Faxineiro de mim

De tempos em tempos eu faço uma faxina na minha vida. Tento arrumar literalmente a minha cabeça, passar a limpo acontecimentos que de uma forma ou de outra marcaram e determinaram os caminhos por onde passei e consequentemente, direta ou indiretamente, os fatos responsáveis por eu estar onde estou, por ter chegado aonde cheguei.

Recentemente fiz uma dessas faxinas, uma bem rápida, pois foi motivada por um dos passatempos que aprendi com meu pai: observar pessoas enquanto elas comem. Dizia ele que enquanto as pessoas comem, ou elas ficam relaxadas ou tensas, e nesses momentos, se você for capaz de fazer uma boa observação, poderá ver claramente como são essas pessoas, analisar suas reações. Desnudá-las.

Numa mesa bem ao meu lado em um restaurante, estavam dois brasileiros e dois asiáticos conversando, ora em inglês, ora em português, ora em coreano. Durante aquela rápida observação, constatei que são poucos os arrependimentos que tenho na vida e mesmo que nenhum seja lá muito grande, existem alguns dos quais me lastimo.

Um de meus maiores arrependimentos é não ter me dedicado com mais afinco a aprender outros idiomas, principalmente o inglês.

Não foi por falta de apoio de minha família. Desde cedo meus pais me colocaram em escolas de inglês, mas eu ia para elas mais para brincar ou paquerar do que para estudar. Naquela época eu não sabia nada sobre o meu problema de dislexia, fato que pode ter contribuído para um baixo aprendizado, porém isso não é desculpa.

Mas voltemos ao restaurante onde aqueles quatro homens conversavam. Quando os quatro interagiam conjuntamente, falavam em inglês, quando os brasileiros interagiam entre si, usavam o português e quando os coreanos conversavam era em sua língua mãe. Esse fato não significa que estivessem sendo mal educados.

Observei que naquela mesa, bem ali do meu lado, havia um código que unia aqueles homens de procedências tão diferentes, a língua inglesa. Aquele era um código tão poderoso que unia até mesmo eu àquela conversa.

Naquele momento fiz a minha faxina. Reconheci que se eu tivesse realmente me dedicado a aprender inglês, coisa que minhas filhas Laila e Joama fizeram de maneira magnífica, eu hoje teria menos dificuldade no trabalho que resolvi encarar como sacerdócio, o cinema.

Fiquei triste comigo mesmo ao constatar tal coisa. Mas como não passo mais que alguns instantes deglutindo o que não seja especialmente saboroso e excitante, lembrei que exatamente minhas duas filhas que falam um inglês impecável, aprendido em um ano de intercâmbio na Inglaterra e nos Estados Unidos respectivamente, quando chegam ao exterior, em nossas viagens, não abrem a boca. Sou eu quem tem que tomar a frente e em meu deficiente inglês fonético e auditivo tenho que tentar me comunicar, sendo que para fazer isso não tenho o menor pudor, a menor vergonha de errar.

Sentado ali naquele restaurante, mesmo estando conversando com minha mulher, pensei só comigo: Poderia voltar a estudar agora, aos 57 anos… Mas já não quero aprender mais muita coisa. O que não aprendi na infância ou na adolescência, não quero mais aprender…

Nessa hora, quando refleti sobre esse pensamento, comecei a fazer uma outra faxina interna, pois nunca é tarde para se aprender coisas importantes!

Não sei se pior ou melhor foi a constatação que tive logo depois dessa segunda faxina. Descobri que o exercício desse tipo de autoanálise, de reflexão sobre quem, o que, como e quando nós somos, acaba por enriquecer a nossa existência ou nos coloca frente a frente com nossas verdades e mentiras de maneira cruel. Pensando bem, isso não pode ser pior do que não ter consciência de sua própria realidade.

Depois de basqueteiro, tenista, escritor, cineasta, parlamentar, me descobri faxineiro de mim! Pelo menos economizo o dinheirinho que acabaria destinado a um desses renomados e caros analistas, para, no outono de minha vida, num futuro não muito distante, pagar uma atenciosa cuidadora. Quem sabe ela possa ser letrada em línguas e possa ensinar um pouquinho de inglês ou de francês para um velhinho simpático!

 

 

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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