.

Alfabetizado, enfim, depois de uma luta férrea em meu desfavor, quis ser um profissional sapateiro, para estar longe daqueles sinais complicados e, para tanto, estive, como aprendiz, em três sapatarias. Todavia, montanhas de pedras se interpuseram no meu caminho – uma longa história – impedindo-me de ser um artesão de calçados.

Pacto indissolúvel

Porém, apesar dos percalços iniciais com as letras, parece que, para compensar os meus desatinos contra o abecedário, para minha remissão o destino firmara entre eu e as letras, antes detestadas, um acordo que se transformou num pacto afetivo indissolúvel.

Faço essa afirmação porque, ainda menino, ingressei numa escola para aprender tipografia, que lidava com as letras, e logo, sem nenhuma dificuldade, transformei-me, modéstia à parte, num dedicado tipógrafo, isto é, num operário das letras, que eram compostas manualmente e impressas por mim, transformando-as em timbres, documentos e brochuras, ao longo de décadas.

E foi com letras formando palavras e transformadas em peças jurídicas que me forjei profissionalmente; utilizei-as e continuarei a utilizá-las nos livros que escrevo. Hoje, sei que manterei com elas, ainda que com alguns deslizes, uma aliança que se perpetuará através do tempo.

Recordo essa peripécia de infância para reforçar o que todos sabem, mas não faz mal rememorar: algo que outrora nos causava contrariedade, desapreço ou dificuldade de aceitação ou adaptação, pode transmudar-se em motivo de satisfação e contentamento, e até em prazeroso meio de subsistência, como ocorreu comigo e ocorrerá sempre com milhões de outros casos assemelhados, que se repetem   por este mundão de Deus.

José Fernandes é membro da Academia Ludovicense de Letras e autor, entre outros, do livro “Ao Sabor da Memória”.

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