O legado de Ferretti

0comentário

Natalino Salgado Filho*

Natalino Salgado lembrou que título de professor emérito foi concedido ao pesquisador Sérgio Ferretti em sua gestão como reitor da UFMA

Um dos mitos mais instigantes da humanidade é o que narra as aventuras de Ulisses, rei da ilha de Ìtaca,  registradas no livro Odisseia, um dos poemas homéricos. O herói liderou seus companheiros com astúcia e inteligência, superando obstáculos de toda a sorte no regresso para casa, quando do fim da guerra entre gregos e troianos. O exemplo de Ulisses – que conseguiu ver saídas em labirintos e pôr em prática ideias ousadas para seus seguidores – o distinguiram como um líder nato.

Faço alusão ao mito de Ulisses em razão da perda de um grande homem, que nos deixou esta semana – Sérgio Figueiredo Ferretti, pesquisador e professor emérito da Universidade Federal do Maranhão – título que lhe foi outorgado na nossa gestão, à frente da Reitoria, depois de quase quarenta anos seus dedicados ao ensino e à pesquisa. Ressalte-se que ele era também uma liderança inconteste em sua área; e só não deixa uma lacuna maior porque nestas décadas de tão dedicado labor, catequizou dezenas de discípulos que continuam seu legado e o ampliam, seguindo a senda que ele iniciou ainda nos anos 1970.

Ferretti era historiador, museólogo, antropólogo, mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutor em antropologia social (USP). Não o reduzo a um Lattes, mas, se descrevo este percurso no conhecimento, é porque reconheço em seu profícuo trabalho na pesquisa e docência a característica daquele que não acumula conhecimento, como diria Paulo Freire, referindo-se a um tipo de educação que denominou “bancária”. Em Ferretti, ensinar, pesquisar e compartilhar saberes eram ofícios diários, banquete cotidiano.

Ferretti instrumentalizou sua pesquisa para desbravar, em terras maranhenses, um novo olhar sobre a cultura religiosa dos afrodescendentes, em particular o Tambor de Mina, sobre o qual se tornou uma referência nacional a partir de sua dissertação de mestrado, editada em livro: “Querebentã de Zomadônu. Etnografia da Casa de Minas”. Este trabalho tem o mérito de revelar uma das mais antigas manifestações religiosas e o mapeamento de sua história a partir até da pátria mãe, a África, revelando seu caráter único, além de subsidiar os estudos que resultaram no tombamento pelo IPHAN.

No livro “Memória de velhos” (2008) ele revela sua atração pelo mundo religioso, quando chegou a pensar na possibilidade de se tornar monge. Participou ativamente dos movimentos católicos durante os efervescentes anos 1960 que respiravam as novas ideias do Vaticano II e, entre jovens universitários, certamente, os ventos da teologia da libertação. Mas ele explicou sua “vocação” pelo que denominou de “atração intelectual, porque eu sentia ali um ambiente intelectual muito elevado, um ambiente de arte, literatura, música. Sentia uma grande admiração por estes aspectos.” Não seria exagero dizer que estes elementos nortearam, afinal, toda sua produção técnica literária, pois os elementos estão todos lá, a partir do próprio objeto de seus estudos.

Professor Ferretti reunia em si mesmo a sensibilidade e o conhecimento,  associados a uma incrível dedicação que, sem dúvida nenhuma, deu ao departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA a densidade intelectual que redundou no justo reconhecimento para além das fronteiras de nosso Estado. Ele encarnou perfeitamente, no Maranhão, o que Einstein denominou numa frase lapidar: “O homem erudito é um descobridor de fatos que já existem – mas o homem sábio é um criador de valores que não existem e que ele faz existir.” Ferretti era esse sábio acessível, generoso e cujo amor ao ensino estimulou gerações de estudantes e pesquisadores que nasceram por suas mãos e hoje fazem parte do corpo docente da UFMA.

O corpo físico do professor descansou das dores e males que o acometeram em seus últimos dias na terra. Mas suas ideias, seus escritos, suas descobertas permanecem entre nós e perdurarão. Ferretti deixa um exemplo a ser seguido como um profissional que fez da sala de aula e dos espaços da cultura – lugar fundamental das relações humanas – seu mister de vida e daí podemos ver os frutos produtivos de tão grande dedicação.

Somos todos gratos por sua existência, como alunos, mas certamente aqueles cujas vozes estavam caladas e que com ele ganharam visibilidade e valor, são ainda mais gratos. À família externamos nosso sentimento por esta perda irreparável. Que como Ulisses, Ferretti alcance as areias brancas de sua Ìtaca imortal e encontre o descanso merecido.

*Natalino Salgado Filho, MD.PhD
Professor Titular de Medicina da UFMA
Chefe do Serviço de Nefrologia do Hospital Universitário da UFMA
Coordenador da Pesquisa Clinica em Nefrologia do HUUFMA
Coordenador da Liga de Afecções Renais do HUUFMA

Sem comentário para "O legado de Ferretti"


deixe seu comentário

Twitter Facebook RSS