O cinismo

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   Vez por outra, ouve-se falar que fulano é cínico, debochado, irônico, sarcástico. Querendo-se referir a alguém, que nas relações pessoais, se comporta de forma desrespeitosa, insolente e arrogante, contrariando o que se espera de alguém quando nós nos relacionamos. Observa-se, nas pessoas consideradas cínicas, que mesmo em situações que exijam atitudes decentes, honestas e reservadas, ela age de forma inconveniente. Por isso, os cínicos “á priori” são antipáticos, rejeitados e desconsiderados.

            Só para aquecer mais um pouco, vejam o que dizem alguns pensadores clássicos contemporâneos, sobre essa temática: O irreverente Nelson Rodrigues dizia: só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata. O cineasta e teatrólogo Oscar Wilde dizia: Só o cinismo redime um casamento e por último Olavo de Carvalho, filósofo dizia: Se a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, o cinismo é a afirmação ostensiva do vício como virtude.

               Historicamente, houve época em que o cinismo não tinha a conotação que tem hoje. Segundo João Francisco P. Cabral, filósofo e Colaborador do Brasil Escola, no período da filosofia clássica, helenística, juntamente com os Epicuristas e Estoicos, o cinismo foi considerado como uma escola ou corrente filosófica a exemplo de outras escolas da época. Essa, propunha que Cinismo, correspondia a um modo de vida diferente ao que predominava na época. Um modo de vida de contestação, de oposição ao estabelechiment, um movimento que se opunha ao modo de vida defendido por outros setores da sociedade da época. O cinismo, propugnava um modo de vida, contrário às transformações que ocorriam na Grécia no período Macedônico.

                Nessa perspectiva os cínicos, se opunham e rejeitavam o modo de vida formal que as pessoas adotavam. Procuravam fugir inteiramente das regras impostas pelo formalismo. Contestavam a ciência, e tudo aquilo que os homens em geral consideram indispensável: as regras, a vida em sociedade, a propriedade, o governo, a política, as regras de convivência, etc. Na prática, baseavam-se no impudor deliberado, contrariando as mínimas regras de convivência. O cinismo era uma opção, uma escolha de vida, inspirada na liberdade total e absoluta ou da independência das necessidades inúteis, da recusa ao luxo, vaidade e outros dotes presentes na vida social da época.

           Atribui-se a Antístenes (444-365) a.C., discípulo de Sócrates quem fundou essa escola, o Cinismo. Atribui-se também a ele, a primeira definição de cinismo no século V a.C. Ele foi seguido por Diógenes de Sinope que levou o cinismo aos seus extremos e passou a ser visto como o arquétipo de filósofo cínico, sua “autarkeia (autossuficiência) ” e a “apatheia” perante as vicissitudes da vida eram os ideais do cinismo, condição que os levaria a liberdade total. Esse termo pode ser aplicado em diferentes contextos: economia, em filosofia e na administração pública.

            Autarkeia, autarquia, quer também dizer poder absoluto. Um tipo de governo em que uma pessoa ou um grupo de pessoas concentram todo poder em si mesmos e sobre uma nação. Autarquia, se verifica quando o Estado tem total autonomia sobre si próprio, é autossuficiente.

             Apátheia, do grego, nos remete a páthos “aquilo que afeta o corpo e a alma”. É o estado de uma alma indiferente, que não é suscetível de se emocionar por falta de sensibilidade ou de sentimento. É o estado de uma alma indiferente, que não é suscetível de se emocionar por falta de sensibilidade ou de sentimento.

Do ponto de vista médico, apatia é uma condição psicológica designada por um estado emocional de indiferença. É a falta de emoção ou motivação de um indivíduo perante algo ou alguma situação, tendo como algumas das suas características o desgaste físico, a inércia, a fraqueza muscular e a falta de energia (letargia). Politicamente refere-se a um estado fraco, indiferente, frouxo e sem poder.

            Essa corrente filosófica dos cínicos, se espalhou durante a ascensão do Império Romano no século I quase se tornando um movimento de massa, e assim, os cínicos eram encontrados pedindo e pregando ao longo das cidades do império. Só no final do século V essa doutrina finalmente desapareceu no cenário histórico.

            No século XIX, a ênfase sobre os aspectos negativos dessa corrente filosófica levou ao atual entendimento sobre o seu significado contemporâneo, significando uma disposição de descrença na sinceridade ou bondade das motivações e ações humanas caracterizando tais adeptos como sendo pessoas como as que desprezam as convenções, as regras e as normais sociais.

            Cinismo como é visto hoje, representa uma condição que nos remonta a algo da personalidade, um traço de caráter, algo intrínseco à personalidade, algo constitucional ou a um tipo especial de comportamento. Os cínicos, sempre existiram, nas sociedades humanas, e dependendo da cultura e dos padrões comportamentais que imperam em certas sociedades, estão muito presentes.

           As marcas registradas, mais comuns que se observa no comportamento desses indivíduos são:  indiferença total, independência absoluta de liberdade interior, de impassibilidade, tranquilidade, imperturbabilidade, condições essas que eles consideram divinas. Para os cínicos a virtude é a indiferença absoluta, sobretudo aos valores humanos.

            Os cínicos são descarados, atrevidos e sarcásticos e, despertam nos outros certa repugnância, aversão e desconfiança na convivência. São rejeitados pelo indiferentismo e pela ousadia com que seus atos são praticados. Dificilmente, alguém se dá bem, convivendo com um cínico. Ao lado deles, vive-se sempre com um pé na frente e outro atrás pela desconfiança que inspiram.

            Em Psiquiatria, há uma categoria de transtornos relativos à Personalidade que Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, um desses tipos, o Transtorno de Personalidade Antissocial TPAS, que é um dos mais importantes diagnósticos psiquiátricos dessa categoria, o cinismo aparece como uma caraterística importante desse diagnóstico. Outros sintomas, próprios desses Transtorno de Personalidade (TPAS) são a indiferença pelos sentimentos alheios, a crueldade, a mentira, e o notável desprezo pelas normas e obrigações pessoais e sociais. A baixa tolerância à frustração, a impulsividade e finalmente, pelo baixo limiar para atos violentos (OMS, 1993).

            Então vejam, embora a presença do cinismo não seja um sintoma patognomônico (essencial), para o diagnóstico de TPAS ele se encontra inserido entre um dos mais importantes sintomas encontrados nesses Transtorno, demonstrando o quão marcante é seu significado, na perspectiva médica e psicopatológica. Personalidades vaidosas, excêntricas, portadores de transtorno afetivo bipolar, especialmente na fase na maníaca e hipomaníaca, os portadores de Transtorno de Personalidades Boderlines e de condutas podem assumir atitudes cínicas pela via afora.

           Não é exagero pensar-se que esse homem que está surgindo das entranhas desse novo mundo que se está se construindo, onde os valores éticos, religiosos, e morais ligado a esse inegável modo de vida contemporâneo, onde as pessoas estão se tornando, a cada dia, arrogantes, irônicos, indiferentes, sem regras, sem ética, sem probidade, sem decência e sem pudor, seja o resultado da reedição das aspirações dos antigos postulantes dessa forma de pensar. Talvez, em um futuro próximo, a sociologia, a antropologia, a psicologia e a própria psiquiatria, juntamente, aos culturalistas, psicólogos, sociólogos e historiadores possam nos explicar que homem é esse que vem surgindo, sorrateiramente, nos dias atuais, mais cínico e menos sensato.

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