CONTO DA QUARENTENA

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Alírio sempre foi um solitário. Gabava-se disso. Dizia: “Quem procura a companhia dos outros é porque não consegue suportar a si mesmo”. Sem filhos, tinha uma namorada aqui outra ali, porque sedução não lhe  faltava. Esse seu modus vivendi era, para ele, a felicidade: amava as mulheres desde que não o tirassem de sua solidão, sua mais querida companheira.

Alírio sempre foi um solitário. Gabava-se disso. Dizia: “Quem procura a companhia dos outros é porque não consegue suportar a si mesmo”. Sem filhos, tinha uma namorada aqui outra ali, porque sedução não lhe  faltava. Esse seu modus vivendi era, para ele, a felicidade: amava as mulheres desde que não o tirassem de sua solidão, sua mais querida companheira.

A pandemia chegou e, com ela, a quarentena. Na ocasião  os amigos lhe diziam, com uma ponta de inveja: “Para você tudo bem, não é Alírio ? Sempre foste um lobo solitário”.

Veio a primeira semana, depois outra, mais outra, e o que não se esperava aconteceu: Alírio  perturbou-se  com essa nova solidão. A  razão foi  fácil descobrir:  “ Uma coisa é ser solitário por vontade própria, outra é sê-lo  por imposição. Estavam lhe roubando também a sua liberdade,  associada à sua solidão”. Lembrou-se de uma frase de Rubem Braga “ O chato é aquele que te rouba a solidão sem te fazer companhia.”

E a quarentena continuou. Só havia espaço agora, na vida, para políticos se digladiando, cientistas atarantados e repórteres histéricos. Uma ideia lhe acudiu: se suicidar. Por que não? Parecia-lhe uma solução factível, mas logo recuou. Talvez, se encontrasse quem o matasse, mas isso era impraticável. E Agora?

Uma coisa puxa outra. Uma nova ideia lhe pareceu exequível: matar alguém. Por exemplo: o vizinho de seu apartamento. O desgraçado perturbava sua solidão, agora angustiante, com sons de música sertaneja, estrondosos, paupérrimos, avassaladores. Isso era tétrico, horripilante, asqueroso. Um motivo mais que suficiente para matar alguém, pensou. 

Tinha um revólver antigo, escolheu o dia e a hora, mas não deu. Seu vizinho, parecendo desconfiar do motivo pelo qual ia ser morto, de repente,  parou de escutar o maldito som de dupla sertaneja e o substituiu por samba, rock e jazz, que Alírio apreciava. Alírio desistiu de sua intenção,  mas não foi apenas  por isso. Era um homem bom.

Mais dias se passaram, trazendo-lhe uma nova ideia. Matar um animal e procurar a Polícia. Passou a acompanhar cachorros e  gatos nas raras vezes em que o permitiam sair de seu apê.  Nem precisaria gastar a bala do seu revólver, bastava-lhe uma pedra. Em vão. Até que em uma manhã de desespero aconteceu. Um rato apareceu no chão de sua sala, em quietude convidativa. Mesmo tomado de inquietante compaixão Alírio apontou o revólver. Não apontou pra valer, mas o animal morreu. Lágrimas lhe desceram  dos olhos.

Em seguida, foi à delegacia se apresentar ao delegado de plantão.  

– Eu cometi um crime, pode me prender, sou um assassino.

– Como?

– Matei um pobre animal. Este rato.

– Senhor, não podemos lhe prender por causa de um rato morto. Vá para casa, descansar. Essa tensão tá pegando meio mundo

Alírio  fez a maior confusão e ameaçou chamar repórteres da tevê. Gritou que aquele era um pobre animal que, no  entanto, valia mais que os seres humanos – pelo menos ratos não corriam para suas tocas com medo de um vírus.  E devia valer muito mais,  também para Deus, porque não roubavam o dinheiro da Saúde destinado às vítimas.  O delegado tentou contornar.

– Calma,  amigo, sente-se Uma psicóloga está vindo.

– Poupe seu trabalho. Da minha solidão cuido eu. Você já leu algum dia esta  frase de Montagne? Anote-a em seu caderno:

“A solidão é muito boa, só que tem um problema. Você precisa de alguém para dizer isso.”

                                                                      

José Ewerton Neto é autor de A Ânsia do Prazer, disponível na plataforma de ebooks da Amazon

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A quarentena de Capitu

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Capitu, a que tinha olhos oblíquos e de ressaca, que pareciam uma epilepsia do mar

Capitu, a do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis era uma moça bonita “com olhos oblíquos e de ressaca“ parecendo uma epilepsia do mar. Fora isso não tinha ambições que a distinguissem de uma moça comum: um bom casamento e filhos; nada de intelectualmente especial.

Tampouco seu autor a dotou de complexidade psicológica, aquela aura que seduz pela personalidade. Capitu era bonita e brejeira, ponto final. Algumas décadas depois outro escritor, Jorge Amado, descreveu outra moça, parecida em características físicas e mentais: Gabriela, que tinha a mesma brejeirice, o mesmo ardor sexual,  a mesma singeleza de raciocínio. Mas havia uma diferença, Gabriela não controlava seus impulsos. Esses que no dizer popularesco se diz das moças atiradas: “…mulher quando quer dar ninguém segura”.

Pois Capitu não chegou a tanto. No romance, jamais foi pega praticando infidelidades. Era esposa recatada e do lar, como convinha. Devia lá ter seus desejos reprimidos e olhadelas à socapa (quem não tem?). E olha que aguentar um sujeito como Bentinho, deve ter sido uma barra!

Neurótico, obsessivo, o cara fazia tudo para levar um bom par de chifres! Millor Fernandes, escritor, chegou a constatar, nas entrelinhas do romance, que Bentinho tinha uma paixão secreta por Escobar. (Será?).  Pra completar, Bentinho jogou o nome de sua mulher na lama, para sempre, sem prova de nada.

2. Podemos imaginar como seria a Capitu, versão 2020. Esta, como aquela,  pouco lê. Preocupa-se apenas em dar  vazão aos seus prazeres imediatos. Gosta de novela, não perde o BBBrasil  e adora – como adora!- música sertaneja, porque, verdade seja dita, Capitu é uma obtusa. Parece-se com Bruna Marquezine naquele jeito brejeiro e sensual, de santinha de pau oco, como se dizia. Não tira o celular da mão, odiando  tudo o que se refere a estudo ou livros.  Sonha, isso sim, em se casar.

E não é que encontra? O Bentinho do século XX. Porque foi casar justamente com um Bentinho nem ela sabe. Bentinho é sério demais para o seu gosto, é trabalhador, religioso da Igreja Universal e talvez tenha sido por isso que o escolheu: para dar um rumo à sua vida. Têm pouca coisa em comum,  mas o fato de ele também gostar de música sertaneja lhe parece mais do que suficiente. O casamento, ao som de Luan Santana,  achou o máximo, dançou, estava feliz.

A lua de mel nem tanto. Bentinho não chegou junto e a coisa foi arrefecendo. Com alguma dificuldade (da parte dele) e boa vontade da parte dela (fantasiava com outro para aguentar) deu até para ter um filho, que hoje tem 3 anos. Por incrível que pareça esse é dele mesmo.

Até que chega a quarentena. Só dá ela, vendo lives de música sertaneja, e Bentinho, batendo panela na janela. Capitu tá que não aguenta. Durante uma distração de Bentinho ela sai de casa. Quando volta ouve o berro: Onde você estava, sua  vagabunda? Ela, com os mesmos olhos oblíquos do passado, responde:  “Ora, com o filho do porteiro. Quer saber? Não te aguento mais! Se eu transei? Com você é que não foi.”

O resto todo mundo sabe. Mais um feminicídio.

Muita gente jura que foi uma tentativa de vingança (tardia e mal sucedida) da Capitu atual pelo que a sua versão sofreu no passado. O certo é que Bentinho, o feminicida, continuará vivo  e à solta como tantos.  Como sofrem as Capitus deste país!

José Ewerton Neto é autor de O entrevistador de lendas, novela premiada de ficção científica sobre as mais belas lendas maranhenses

                                                                      

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