Sentir inveja pode ser tão doloroso quanto levar socos de verdade

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“ A nossa inveja dura sempre mais tempo que a felicidade daqueles que invejamos”

François de La Rochefoucauld (cronista francês do século XVII

O cientista brasileiro Carlos Chagas (1878-1934) foi indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. Essa informação, com 85 anos de atraso, é peça de um enigma difícil de entender: por que, quando os contemporâneos europeus de Chagas com descobertas da mesma natureza eram laureados, o Nobel foi negado ao descobridor de uma das doenças parasitárias que mais afligem o continente americano?
A primeira indicação oficial, datada de 1º de janeiro de 1913, foi de Pirajá da Silva. A segunda, de 21 de dezembro de 1920, foi feita por H. de Gouvêa. Foram feitas duas outras indicações não-oficiais,.

A descoberta da doença

Há 90 anos, Chagas apresentou à comunidade científica e médica um pacote de novidades: um novo parasita (o protozoário Trypanosoma cruzi), transmitido por um inseto hematófago (que se alimenta de sangue) a diferentes vertebrados, e uma série de sintomas associados à infecção humana daquele protozoário.
Chagas acabava de “inventar” uma nova doença tropical, a tripanossomíase americana, batizada depois de doença de Chagas. Reconhecido imediatamente no Brasil e no mundo, Chagas recebeu prêmios e honrarias.
De 1912 até praticamente sua morte, Chagas recebeu convites e honrarias de muitas instituições estrangeiras. Mas, se no exterior a receptividade a Chagas foi grande, no Brasil a relação da comunidade médica e científica com a descoberta e seu descobridor foi sempre ambivalente: não há dúvidas de que houve muita euforia no momento em que a descoberta foi divulgada.
Em 1910, Chagas foi aclamado membro titular da Academia Nacional de Medicina e foi escolhido para ocupar um cargo de chefia no Instituto Soroterápico de Manguinhos. Depois que Oswaldo Cruz morreu, em fevereiro de 1917, Chagas herdou a diretoria do instituto. Em 1920, quando foi criado o Departamento de Saúde Pública, Chagas foi nomeado seu primeiro diretor, acumulando cargos.
O prestígio de Chagas tanto na medicina experimental como na saúde pública parecem evidentes. No entanto, existiu desde muito cedo um grupo de descontentes.

O “grupo anti-Chagas”

Cada novo cargo, honraria ou indicação no Brasil reforçava o “grupo anti-Chagas”. Não gostavam das idéias de Chagas, dos critérios de mérito que ele e Oswaldo Cruz instituíram, das relações de Chagas com instituições estrangeiras e nem da sua condução dos negócios da saúde pública.
Quando o Departamento de Saúde Pública foi criado, o poderoso Afrânio Peixoto tinha a pretensão de dirigi-lo. Com a nomeação de Chagas, Afrânio tornou-se o mais virulento inimigo do descobridor da tripanossomíase.
Foi Afrânio Peixoto quem, dois anos depois, abriu a chamada “disputa da Academia Nacional de Medicina”, em que acusações sérias foram feitas em reunião daquela casa em novembro de 1922.
Chagas solicitou que uma comissão julgasse as acusações que lhe faziam: a de que a doença não era consistente, de que ela não tinha relevância epidemiológica e de que ele próprio não seria nem mesmo o seu descobridor, cabendo o título a Oswaldo Cruz.
A comissão trabalhou de forma turbulenta, de 1922 a 1923. Finalmente, em 6 de dezembro de 1923, a comissão concluiu favoravelmente a Chagas. Nessa época uma carta assinada pelo presidente do Brasil Epitácio Pessoa lhe narrava que todo aquele ataque não era mais do que pura inveja indisfarçada: ”A mediocridade não perdoa o talento como a treva não perdoa a luz”

O desprestígio da descoberta

Depois da disputa da academia, a doença de Chagas caiu no esquecimento: não foi mais discutida e foi pouco pesquisada. Sumiu dos currículos médicos e não foi mais diagnosticada nos hospitais.
Só depois da morte de Chagas, em 1934, é que um vigoroso movimento de restauração do interesse na doença vingou. A partir daí, milhares de novos casos foram diagnosticados e o alcance epidemiológico da doença pôde ser compreendido.
A pesquisa cresceu e gerou claros casos de sucesso científico tanto no controle da doença, em clínica e, mais recentemente, em biologia molecular.
Talvez jamais saibamos exatamente o que impediu que Chagas viesse a ser o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Nobel. Só o que sabemos é que nenhum brasileiro esteve tão perto dele.
É o que chamamos de fogo amigo nos dias de hoje.

“A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo”

Oscar Wilde, escritor irlandês

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