Crônica de José Fernandes: “Tempos de Chumbo”

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A expressão, em epígrafe, é o apelido dado à fase mais insana do golpe militar de 1964, também chamado, por alguns incongruentes, de “revolução redentora”, que desbancou João Goulart da Presidência da República e implantou o poder dos militares durante mais de duas décadas. Do que dela sei contarei, aqui, apenas, ligeiras particularidades, que fazem parte da minha história.

Como quase toda ação revolucionária imposta pela força das armas, nesta, para não fugir à regra, muita gente foi injustiçada: estudantes, artistas, intelectuais, professores, cientistas, jornalistas, poetas e pensadores; o habeas corpus foi abolido, estabeleceu-se a censura à imprensa e às artes e “amordaçados” os demais poderes da República. Quem, dos perseguidos, não morreu nos porões da tortura, perdeu o emprego, foi preso, cassado e exilado, como comunista ou inimigo da revolução, quase todos pelo ideal de pugnar pelas reformas de base – agrária, universitária e outras. Desse modo, as perseguições implacáveis e injustificáveis contra tantos beneméritos da nação constituem atos abomináveis.

Muitos foram sacrificados, até eu, sem culpa nenhuma, sem ter ostentado nenhum rótulo nem ser filiado a partido político: apenas integrava a diretoria da União Maranhense dos Estudantes Secundários-Umes, da qual todos os membros eram suspeitos e perseguidos, e, por isso, tornei-me suspeito e perseguido. Além de estudante, eu lutava, honestamente, pelo meu sustento, como proprietário de um pequeno estabelecimento gráfico.

Alguém, talvez desgostoso com a minha humilde prosperidade, denunciou que o meu micro estabelecimento estaria imprimindo material subversivo e, daí, uma patrulha do Exército o invadiu, causando alvoroço na Praia Grande, sede do meu pequeno negócio. Nada encontraram que pudesse comprometer-me.

 Inobstante, em decorrência dessa invasão, fui estigmatizado, por alguns considerado suspeito, e meus fornecedores de insumos, acovardados, deixaram de atender aos meus pedidos; os clientes desapareceram e obriguei-me a fechar a gráfica, durante longo período, por falta de clientes e de material de impressão. Só não passei fome porque era também um profissional do ramo e voltei a ser operário gráfico, mantendo-me com dignidade, ainda que dormindo no chão, no escritório de representações do meu amigo Veras, no prédio atrás do “Ferro de Engomar”, primeira sede da rádio e TV Difusora (alguns desses comerciantes, que se negaram a me vender insumos, anos depois, foram por mim tratados com respeito e dignidade, como juiz classista, quando me figuraram como réus, em processos trabalhistas).

Não satisfeitos com a invasão da minha gráfica, outra patrulha assaltou o meu dormitório, na Umes, arrombou minha estante e levou pilhas de documentos e cartas remetidas pelos meus genitores, parentes e amigos, inclusive meus livros escolares e de assuntos gerais, nunca devolvidos.

Em outra ocasião, uma patrulha, de arma em punho, dali me conduziu, alta noite, para prestar depoimento perante a Comissão Militar de Inquérito, no antigo 24 BC, e só não fui encarcerado graças à sensatez do major Santana, presidente da Comissão, ao constatar que eu estava sendo vítima de acusações maldosas.

Um pacato cidadão, que decidira estudar já com idade avançada, pobre, com mulher e seis filhos para sustentar, de nome Edmar Santos, também membro da Umes, só por suspeita, fora preso por mais de um mês; outros idealistas, defensores das reformas de base, também foram encarcerados: Gaspar, Jones, Emílio, João Batista Ericeira, Jalmir, José Carlos Salgueiro, Edson Vidigal, Ney Melo e outros.

 Sim, parte da população brasileira muito perdeu com o golpe militar de 1964, que implantou a tal “revolução redentora”, como a chamam e enaltecem os sequazes do tirânico Ato Institucional n. 5, o AI-5, que alguns insensatos ainda hoje o exaltam – os que não perderam pais, filhos e netos, não sofreram torturas e suas sequelas. Reiterando o que dizem alguns patriotas, propugnadores da Justiça e da Paz, também digo: “Tortura nunca mais”.

Um reparo. Este texto é um testemunho que a História não pode olvidar, em homenagem à verdade. No entanto, as forças armadas, na sua essência, legalmente designadas pela Carta Magna como defensoras da integridade nacional e da democracia brasileira, como instituição, não fazem parte das críticas aqui expostas, de vez que tais críticas se restringem aos elementos de má conduta moral e cívica que, no transcorrer do regime de exceção, extrapolaram suas funções legais e, utilizando-se, equivocadamente, do Ato Institucional n° 5, praticaram ações arbitrárias, contrárias à Ordem Pública, à Ética e a Moral Cristã.

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