Joaquim Haickel
8 de novembro de 2025
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Há algum tempo, participando de uma entrevista, me foi perguntado quem seriam os meus ídolos. Naquela ocasião certamente eu devo ter falado sobre ícones das artes, da filosofia e da política, nem me lembro bem ao certo.
Hoje, arrumando a sala que eu tenho como uma espécie escritório, onde guardo documentos, fotografias e objetos que contam pedaços da minha vida, a pergunta voltou sozinha, assim, do nada, como quem atravessa o tempo e instalou-se na minha cabeça: Quem são os meus ídolos?
Percorri, mentalmente, as estradas que formam o mapa da minha existência. Lembrei de pessoas comuns que me marcaram pela simplicidade, e de outras que foram para mim como um farol em noite sem estrelas, bússola em trajeto desconhecido e lanterna em beco escuro. Recordei aqueles que passaram rápido e os que me acompanharam por quase toda a jornada. Alguns me deram apenas exemplos, outros amor e outros me fizeram sonhar.
No meio dessa viagem íntima, uma voz dentro de mim interrompeu: “Escolhe apenas um. Um só.”
Foi assim que me sentei à mesa, abri o computador e comecei a escrever para justificar a minha escolha. Não seria qualquer um. É o único que, para mim, está antes e acima de todos.
Primeiro, preciso dizer: não acredito em religiões. Conheço muitas, algumas a fundo, mas não deposito nelas minha fé ou minha confiança. Vejo as religiões como construções históricas, psicológicas e sociais voltadas ao controle das pessoas. Respeito-as e quem as segue, mas não me submeto às suas amarras.
Segundo, não tenho certeza de que o meu ídolo existiu de fato. E, se existiu, não sei se foi como contam. Isso, para mim, importa menos do que o personagem que o nome evoca: uma figura tão carregada dos valores que busco, de dúvidas que reconheço como humanas, que sua existência histórica é secundária diante da força da ideia de sua vida.
Terceiro, minha admiração não nasce dos milagres ou feitos extraordinários que lhe atribuem, mas do fato de que quase tudo que sei sobre ele, eu aceitaria vivenciar. Quase tudo.
A essa altura, acredito que você já sabe de quem falo. Mas não espere idolatria cega e apaixonada de minha parte. Duvido dele às vezes; duvido da história oficial. Ainda assim, tenho a convicção de que, se existiu alguém digno de ser reverenciado, esse alguém foi ele.
Joaquim Haickel
5 de novembro de 2025
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Anastásio Zvgoli, chamado carinhosamente de Tásso, nascera em Kolonaki, bairro localizado no centro de Atenas, encosta do monte Likabettus e vizinho da praça Syntagma. O contraste era gritante: ruas arborizadas, cafés requintados e edifícios neoclássicos conviviam com as cicatrizes da guerra iminente. Em 1941, quando os alemães ocuparam a Grécia, o brilho da cidade clássica foi sufocado pela marcha dura das botas da Wehrmacht.
Tásso tinha 13 anos quando a infância lhe foi roubada. Participava de pequenos levantes de rua contra as tropas de ocupação: paus, pedras, garrafas improvisadas em coquetéis Molotov. Não era soldado, mas adolescente inflamado pela indignação. Foi numa dessas escaramuças que uma patrulha da Gestapo o prendeu junto com outros meninos do bairro — muitos deles judeus, vizinhos e amigos com quem partilhava os pátios e as ruelas de Kolonaki.
Sem documentos, confundido com os colegas judeus, acabou deportado. O destino: Dachau, campo de concentração no coração da Alemanha.
Dachau não era apenas um campo: era um modelo de horror. Criado em 1933, servira como laboratório para todo o sistema de extermínio que os nazistas aperfeiçoariam nos anos seguintes. Quando Tásso chegou, aos 13 anos, a primeira visão foi de torres de vigilância e cercas eletrificadas. A segunda foi o cheiro: uma mistura de fumaça, suor e morte.
Para sobreviver, reinventou-se. Assumiu o nome de um amigo morto no dia da captura. Tornou-se Samuel, judeu. O sobrenome, Gobel, tomou emprestado de um rabino ancião que lhe falava, em sussurros, que o nome de sua família significava “guerreiro de Deus”. Assim, Anastásio Zvgoli desapareceu, e Samuel Gobel nasceu — não por escolha, mas por necessidade.
Durante três anos viveu na fome e de esperança. O peso caiu a menos de 35 quilos. Aprendeu a se esgueirar entre grupos de prisioneiros, a dividir restos de pão duro e a beber água suja das calhas. Sobreviveu a espancamentos, ao frio e às epidemias. Viu amigos caírem sem forças durante a contagem matinal.
Em abril de 1945, quando as tropas americanas libertaram Dachau, Samuel estava à beira da morte. Soldados bem-intencionados quase o mataram ao oferecer feijão em conserva e chocolate. Foi salvo por um sargento ítalo-americano que sabia que um corpo em jejum prolongado por anos não suportaria alimentos sólidos. Tratado com soro e dieta líquida, lentamente Samuel voltou à vida.
Após meses de recuperação, Samuel retornou a Atenas. Encontrou alguns familiares, mas não a antiga vida. Kolonaki já não era um lar: era um fantasma. Voltou à Alemanha, depois foi para Viena, movido pelo desejo de ajudar na reconstrução da Europa e pelo acaso da sobrevivência.
Em Viena conheceu pessoas ligadas a Simon Wiesenthal, o arquiteto austríaco que dedicaria a vida a caçar nazistas fugitivos. Wiesenthal reconheceu naquele jovem a coragem necessária para algumas missões. Samuel passou a colaborar com operações clandestinas que transportavam judeus da Tchecoslováquia, Hungria e Romênia para a Áustria. Foram dezenas de missões, sempre muito arriscadas.
Numa delas, foi capturado por soldados ucranianos e levado para a mina de Jáchymov, na Tchecoslováquia. O local, controlado pelos soviéticos, servia tanto de prisão política quanto de campo de trabalhos forçados para extrair urânio. Era uma nova versão do inferno: túneis úmidos, radiação invisível, homens reduzidos a escravos. Ali permaneceu por dois anos.
Um guarda ucraniano, de origem cristã, que simpatizou com o grego disfarçado de judeu, facilitou sua fuga. Samuel atravessou florestas, escondeu-se em celeiros, bebeu de córregos. Quarenta dias depois, alcançou a Áustria. Estava vivo, mais uma vez.
Calejado, mais uma vez voltou para casa, em Atenas, mas logo decidiu migrar. Embarcou rumo à América do Sul. Por acaso do destino, após uma parada forçada no porto de Paranaguá, desembarcou em Santos e imediatamente foi para São Paulo.
Na metrópole, tentou se inserir na comunidade judaica. Mas não era judeu, e a farsa de sua identidade pesava. Vivia como vendedor ambulante, vendendo tecidos, quinquilharias, qualquer coisa que pudesse render algumas moedas. Ainda assim, não se sentia ambientado. O passado de Dachau e Jáchymov não o abandonava.
Resolveu buscar novos horizontes. Pretendia chegar a Manaus, mas uma avaria no navio o deixou em São Luís do Maranhão. E foi ali, na pequena capital de ruas coloniais, que encontrou paz. Tornou-se comerciante de confecções, fez amigos e conheceu Maria Lúcia, companheira de toda a vida. Descobriu também o futebol de salão, no qual se destacaria como um dos maiores árbitros da modalidade no mundo.
A princípio, São Luís, que era apenas escala, tornou-se porto definitivo, mas logo deu lugar a outro destino. Samuel e sua pequena família passaria a morar em Brasília, onde trabalharia como gerente em uma grande loja de departamentos de um rico empresário grego.
Em 1966, numa viagem de compras a São Paulo, Samuel caminhava pelos corredores do Mercado Municipal. O cheiro de frutas, especiarias e peixes contrastava com a memória de fome que jamais o abandonava.
De repente, seus olhos pousaram em um homem alto, de cabelos claros e olhar glacial. A postura militar, o sotaque austríaco ao falar alemão com outro homem. Samuel congelou: conhecia aquele rosto dos arquivos de Wiesenthal. Era Franz Stangl, o “comandante branco”, dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibór, responsável pela morte de quase 900 mil pessoas.
O coração disparou. Mas Samuel sabia que não poderia agir sozinho. Procurou membros da comunidade judaica e pediu ajuda para contatar Simon Wiesenthal. Dias depois, a rede de caçadores de nazistas estava em alerta.
A vigilância confirmou: Stangl vivia no Brasil, trabalhando na Volkswagen em São Bernardo do Campo. A pressão internacional cresceu. Até que, em fevereiro de 1967, a polícia brasileira o prendeu. O mundo tomou conhecimento: um dos maiores carrascos do Holocausto estava sob custódia.
Samuel não celebrou em público. Não deu entrevistas, não reivindicou protagonismo. Voltou para Brasília, para sua pacata vida para seus amigos e sua família. Para os vizinhos, na SQS 108 e para seus funcionários e clientes na BIBABÔ, Ele era apenas um imigrante grego discreto. Mas, na memória da História, foi mais que isso, foi um sobrevivente que ousou reconhecer um rosto em meio à multidão e decidiu não calar.
Em 1970, Stangl foi julgado em Düsseldorf e condenado à prisão perpétua, mas morreu no cárcere de ataque cardíaco, em 1971.
Samuel Gobel, nascido Anastásio Zvgoli, vivera dois infernos — o nazismo e o comunismo — e encontrara no Brasil o seu paraíso possível. Ele não buscou glória. Sua vitória foi silenciosa e ele soube impedir que o esquecimento triunfasse sobre a memória.
No final de sua vida, voltou a viver na cidade que havia escolhido para ser sua: São Luís do Maranhão, onde pode enfim, em paz e realizado, conviver com a esposa, o filho, os netos, os parentes e os amigos esquecer os infernos por onde passou.
Joaquim Haickel
3 de novembro de 2025
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Hoje, ao despertar, senti uma sensação estranha. Era como se uma frase martelasse minha cabeça. Como se alguém tivesse sussurrado em meus ouvidos aquelas palavras enquanto eu dormia: “A hora de entrar até que pode ser sorte, mas a hora de sair tem que ser por sabedoria”.
Analisei bem essa frase e ela parece conter em si a síntese de uma ética do tempo e da decisão. Nela parecem coexistir duas forças fundamentais da condição humana: o acaso, que nos impulsiona, e a sabedoria, que nos limita. Entrar, iniciar uma relação, um projeto, uma causa, é, muitas vezes, fruto da coincidência, da oportunidade, da curiosidade, de pura sorte. Já sair, encerrar, concluir, retirar-se, é o exercício supremo da razão prática, é o momento em que a consciência supera o impulso.
Na tradição clássica, Aristóteles chamaria essa sabedoria de phronesis: a prudência que guia a ação humana entre o excesso e a falta. Em nossa vida, o acaso é inevitável, é o motor invisível que nos lança aos começos. Mas apenas a sabedoria é capaz de impor forma ao caos dos acontecimentos. Entrar ou iniciar por sorte é natural; permanecer ou sair por discernimento é a consubstanciação da humanidade. É nesse instante de saída que se mede o verdadeiro caráter do indivíduo: quem não sabe sair, não domina o tempo, e quem não domina o tempo, é dominado por ele.
Sêneca lembrava que “a sorte decide o início, mas a virtude decide o fim”. O homem sábio não se desespera diante do acaso; ele o acolhe, mas não se submete a ele. Saber sair, portanto, é o gesto ético por excelência, é reconhecer o ponto exato em que o ciclo da experiência se completa, antes que a permanência se torne decadência. É a arte de não se deixar vencer pelo apego.
No plano prático, essa teoria aplica-se a tudo: ao amor, à política, à criação artística. O amor nasce do acaso do encontro, mas só permanece enquanto houver sabedoria para sustentá-lo. O político ascende pela fortuna, mas cai quando ignora o tempo de sair dela. O artista cria pelo impulso, mas a grandeza da obra está em saber o instante do último traço, do desapego de impor ao texto um ponto final, e ao diretor um corte definitivo. A sabedoria é, afinal, a consciência dos limites. Só quem os reconhece é verdadeiramente livre.
Em suma, a frase que martelava em minha mente, propõe uma filosofia da ação temporal: a sorte abre as portas, mas a sabedoria escolhe quando fechá-las. O início é dado pela vida; o fim é a nossa resposta. É nesse intervalo — entre o impulso e a lucidez — que o ser humano realiza a sua verdadeira liberdade, é quando ele realmente vive.
Perfil
“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.
Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.
Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.
Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.
Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.
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