Carta não enviada para Papai Noel

 Caro Papai Noel,

Sabe que houve um tempo em que eu até acreditei que você existia! Tempo bom aquele! Meu mundo era pequenino e seguro. Minha cidade era o meu bairro. Meu estado era o resto da cidade. O país era o meu estado e meu mundo, onde todos falavam português, era do tamanho do Brasil. Criança pensa cada coisa! Até acredita em Papai Noel!

Aos 8 anos, as fronteiras de meu mundo iam um pouco além do parquinho de diversões do SESC, da Avenida Silva Maia, em frente da casa de vovô Pinto.

Pouco tempo depois a capital de meu mundo passou a ser o campinho de futebol que havia no quintal de nossa casa. Nós mesmos o fizemos, à mão, com facão, picareta e enxada, com a ajuda dos amigos do bairro que toda tarde, depois das aulas particulares com dona Terezinha, apareciam pra bater uma pelada conosco. Nossos primos sempre vinham aos sábados. Jogávamos e fazíamos acampamentos, “expedições” para explorar as margens do rio Bacanga. Um dia, nós fomos ao Sitio do Físico, sob o comando do “tio” Stenio Magalhães Barros, o mesmo que nos levava ao cinema no velho fusquinha verde/63. Era Stenio quem organizava os torneios de botões, damas, xadrez, ping-pong… Ele era um híbrido entre tutor e baba.

Não tínhamos nem piscina em casa, tomávamos banho de “mangueira” ou de tanque. Às vezes era preciso que usássemos bucha pra tirar o sujo de um dia todo de brincadeiras. Nós não, dona Rosário, a lavadeira, que batia na roupa com um pedaço cabo de vassoura. Nunca entendi porque ela fazia aquilo, até ler recentemente um rótulo de um produto numa gôndola de supermercado, onde estava escrito amaciante e só aí caiu a ficha. Dona Rosário amaciava as roupas mais pesadas e grossas à base de pauladas.

Sabe Noel, minha vida sempre foi salva por mulheres. Acho que é por isso que sou tão fascinado por esse maravilhoso gênero humano. A primeira vez que eu me lembre, foi por duas delas. Minha mãe e dona Terezinha. Minha mãe viu que não conseguiria me ajudar com os estudos e contratou dona Terezinha, filha de uma vizinha que se formara professora, para tomar conta dos estudos do “irrequieto Jotinha”. Graças a Deus! Sem saber que eu sofria de uma espécie de dislexia, uma pequena dificuldade de aprendizagem através da leitura, dona Terezinha observou que eu aprendia muito mais quando ela estudava comigo, quando lia para mim. O que parecia uma simples preguiça poderia ter me custado caro se as mulheres certas não estivessem em meu caminho desde sempre. Foi a preocupação de dona Clarice e o carinho de Têca que me salvaram do estigma da preguiça e da desatenção que resultaria no desastre de não aprender.

É dessa época meu primeiro amor, ou pelo menos o que eu imaginava que fosse. É também desse tempo o Basket. Lembra do campinho de futebol? Nós o trocamos por uma quadra de basket. Nesse esporte aprendi o valor da disputa, da dedicação, tive os primeiros ensinamentos sobre companheirismo, sobre esforço coletivo, sobre honra e respeito aos que se opõem a nós, que pensam diferentes, que usam uniformes de outras cores.

Um pouco mais à frente me tornaria definitivamente um viciado, um dependente quase que químico em cinema e em política.

Estes são vícios dos quais eu não quero me libertar jamais. O cinema me faz viajar sem sair do lugar. Me leva para frente e para trás no tempo. Ele me mostrou as várias faces da vida, a comédia, o drama, as guerras, as vidas de grandes figuras da história. Me deu acesso aos clássicos da literatura que havia lido com tanto sacrifício.

Se o cinema ou a política fossem doenças, não me importaria de morrer acometido delas.

Na política aprendi a conhecer o ser humano em outra esfera, com o auxílio de lentes próprias para focalizar e filtrar as qualidades e os defeitos das pessoas. Nela, pude pôr em prática muito do que vivenciei e aprendi nas quadras de basket, nas salas de projeção, entretido e submerso em exaustivas e prazerosas sessões de leitura. Na arte de Nicolau, tive professores ausentes e aulas presenciais que me ensinaram como conviver com algo que para tanta gente parece tão repugnante, sem que isso me embrulhasse o estômago, pelo contrário, saboreando como um delicioso manar recheado de poder, sedução e mel.

Olhando para trás e projetando o futuro, chego à conclusão de que não tenho nada para lhe pedir Papai Noel. Mesmo que o senhor existisse, a única coisa que está me faltando, ninguém pode me dar, é algo que só eu posso resolver. Só tenho que ter consciência, sabedoria e humildade para reconhecer que possuo tudo que preciso e que antes de mais nada devo agradecer por ter uma vida tão maravilhosa.

Muito obrigado e feliz ano novo.

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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