Crônica de José Fernandes: “O que aprendi com Jamerson”

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Os fortes impactos emocionais abalam os alicerces de nossa alma

APESAR DE TUDO o que li, do que me foi ensinado nos livros sobre a condição humana, e de minha tendência espiritualista, foi muito difícil – e ainda está sendo – perder o meu péssimo hábito de discriminar, ou melhor, de estigmatizar pessoas de comportamento diferente daquele que eu entendia ou julgava fora dos padrões normais.

Mesmo quando era bem jovem, nos anos de 1950, não sentia nenhuma simpatia pelo comportamento hippie dos jovens americanos, que pregavam “paz e amor”, isso em razão da maneira excêntrica como procediam; tinha por eles uma silenciosa aversão; censurava-os pelo modo imponderável de levar a vida, incluindo os seus imitadores no Brasil.

Também fazia restrições aos homossexuais e assemelhados, às diferenças de gênero, aos bêbados e drogados, e era intolerante até com os negros e negras quando expunham suas bastas cabeleiras despenteadas, como a do cantor Chico César, de quem me tornei admirador.

Entrementes, naqueles tempos juvenis, achando-me poeta, tornei-me amigo de um rapaz de minha geração, lírico talentoso, autor de uma bonita obra poética, educado, cordial e solidário, tanto que até escreveu a orelha de meu segundo livro de imaturos poemas, ocasião em que o levei, como convidado, ao meu chão interiorano.

Esse poeta fraterno chamava-se Jamerson Lemos; viera de Recife, e passara a residir em São Luís, com sua família de classe média e de bom nível social. Transcorrido um bom tempo, o bardo, seu pai empresário e familiares mudaram-se de nossa cidade, e não mais o vi, mas senti falta da sua alegre presença.

Anos se passaram e, num domingo pela manhã, jornadeando de carro por locais pitorescos da Ilha, junto com minha mulher, minhas filhas e meu filho, ainda crianças, me deparei com um grupo de hippies, acampados no largo da antiga fábrica de tecidos, no Anil. Olhando-os de longe, distingui, distanciado dos demais, uma pessoa de longas barbas e densos cabelos, revoltos e descuidados, que me pareceu familiar. Aproximei-me e, para minha surpresa, me defrontei com aquele amigo poeta de anos atrás, pobremente vestido – era o Jamerson Lemos.

Desci do carro, apresentei-o aos meus familiares, conversamos ligeiramente e perguntei-lhe e se eu poderia retornar para uma conversa mais demorada. Com o seu assentimento, conduzi meu pessoal à nossa casa e, meia hora depois, retornei. Almoçamos juntos e reatamos os velhos papos de outrora. Depois, curioso, perguntei por que ele, pessoa culta e bem situada socialmente, ingressara naquela vida difícil de andarilho sem norte. Revelou-me, aí, que havia se cansado da mesmice cotidiana e, querendo viver novas experiências, optara por aquele viver erradio, sem eira nem beira, trabalhando com artesanato, comendo com o pouco dinheiro que conseguia amealhar, não se demorando nos lugares por onde transitava, dormindo nos logradouros públicos das periferias de cada cidade ou, com as chuvas, em abrigos improvisados.

Preocupado com o viver do meu amigo, sugeri que ele ficasse em nossa cidade: arranjar-lhe-ia hospedagem e emprego condizente com seu nível cultural e ofereci-lhe trabalhar comigo, na minha gráfica. Ele recusou a sugestão – queria continuar hippie. Com profunda tristeza, despedimo-nos, para sempre.

Hoje, dia 19 de março de 2021, conversando com o amigo José Maria Nascimento, poeta e fotógrafo, fiquei sabendo que, anos depois, Jamerson recuperou-se: abandonou aquela vida de andarilho e, depois de haver residido em várias localidades, fixou-se definitivamente em Teresina-PI; casou-se e progrediu muito, tornando-se prestigiado profissional; como poeta e intelectual publicou vários livros e participou dos movimentos culturais da capital mafrense. Acometido, porém, de fatal enfermidade, ali falecera, em 2004, aos 59 anos. Que Deus proteja o querido amigo, onde ele estiver.

Contei este fato para dizer que aquele meu encontro imprevisto com Jamerson Lemos, no bairro do Anil, mudou meus sentimentos com relação à maneira de sentir pelos outros. Possivelmente, devido ao apreço que lhe tributava, nunca mais discriminei ninguém. Passei a admitir as desigualdades. Não mais censurei o procedimento diferenciado das pessoas, possivelmente graças ao último encontro com o poeta hippie, que, sem querer nem perceber, muito me sensibilizou e me tornou mais humano.

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