A quarentena de Capitu

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Capitu, a que tinha olhos oblíquos e de ressaca, que pareciam uma epilepsia do mar

Capitu, a do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis era uma moça bonita “com olhos oblíquos e de ressaca“ parecendo uma epilepsia do mar. Fora isso não tinha ambições que a distinguissem de uma moça comum: um bom casamento e filhos; nada de intelectualmente especial.

Tampouco seu autor a dotou de complexidade psicológica, aquela aura que seduz pela personalidade. Capitu era bonita e brejeira, ponto final. Algumas décadas depois outro escritor, Jorge Amado, descreveu outra moça, parecida em características físicas e mentais: Gabriela, que tinha a mesma brejeirice, o mesmo ardor sexual,  a mesma singeleza de raciocínio. Mas havia uma diferença, Gabriela não controlava seus impulsos. Esses que no dizer popularesco se diz das moças atiradas: “…mulher quando quer dar ninguém segura”.

Pois Capitu não chegou a tanto. No romance, jamais foi pega praticando infidelidades. Era esposa recatada e do lar, como convinha. Devia lá ter seus desejos reprimidos e olhadelas à socapa (quem não tem?). E olha que aguentar um sujeito como Bentinho, deve ter sido uma barra!

Neurótico, obsessivo, o cara fazia tudo para levar um bom par de chifres! Millor Fernandes, escritor, chegou a constatar, nas entrelinhas do romance, que Bentinho tinha uma paixão secreta por Escobar. (Será?).  Pra completar, Bentinho jogou o nome de sua mulher na lama, para sempre, sem prova de nada.

2. Podemos imaginar como seria a Capitu, versão 2020. Esta, como aquela,  pouco lê. Preocupa-se apenas em dar  vazão aos seus prazeres imediatos. Gosta de novela, não perde o BBBrasil  e adora – como adora!- música sertaneja, porque, verdade seja dita, Capitu é uma obtusa. Parece-se com Bruna Marquezine naquele jeito brejeiro e sensual, de santinha de pau oco, como se dizia. Não tira o celular da mão, odiando  tudo o que se refere a estudo ou livros.  Sonha, isso sim, em se casar.

E não é que encontra? O Bentinho do século XX. Porque foi casar justamente com um Bentinho nem ela sabe. Bentinho é sério demais para o seu gosto, é trabalhador, religioso da Igreja Universal e talvez tenha sido por isso que o escolheu: para dar um rumo à sua vida. Têm pouca coisa em comum,  mas o fato de ele também gostar de música sertaneja lhe parece mais do que suficiente. O casamento, ao som de Luan Santana,  achou o máximo, dançou, estava feliz.

A lua de mel nem tanto. Bentinho não chegou junto e a coisa foi arrefecendo. Com alguma dificuldade (da parte dele) e boa vontade da parte dela (fantasiava com outro para aguentar) deu até para ter um filho, que hoje tem 3 anos. Por incrível que pareça esse é dele mesmo.

Até que chega a quarentena. Só dá ela, vendo lives de música sertaneja, e Bentinho, batendo panela na janela. Capitu tá que não aguenta. Durante uma distração de Bentinho ela sai de casa. Quando volta ouve o berro: Onde você estava, sua  vagabunda? Ela, com os mesmos olhos oblíquos do passado, responde:  “Ora, com o filho do porteiro. Quer saber? Não te aguento mais! Se eu transei? Com você é que não foi.”

O resto todo mundo sabe. Mais um feminicídio.

Muita gente jura que foi uma tentativa de vingança (tardia e mal sucedida) da Capitu atual pelo que a sua versão sofreu no passado. O certo é que Bentinho, o feminicida, continuará vivo  e à solta como tantos.  Como sofrem as Capitus deste país!

José Ewerton Neto é autor de O entrevistador de lendas, novela premiada de ficção científica sobre as mais belas lendas maranhenses

                                                                      

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