Atos de Scrooge, palavras de Jesus

Revisava o argumento de um curta-metragem ficcional cujo enredo retrata um personagem bastante comum na vida de quase todas as pessoas, o desafeto, o adversário, o inimigo, o vilão, alguém que cujo todos os predicados são seus defeitos, pois eles são as únicas coisas relevantes em sua personalidade.

Já havia relacionado um predicado infame com cada letra do alfabeto, para adjetivar o indigitado: Argamandel, bilontra, canalha, desonesto, escroque, frasqueiro, ganancioso, hipócrita, ignóbil, joldreiro, larápio, mesquinho, nécio, ordinário, patife, quezilento, ribaldo, soez, torpe, usurpador, velhaco, xexelento e zangado.

Estava escolhendo alguns icônicos personagens da literatura nos quais pudesse basear a pesquisa para o desenvolvimento do tal personagem, quando meu telefone tocou.

Um senhor dizia ao telefone que leria para mim um versículo da Bíblia, e antes que eu dissesse que não poderia atende-lo, ele foi logo falando: “Atos dos Apóstolos, 17:11. Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo.”

Ao final ele me explicou do que se travava o tal versículo. Disse que aquela passagem servia para alertar os fiéis de que todos os ensinamentos e orientações, que precisassem de Deus, poderiam ser encontradas na Bíblia, que o livro sagrado é o manual para o bem viver das pessoas.

Eu que estava pesquisando sobre vilões, seres abjetos, personagens repugnantes, já havia relacionado Iago, de Otelo; Javert, de Os miseráveis; o porco Napoleão, de A Revolução dos bichos; Fernand Mondego, de O conde de Monte Cristo; Fiquei imaginando quantos daqueles tipos haviam na Bíblia!

Foi aí que me lembrei que no ano passado, motivado pela desagradável convivência com uma figura com todos estes predicados, eu havia escrito um artigo comparando-o a Ebenezer Scrooge, imortalizado por Charles Dickens em Um conto de natal. Um personagem repugnantemente, avarento, autoritário, irascível, hipócrita, alguém a quem nem mesmo os três fantasmas da história, conseguiriam redimir.

Nessa hora entendi que se eu desejava realizar um projeto cinematográfico relevante, de sucesso, algo pra ganhar prêmio, deveria retratar o personagem central da obra como alguém que gosta de ser um biltre, que não tem amigos verdadeiros, que não valoriza nem a família, alguém como Scrooge, um ser vil, patife, torpe, como aquele nosso “conterrâneo”, cuja história certamente terá um desfecho triste como sua própria vida, fim comum a esse tipo de personagem, que só atinge a redenção por benevolência, pelo perdão de alguma alma caridosa.

Como já havia acontecido antes, quando o tal senhor ligou para ler pra mim um trecho da Bíblia, meu trabalho foi interrompido novamente quando meu netinho, o Theo, empunhando um brinquedo, entrou na sala onde eu estava. Era um boneco do Coringa, arqui-inimigo do Batman. Ele olhou para mim, fez uma cara engraçada, arregalou os olhos e dando um sorriso rasgado, como o do Coringa, se jogou sobre mim e brincamos por algum tempo.

Quando ele saiu, chispando como entrou, me dei conta que fui eu quem deu a ele o tal boneco. Lembrei inclusive do discurso que fiz ao explicar-lhe quem era o Coringa, o que era um vilão, e a relação entre heróis e vilões. Tudo bem que ele é uma criança, mas já tem bastante noção do que é certo e o que é errado.

Depois de lembrar do que eu ensinei para o meu netinho sobre o Coringa, vi que eu estava errado em não relevar as vilanias do “nosso” Ebenezer Scrooge. Lembrei também do senhor que me orientou a procurar as respostas dos problemas na Bíblia, o que me remeteu imediatamente a Lucas, 6:29, que diz literalmente: “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra…” Foi então que resolvi escrever esse texto para dizer ao tal desafeto que o perdoo, até porque nem ele, nem ninguém, nem nada, vale o pesar.

Nessa hora, as palavras de dois de meus heróis, Pessoa e Quintana, me vieram a mente: “Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”, “Eles passarão, eu passarinho.”

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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