Quando o sofrimento se torna um vício

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Sofrimento é um dos sentimentos intrínsecos ao homem. Mas há casos em que ele transcende a normalidade e se torna uma espécie de doença. É quando esse tipo de dor se torna tão presente na vida do indivíduo que o impede de ter uma vida em equilíbrio, com relações afetivas e emocionais gratificantes. O fenômeno é observado há anos.

Qual é a diferença entre tristeza e sofrimento?

 — Tristeza é um sentimento intrínseco ao ser humano, faz parte da vida. Temos esse sentimento quando perdemos alguém, quando nos deparamos com alguma fraqueza nossa, quando temos uma identificação com algo triste (pobreza, doença, desigualdade etc.). É natural e saudável, pois nos permite refletir e elaborar situações difíceis. Sofrimento também faz parte da condição humana e da vida. Ele nos permite entender a vida, seus mistérios, e nos dá a possibilidade de criar a nossa subjetividade e a nossa individualidade. No livro, falamos de um sofrimento que é evitável, isto é, que a pessoa não precisaria viver e que fatalmente a leva a constantes insucessos. Esse sofrimento é interno: a pessoa padece sem perceber. Gera distúrbios de ansiedade, depressão e a sensação de menos valor. É uma dependência psicológica da dor, gerada pelo sofrimento, e essa dor psíquica é transformada em droga.

Quando o sofrimento passa a ser patológico?

 — Quando começamos a empobrecer nossa vida para se comprazer num evento que tenha nos causado muito sofrimento. Abandonamos a vida para sucumbir em pensamentos obsessivos e compulsivos e justificar o nosso prazer — autoflagelo na dor do sofrimento. É muito comum estar camuflado em outros quadros, com sintomas psicossomáticos e psiquiátricos.

Como a vida atual leva ao vício de sofrer?

 — O vazio existencial, a solidão, o estresse e o excesso de cobrança. Os comportamentos compulsivos de compras, usadas como moeda de afeto e autoestima. O fato de viver só com os valores ditados pela mídia — padrão de beleza, de sucesso (no amor e no trabalho), competição excessiva — e de estar desconectado de seus valores pessoais e de sua ética. A falta de tempo para construir laços afetivos importantes, com parentes e amigos, e tempo de sobra para o ócio. Estar desconectado de sua espiritualidade.

A pessoa que se faz sempre de vítima é uma viciada em sofrimento ou ela pode agir assim somente para atrair a atenção dos outros sem necessariamente estar sofrendo?

 — Às vezes, encontramos pessoas que se fazem de vítima para obter atenção e afeto do outro. No caso do viciado em sofrimento, a pessoa é de fato vítima, mas do seu próprio enclausuramento psíquico, que são os pensamentos compulsivos de pessimismo, de autoflagelo, de menos-valia, que interferem fundamentalmente na baixa da autoestima. São pessoas desejosas de serem amadas, mas que não conseguem se sentir amadas, apesar de muitas vezes serem.

O sofrimento pode nascer ainda na infância. Por que as crianças sofrem?

 — O sofrimento, como disse, faz parte da vida. Muitas vezes, por questões adversas, uma criança pode ter uma infância sofrida. Depressão pós-parto da mãe, separações dos pais, gestação não desejada ou mesmo distúrbios cognitivos e emocionais podem potencializar essas primeiras vivências, deixando marcas profundas na criança e levando a quadros psicológicos. É importante que os pais, ou substitutos, fiquem atentos ao filho. Ao detectarem sofrimento em vez de uma infância como um período de alegria, brincadeiras e comportamentos espontâneos, levem a criança para uma avaliação com um profissional, para um possível encaminhamento terapêutico. Podem assim, muitas vezes, abortar um processo de construção de adulto viciado em sofrimento. Mas é importante ressaltar para os pais que não se sintam culpados caso se identifiquem com algum desses fatores, pois eles por si só não são determinantes para criar um viciado em sofrimento. E é possível mudar esse enredo pelo tratamento psicoterápico ou mesmo pela característica da criança. Temos crianças que tiveram uma infância sofrida e se tornaram pessoas resilientes. Hoje, são adultos de sucesso e realizados.

Crianças, adolescentes, adultos, velhos. Há viciados em sofrimento em todas as fases da vida?

 — Sim. Mas é comum serem detectados a partir da adolescência, quando se potencializam aspectos de modelos relacionais vivenciados e aprendidos com os pais — sentirem-se rejeitados —, somados à timidez e à dificuldade de sociabilização, característicos dessa fase. Por outro lado, se identificar tais dificuldades no filho — isolamento, tristeza, apatia, ausência de amigos e de paqueras, dificuldades de aprendizagem — e encaminhá-los à psicoterapia, esse vício é facilmente superado. Em outras palavras, é possível desconstruir essa atitude de sofredor que irá se caracterizar fortemente na fase adulta.

Como uma pessoa leiga pode perceber que um amigo ou familiar é um viciado em sofrimento?

 — Depende da fase. Na adolescência, já citei algumas características. Na fase adulta, percebe-se nas suas dificuldades de lidar com os novos papéis sociais e afetivos. Exemplo: sempre se desqualifica, não conseguindo lidar com os desafios, não tendo opiniões próprias, mostrando-se com uma autoestima prejudicada, sem amigos, com dificuldade de desenvolver um papel profissional. São pessoas que estão sempre infelizes, insatisfeitas, são autoexigentes e nunca cumprem para si o desejado. Apesar de terem sucesso em algum compartimento da vida — construíram uma família ou mesmo uma profissão —, não se sentem realizadas ou satisfeitas. Estão sempre carentes de afeto ou atenção, muitas vezes se fazendo de duronas.

Que ações práticas podem tirar a pessoa de um processo de sofrimento?

 — O primeiro passo, como em qualquer vício, é perceber e aceitar que é um viciado. Muitas vezes, a pessoa acha que ela não tem sorte, que viver a vida é lutar e sofrer… Camufla seu sofrimento em valores religiosos ou no destino, para justificar a sina. Perceber e desconstruir os pensamentos pessimistas, perceber como anda sua vida. O que é importante? Como distribuir o seu tempo? Do que se compõe a vida? Refletir sobre os seus valores e sua ética e construir um projeto de vida com essa bússola. Nesse processo de autoconhecimento, pode-se sentir dificuldades de superar conflitos internos ou externos. Seja humilde e amoroso consigo, procure ajuda de um especialista em psicoterapia ou psiquiatria para avaliar a necessidade de tratamento

Psicoterapeutas Dirce Fátima Vieira e Maria Luiza Pires.

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