Crônica de José Fernandes: “Rendas e Babados”

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PRETENDO QUE estas indiscrições, aqui reveladas, sejam instrumentos de arrependimento e de desculpas, ou melhor, um pedido de perdão àquelas a quem ofendi, direta ou indiretamente, mesmo que as jovens pretensamente ofendidas não tenham levado a sério as prováveis ofensas.

Nem sei se as que julguei haver ofendido se ofenderam ou não; na dúvida, peço perdão assim mesmo. Conto o fato publicamente como penitência tardia, com a finalidade de fazer a “mea culpa”, embora reconheça que tudo se passou em razão apenas da minha inexperiência, ou falta de jeito ao lidar com situações que poderiam ser evitadas caso eu tivesse o descortino necessário para evitá-las.

Depois desse longo preâmbulo, “falarei”, primeiro, de um ato de vergonhosa indelicadeza que cometi com uma bonita mocinha, nos primeiros anos não tão floridos de minha juventude, mesmo que muitos entendam que, aos 18 anos, um deslize de pequena monta, como o que cometi, deve ser perdoado.

Naqueles idos, fui de São Luís à cidade de Rosário como dirigente de um timezinho de futebol amador, composto por jovens de minha faixa etária, e lá me apresentaram e comecei a namorar uma moreninha afável. Conversamos bastante, à tardinha, e depois fomos juntos a uma competição de vôlei em uma quadra esportiva local.

De mãos dadas e aconchegados, trocamos pequenas carícias. Sentimo-nos satisfatoriamente envolvidos num prematuro clima de bem-querer, em que antevíamos uma longa experiência amorosa, embora aquele nosso chamego tenha sido interrompido por um fato insólito, em razão da namorada, naquele momento de calça comprida, ter-se constrangido com as reprimendas públicas que o vigário local aplicou, pelo serviço de alto-falante da paróquia, contra as mulheres “que se vestiam como homens”. A garota sentiu-se ofendida, entendendo que o clérigo referia-se indiretamente a ela; pediu que a levasse de volta à sua casa, antes mesmo das dez da noite. Trocamos endereços e beijinhos, comprometendo-nos a novos encontros, e nos despedimos, carinhosamente.

Passamos a nos corresponder por cartas, via correio, expondo nossos normais sentimentos de namorados à distância.

Em uma de suas epístolas amorosas, a mocinha comunicou-me que, a qualquer momento, iria visitar-me em São Luís, quando iríamos ao cinema, inexistente na sua cidade. Tal como prometido, numa tarde de sábado veio ela ter comigo, apresentando-se ricamente trajada de branco, com uma blusa artisticamente bordada, com longos folhos de renda sobre o busto.

Sabia que a mocinha estava decentemente trajada, porém, naquele momento do nosso encontro, até hoje não sei o porquê, aquela vestimenta se me parecera imponente demais, exagerada e inoportuna para aquela simples ida ao cinema vesperal.

Senti instintiva aversão contra aquela sua luxuosa vestimenta de rendas e babados (ainda hoje, inexplicavelmente, implico com folhos e babados) e, disfarçadamente, fui levando-a aos poucos até a Praça da Alegria próxima. Sentamos, por indução minha, num dos bancos da pracinha e ali ficamos, eu totalmente embaraçado, sem estímulo, com ela entabulando conversa boba, sem sentido, consumindo o tempo que seria destinado ao cinema.

Nesse clima de desconforto de minha arte, tornamo-nos um casal sem graça. O sol começou a declinar na praça silenciosa, que seria propícia ao romantismo, mas que não me levava a nenhum impulso romântico e sim a um acanhado embaraço.

Vejam como são intrincadas e insondáveis as reações recônditas do nosso ser. A jovenzinha, até então minha bonita namorada, estava ali, imponentemente bem vestida, porém sua vestimenta me causava incontrolável mal-estar, a ponto de me tornar indiferente, infantil, deselegante, ofensivo.

E, naquela praça, ali mesmo nos despedimos, apenas com um aperto de mão, sem ter havido nenhum propósito de reencontro – isso num tempo em que eu me sentia propenso a tórridas aventuras sentimentais. Ainda hoje, não entendi aquele meu estranho procedimento.

O despreparo das pessoas leva-as a assumir lamentáveis posturas”.

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José Fernandes é membro da Academia Ludovicense de Letras e autor de vários livros.


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