A vida imita a vida
“… O que não faz o amor, nem o ódio faz”. (Alexandre Dumas Filho – A Dama das Camélias)
Numa interessante conversa com alguns amigos queridos sobre as idiossincrasias com as quais convivemos diariamente e nem sequer nos damos conta, veio à baila ocaso de pessoas que foram muito ligadas, amigos inseparáveis, verdadeiros irmãos, e depois se distanciaram, romperam relações por motivos torpes e supérfluos.
A partir do próximo parágrafo vou contar o que sei sobre uma história assim. O que sei pode não ser toda a verdade, pois verdade é coisa que não cabe em uma só narrativa. Mas previno desde logo que às vezes, tanto as verdades quanto as mentiras são construídas com um pouco de arte, esculpidas com dotes literários que eu sempre quis ter, dotes que tenho perseguido desde que resolvi me dedicar ao ofício de escrever.
Havia em Boston, nos anos 50, um talentoso e bem afamado, jornalista e crítico de arte. Egresso das boas escolas católicas, como não poderia deixar de ser, tendo ele nascido em Massachusetts e pertencendo a uma família de origem irlandesa, tinha duas alternativas na vida, ingressar no seminário e ser padre ou servir na força pública, ser policial. Optou por uma terceira via. “Sempre fez isso na vida”, comentavam maldosamente, a boca miúda, alguns de seus desafetos. Mas ele era realmente competente no que fazia. Tido por todos como impiedoso e cruel e gostava dessa fama, chegava mesmo a cultivá-la com dedicação e esmero.
Ele há muito, resolvera ignorar completamente um determinado escritor, um antigo e bom amigo seu, daqueles a quem recorria sempre que precisasse, fosse para pedir-lhe emprestado algum dinheiro, (mesmo que sempre se esquecesse de pagar) fosse para um simples desabafo. Às vezes era apenas para uma conversa fiada, num daqueles dias entediantes de sua vida solitária, onde sua companheira constante era tão somente a boa e velha garrafa de scoth. O tal crítico, no entanto, ignorava seu amigo por achá-lo um escritor menor, um daqueles filhinhos de papai sem nenhuma relevância no cenário da efervescente sociedade literária bostoniana, no que antecedeu a New Camelot de John e Jack. Tanto isso era verdade que nem se dava ao trabalho de lê-lo.
Naqueles tempos mais valia no cenário cultural quem saísse em sua coluna, incrustada no mais importante jornal da cidade que logo ditaria a moda na literatura, nas artes plásticas, na música e principalmente na política americana e mundial.
Um dia, o escritor indignado por algumas atitudes deselegantes e descorteses do crítico para com outras pessoas, amigas comuns, escreve um pequeno texto, onde traça o perfil claramente Lombrosiano do cruel analista, sem sequer nomeá-lo. Mesmo assim, vestindo a carapuça, o crítico enlouquece de ódio quando se vê claramente retratado, de forma tão talentosa e eficaz, vendo expostas suas vísceras, reconhecendo e provando ali toda sua bile, que naquele momento amargava-lhe a consciência.
A partir daquele dia, a amizade entre os dois esfriou. Mas em compensação o tal crítico descobriu que aquele seu amigo, ao qual ele não dava o valor devido, não poderia ser ignorado, muito pelo contrário, ele passou a lê-lo com assiduidade e respeito, dando-lhe o devido valor. Dedicou a ele boa parte de seu tempo e de seu veneno, mesmo que, ainda assim, impedido por sua arrogância e por seu egocentrismo, jamais tenha reconhecido os méritos do escritor, publicamente. Certa vez, escreveu inclusive um texto onde ofendia covardemente o pai já falecido do escritor.
Anos depois, quando da morte do jornalista, isolado e abandonado por todos, já que jamais construiu verdadeiras amizades, poucos compareceram ao seu enterro, entre eles estava o tal escritor que um dia havia sido seu amigo e que havia se tornado um dos mais importantes romancistas de seu tempo.
Essa é parte que sei da tumultuada história da amizade entre Ruppert Karry e Gore Vidal, esse, amigo intimo dos Kennedy. Sua história foi exposta na tela no famoso filme, “Sweet smell of success”, cujo título no Brasil foi A Embriaguez do Sucesso, estrelado por Burt Lancaster e Toni Curtis.
Em suas memórias, Vidal conta que no dia do enterro de Karry, compareceu para ver se o ex-amigo estava realmente morto e aproveitou para devolver-lhe as promissórias jamais honradas. Enrolou-as nas hastes das flores de um buque de rosas brancas que surrupiara de um ataúde próximo e depositou-as candidamente sobre o caixão, como sinal derradeiro de perdão e paz.
PS: A citação de a Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho no início deste texto poderia ser a prova definitiva que a vida realmente imita a vida. No entanto a citação é falsa, forjada, mas você irá concordar que é bastante aceitável e plausível. É que a vida imita a vida!
Para confirmar ainda mais a tese do título, todo o resto da história, os fatos e os personagens, com exceção de Gore Vidal, o cenário e tudo mais, inclusive a alusão ao filme, que existe, mas não tem nenhuma ligação com a história, é tudo criação literária, ficção pura e cristalina. Metáfora de personagens reais, mas nem de longe semelhantes. A prova cabal de que vida realmente imita a vida! A arte só tenta imitar.
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