Minha verdadeira herança

Herdei de meu pai muito mais que os bens materiais que ele conseguiu acumular em sua vida pródiga e generosa. Quem o conheceu sabe que ele era um trabalhador incansável, mas era também um mão-aberta inveterado, para quem o dinheiro só valia pelo prazer que pudesse proporcionar a si e aos seus.
A herança material que ele nos legou foi muito importante, pois garantiu a segurança financeira e econômica de nossa família. Essa herança garantiu meu alimento físico, mas acredito que sobreviveria sem ela.
Quando ouço alguém dizer que somos ricos, que nasci em berço de ouro, lembro de quando éramos criança, de que nós éramos os menos abastados do círculo de amigos e vizinhos do Outeiro da Cruz. Lembro-me também que meu pai levantava-se todo dia por volta das cinco da manhã para trabalhar e que não tinha hora pra voltar pra casa.
Toda vez que passo em frente ao Residencial Pinheiros, no bairro do Angelim, lembro dos dias maravilhosos que passei ali, naquele lugar que nas décadas de 60 e 70 era o nosso sítio e que depois de uma campanha política difícil, a de 1978, a primeira eleição de meu pai à Câmara Federal, tivemos que nos desfazer dele.
Herdei de meu pai uma infinidade de amigos, conhecidos e desconhecidos, pois até hoje, algumas pessoas se aproximam de mim dizendo que eram amigos de meu pai e que sentem sua falta, que ele foi importante em suas vidas. Essa herança, os amigos que herdei de meu pai, é preciosa demais, me dá orgulho, me dá respeito, me dá segurança, me fortalece, conforta e alimenta minha alma. Sem essa parte da minha herança eu seria bem menos nutrido daquilo que é essencial.
Parei outro dia na porta do PMDB para tomar um sorvete de coco desses de rua, quando se aproximou de mim um moço, na verdade um senhor de seus 60 anos e me disse que o pai dele era de Matinha e que era muito amigo e freguês de meu pai. Disse que quando jovem vinha com o pai dele comprar cimento, arroz, trigo, açúcar, querosene e outros gêneros no depósito de meu pai, que ficava bem ali no Desterro. Disse que além de eu ser parecido com meu pai fisicamente, parecia também muito com ele nas atitudes. Que o que eu estava fazendo ali, naquele instante, ele vira meu pai fazer anos atrás quando estava lá em seu armazém. “Chegou um daqueles sorveteiros, com uma daquelas caixas antigas de madeira e zinco, e seu pai mandou distribuir sorvetes para todos os presentes, inclusive para os estivadores que descarregavam os caminhões e carregavam os barcos”.
Ganhei de presente de meu pai o conhecimento que ele me possibilitou, tanto no tocante à minha educação familiar, quanto à minha instrução formal. A minha formação sentimental, moral, cultural e intelectual, não foi herança, mas sim o presente, o bem mais caro que recebi em toda minha vida. Sem ele eu nada seria.
Meu pai adorava História. Personagens como Alexandre, Napoleão, Churchill, povoavam seu imaginário. Apesar de ter tido pouca instrução formal, ele não tinha o segundo grau completo, lia muito, procurava se informar, era dono de uma inteligência privilegiadíssima, captava tudo no ar, e como já disse era um trabalhador incansável, mas sabendo de suas limitações, cercava-se de pessoas que pudessem suprir-lhe suas virtuais deficiências.
Nesse baú da herança que meu pai deixou para mim e meu irmão, figura um item de que me valho constantemente: trata-se do cabedal de exemplos que ele nos legou, de como ser e também de como não ser. De como ser leal, generoso, franco, otimista. De como não ser ansioso, teimoso, impertinente… De como me comportar nas mais diversas situações, quando, por exemplo, nós políticos somos de certa forma “obrigados” a jamais dizer a palavra não, e enquanto amigos, temos a obrigação de falar a verdade, doa a quem doer, “fique sempre atento, pois o difícil é saber quando e como se deve agir e se deve-se agir assim ou assado” – dizia ele.
Meu pai já morreu faz 17 anos e todas as vezes que estou em algum lugar, irremediavelmente surge o seu nome e consequentemente sou comparado a ele. Seja Zé Sarney a me dizer que a cada dia eu me pareço mais com ele, “só que ele dava no teu ombro”. Seja algum funcionário da Assembléia comentando que como ele eu passo toda a sessão andando de um lado para outro no plenário, dando conta de uma votação, aparteando um discurso, conversando com um ou com outro deputado. Seja mãe Tetê dizendo que olhar para mim é ver papai, do jeito de beber água bem gelada ao sorriso de olho fechado.
Meu pai adorava umas frases de efeito. Uma delas me persegue até hoje: “O difícil se faz logo, o impossível demora um pouco mais”.
Faço o fácil com prazer, o difícil com dedicação e o impossível com paciência. Essa é minha maior herança: com tudo que um pai me deu em vida e me legou na morte, eu pude agregar a minha própria contribuição. Observar e entender o simples, o natural, o fácil.
Muitas vezes as pessoas, assim como meu pai fazia, estão muito mais voltadas para as coisas difíceis, para as coisas impossíveis. Eu desde cedo me interesso pelas coisas fáceis e simples. Nelas estão os mapas, as chaves para o difícil e para o impossível.

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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