
Em entrevista exclusiva a Paulo Rodrigues, o escritor e poeta, e também advogado Daniel Blume compartilhou pensamentos, suas visões e preferências literárias, contou como a literatura preenche sua vida desde a sua infância; além de comentar a estreita relação de duas de suas maiores paixões que não apenas coexistem, mas se completam e o completam – a Literatura e o Direito.
Confira a entrevista na íntegra:
Paulo Rodrigues – Daniel Blume, o Lenio Streck afirmou: “A Literatura ajuda a existencializar o Direito”. Você concorda? É isso mesmo?
Daniel Blume – Concordo em parte. Entendo que Lenio Streck reconhece a literatura como dimensão em que a existência se expõe e discute as relações humanas cujo eixo central é o Direito, numa espécie de reconstituição. É fato. Entretanto, aproveito para verticalizar meu pensamento: primeiro porque é a existência que demanda o Direito como condição fundamental de subsistência; sem justiça, os direitos não se sustentam e a vida é líquida e insustentável. Nesse caso, penso que o direito, ou melhor, os direitos é que servem de inspiração para a literatura, principalmente quando eles faltam. Prefiro pensar que o Direito clama pela justiça por meio das leis e a literatura, por meio do discurso e da arte.
Paulo Rodrigues – Você acredita que a literatura constrói uma aproximação interessante entre o Direito e o mundo prático?
Daniel Blume – Sim. O mundo prático se alimenta da falta e a literatura se alimenta do mundo. Se pensarmos na falta original, podemos perceber que essa insatisfação parte de um auto-desconhecimento e da indiferença que é, em grande medida, social. Todo utilitarismo, toda ambição, todo consumismo; o endividamento, o roubo, a corrupção e tantas outras coisas degradantes do mundo chegam muitas vezes desse vazio que é ausência de justiça. A literatura expõe para a humanidade os frutos da injustiça e provoca no advogado que lê obras literárias a necessidade de entender seu agir em prol de um mundo mais justo. Ou menos injusto. Daí nasce a luta com a palavra literária. Necessária, mesmo que vã.
Paulo Rodrigues – O Antonio Candido comentava muito: “A literatura é um direito básico de todo cidadão”. O que falta para o Brasil garantir esse direito?
Daniel Blume – Para o Brasil garantir esse direito, sem nenhum tipo de falácia quanto à acessibilidade à literatura, é muito importante primeiro que as políticas de alfabetização surtam efeitos massivos para a sociedade. Caso contrário, com os índices de analfabetismo alarmantes e em vários níveis, mesmo que o acesso seja democratizado, mesmo que muitos tenham livros à mão, mesmo que as bibliotecas se multipliquem, há que se lutar para que os alfabetizados sejam beneficiados com políticas de formação de leitores de literatura. Existem programas sim, mas me parece que o alcance ainda deixa a desejar, mesmo que as escolas lidem com essa perspectiva. Em resumo, esse é um assunto que precisa ser articulado à educação básica e superior do Brasil todo, nos diversos centros de ciências: humanas, sociais, tecnológicas e da saúde. Sem falar nas políticas de incentivo à cultura. Reunir livros e livros de literatura não é lucro quando a realidade está vazia de leitores.
Paulo Rodrigues – Quais são os principais clássicos literários, em sua opinião? Eles têm relação com a sua evolução como jurista?
Daniel Blume – Li muitos clássicos. Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto com seu sonho político de transformar o mundo devorado pelas formigas. Machado de Assis e a rebeldia das ideias de um dialético canário. Sim, não parei aqui para escolher os principais. Muitos e muitos outros tenho lido, mas esses foram chegando primeiro na minha lembrança. A literatura sempre vem com suas surpresas, bem como Antonio Cícero subverte o sentido de guardar: não é trancar no cofre, mas deixar a coisa à vista. De preferência vigiar “o voo de um pássaro” e não ter “um pássaro sem voo”. Por aí eu posso pensar a lei. Mais pelo que ela liberta do que pelo que ela obriga. A lei pode ser mais do que algema, a chave para destrancá-la.
Paulo Rodrigues – Como a literatura, a poesia, a ficção chegaram na vida do Daniel Blume?
Daniel Blume – A minha infância já foi rodeada de livros e eu sempre ensaiava produzir o meu. A minha redação no vestibular já me colocou a argumentar sobre voto e processo eleitoral sob o viés deste mundo feito de suas relações políticas, a partir da obra Esaú e Jacó de Machado de Assis. Fui aprendendo a fazer analogias até que o nó da gravata me trouxe o da garganta e tantas outras associações que me colocaram na fronteira entre o contexto jurídico e o literário. Quando a poesia poderia ter cessado, aí o contexto jurídico lhe abriu mais portas. E continua abrindo.
Paulo Rodrigues – Quais autores da literatura maranhense influenciaram a produção literária do Daniel Blume? E como você avalia a literatura contemporânea do nosso estado?
Daniel Blume – Na verdade, difícil escolher entre autores da literatura maranhense, porque existe, nesse tipo de leitura, uma espécie de pacto da identidade. Mas vou seguir o mesmo critério de quem chegar primeiro à minha lembrança: o temperamento memorialístico de José Chagas sempre foi muito marcante; Bandeira Tribuzi com a possibilidade de pensar emoção e sentir ideias. Louvação a São Luís é um mergulho na poesia da nossa ilha. Ferreira Gullar com sua poética que me consome a cada vez que leio. O poeta que paga o preço do exílio porque tem algo de verdadeiro no poético com tal intensidade que ele voa por sobre o oceano com seus garfos enferrujados, suas facas cegas, cadeiras furadas, sua história que é tão ele mesmo que, quanto mais longe vai, mais habita na porta e janela da Rua dos Prazeres de onde parece nunca ter saído.
Paulo Rodrigues – Comente sobre o livro Delações para os nossos leitores? Você trabalha bem essa relação discursiva entre o Direito e a Literatura?
Daniel Blume – Na verdade as obras refletem nossa alma e nossa alma espelhas as experiências. Eu me realizo transitando no Direito. Me apropriei do discurso jurídico e isso seria inevitável porque não sei mesmo quem mergulhou mais fundo: se o Direito em mim ou eu no direito. Então, minha cognição, minha razão, minha argumentação, minhas emoções têm sido gestadas nesse ambiente das iniciais, da gravata, das delações, do terno, enquanto transitam pela janela do escritório as acusações e defesas; as construções e destruições; as expectativas e decepções; as lealdades e traições, porque assim como o texto literário se manifesta em verossimilhança, os processos propõem o caminho da realidade dos fatos e não das semelhanças. Ou seja, ainda bem que existe a literatura para eu criar imagens e perfis que talvez estejam retratados em processos da vida, no vai e vem dos tribunais ou mesmo nas reuniões acadêmicas, sociais e talvez nas relações amistosas. Delações talvez seja a produção de perfis inspirados no mundo real, postos em fronteira com a ficção.
Paulo Rodrigues – O crítico literário Antonio Aílton afirmou num ensaio: “CARTAS AO NETO de Daniel Blume é um dos mais fluidos e saborosos livros de poemas que tenho conhecimento, nestes anos de muita escrita boa, mas também de abundante literatura insípida”. Como foi o processo criativo de CARTAS AO NETO?
Daniel Blume – Penso que a política é feita de cartadas. O que o avô faz é ensinar ao neto por meio de cartas. Existe aí um jogo que o leitor vai precisar decifrar. Qual relação há entre cartas e cartadas? Por que cartas ao neto e não carta ao neto, se os versos são maquiavélicos?
Paulo Rodrigues – Deixe uma mensagem para os nossos leitores:
Daniel Blume – Eu desejo boas leituras aos nossos leitores e espero suas impressões quando os meus livros estiverem entre aqueles que estiverem lendo. Tenham certeza de que tem muito mais do que eu possa explicar sobre o que escrevo. Aliás vocês são co-autores. Uma parte dos meus poemas são meus e a outra parte é de vocês. Fiquem à vontade para compor comigo. E compartilhem!