Crônica de José Fernandes: “Uma escola para poetas”

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A recente revitalização da Academia Maranhense de Trovas, criada em 1968, é o mote que me utilizo para contar um fato interessante, que testemunhei nos idos dos anos de 1950, um exemplo de sonho que ultrapassou as fronteiras do próprio sonho, manifestado e posteriormente concretizado pelo fundador da mencionada Academia, Carlos Cunha, ao tornar-se um intelectual valoroso e literato que exercera múltiplas vertentes. Conto aqui como tomei conhecimento dessa curiosa ocorrência e suas consequências.

Tinha eu uns 15 anos quando, enviado por Nonato Gonçalves, redator de “O Combate” e dono da tipografia em que eu trabalhava, fui entregar sua matéria ao chefe de redação daquele vibrante jornal, Vilela de Abreu, jornalista e poeta de grande notoriedade na época. Vilela conversava com seu sobrinho Garden Lima, exatamente no momento em que adentrou no recinto, com total desembaraço, um jovem de uns 19 anos, que pediu licença e assim se manifestou:

– Senhor Vilela, meu nome é Carlos Cunha. Sou estudante, venho escrevendo uns versos sem conhecer bem as regras e por isso lhe pergunto se existe alguma escola que me ensine a ser poeta de verdade.

Eu, então, já um leitor de poesias, interessei-me pela conversa e ainda me recordo da resposta do veterano Vilela:

– Meu rapaz, não existe escola que ensine a ser poeta. Você terá de ler muito os clássicos, os poetas já consagrados, captar as mensagens que eles transmitem, treinar muito; quando tiver alguma experiência, escreva centenas de versos e se desfaça deles; e quando sentir que está no caminho, mostre-os para os que entendem do assunto e siga suas orientações. Um dia você pode chegar ao que quer.

Algum tempo depois, aproximei-me do Carlos Cunha (éramos da mesma geração) e nos tornamos amigos. Acompanhei o seu progresso nas letras. Tornou-se um grande declamador de versos seus e dos outros, seguindo os passos de outro exímio declamador conterrâneo, de notoriedade nacional, José Brasil. Declamando participou do lançamento dos meus dois primeiros livros. Levei-o à minha cidadezinha de origem onde humildemente fez dois recitais para plateias bem modestas, pois ele também era modesto – um ser modesto e instigante.

Carlos Cunha cresceu no mundo das letras, principalmente no jornalismo. Escreveu livros em versos e prosas, revelando-se excelente crítico literário, gozando da admiração dos grandes mestres da literatura nacional. Junto com Walber Pinheiro e Edson Vidigal fundamos o jornal “A Rua”, de curta duração, à mingua de recursos financeiros. Com discernimento, indiquei alguns nomes para compor o quadro de professores do colégio que fundou com a ajuda financeira de Cesar Aboud; como gráfico, ajudei-o a fundar o seu próprio jornal, instalado do bairro do Caratatiua; gozei do seu convívio e tornamo-nos confrades no Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, tudo isso sem abdicarmos de nossa saudável boemia.

Embora sendo ele possuidor de uma rica biografia, de conhecimento público, meu propósito, aqui, é apenas dizer que conheci Carlos Cunha pedindo orientação para Vilela de Abreu com o intuito apenas de tornar-se poeta, nos longínquos anos, quase na adolescência. Esse era seu sonho, talvez até o único sonho, mas tão bem sonhado que o suplantou tornando-se uma expressiva figura da cultura maranhense, o que mostra, mais uma vez, que os grandes sonhos só não se realizam se o abandonarmos no meio do caminho.

Carlos morreu prematuramente, tem seu nome uma das principais avenidas desta bela cidade onde se fez imortal como educador, escritor, trovador, declamador e jornalista combativo, defensor intransigente de suas ideias, fazendo-se intérprete dos sentimentos e anseios de seu povo.

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José Fernandes é advogado e pesquisador. Autor, entre outros, do livro “Ao sabor da memória”.

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