Encontro no Mercado

Anastásio Zvgoli, chamado carinhosamente de Tásso, nascera em Kolonaki, bairro localizado no centro de Atenas, encosta do monte Likabettus e vizinho da praça Syntagma. O contraste era gritante: ruas arborizadas, cafés requintados e edifícios neoclássicos conviviam com as cicatrizes da guerra iminente. Em 1941, quando os alemães ocuparam a Grécia, o brilho da cidade clássica foi sufocado pela marcha dura das botas da Wehrmacht.
Tásso tinha 13 anos quando a infância lhe foi roubada. Participava de pequenos levantes de rua contra as tropas de ocupação: paus, pedras, garrafas improvisadas em coquetéis Molotov. Não era soldado, mas adolescente inflamado pela indignação. Foi numa dessas escaramuças que uma patrulha da Gestapo o prendeu junto com outros meninos do bairro — muitos deles judeus, vizinhos e amigos com quem partilhava os pátios e as ruelas de Kolonaki.
Sem documentos, confundido com os colegas judeus, acabou deportado. O destino: Dachau, campo de concentração no coração da Alemanha.
Dachau não era apenas um campo: era um modelo de horror. Criado em 1933, servira como laboratório para todo o sistema de extermínio que os nazistas aperfeiçoariam nos anos seguintes. Quando Tásso chegou, aos 13 anos, a primeira visão foi de torres de vigilância e cercas eletrificadas. A segunda foi o cheiro: uma mistura de fumaça, suor e morte.
Para sobreviver, reinventou-se. Assumiu o nome de um amigo morto no dia da captura. Tornou-se Samuel, judeu. O sobrenome, Gobel, tomou emprestado de um rabino ancião que lhe falava, em sussurros, que o nome de sua família significava “guerreiro de Deus”. Assim, Anastásio Zvgoli desapareceu, e Samuel Gobel nasceu — não por escolha, mas por necessidade.
Durante três anos viveu na fome e de esperança. O peso caiu a menos de 35 quilos. Aprendeu a se esgueirar entre grupos de prisioneiros, a dividir restos de pão duro e a beber água suja das calhas. Sobreviveu a espancamentos, ao frio e às epidemias. Viu amigos caírem sem forças durante a contagem matinal.
Em abril de 1945, quando as tropas americanas libertaram Dachau, Samuel estava à beira da morte. Soldados bem-intencionados quase o mataram ao oferecer feijão em conserva e chocolate. Foi salvo por um sargento ítalo-americano que sabia que um corpo em jejum prolongado por anos não suportaria alimentos sólidos. Tratado com soro e dieta líquida, lentamente Samuel voltou à vida.
Após meses de recuperação, Samuel retornou a Atenas. Encontrou alguns familiares, mas não a antiga vida. Kolonaki já não era um lar: era um fantasma. Voltou à Alemanha, depois foi para Viena, movido pelo desejo de ajudar na reconstrução da Europa e pelo acaso da sobrevivência.
Em Viena conheceu pessoas ligadas a Simon Wiesenthal, o arquiteto austríaco que dedicaria a vida a caçar nazistas fugitivos. Wiesenthal reconheceu naquele jovem a coragem necessária para algumas missões. Samuel passou a colaborar com operações clandestinas que transportavam judeus da Tchecoslováquia, Hungria e Romênia para a Áustria. Foram dezenas de missões, sempre muito arriscadas.
Numa delas, foi capturado por soldados ucranianos e levado para a mina de Jáchymov, na Tchecoslováquia. O local, controlado pelos soviéticos, servia tanto de prisão política quanto de campo de trabalhos forçados para extrair urânio. Era uma nova versão do inferno: túneis úmidos, radiação invisível, homens reduzidos a escravos. Ali permaneceu por dois anos.
Um guarda ucraniano, de origem cristã, que simpatizou com o grego disfarçado de judeu, facilitou sua fuga. Samuel atravessou florestas, escondeu-se em celeiros, bebeu de córregos. Quarenta dias depois, alcançou a Áustria. Estava vivo, mais uma vez.
Calejado, mais uma vez voltou para casa, em Atenas, mas logo decidiu migrar. Embarcou rumo à América do Sul. Por acaso do destino, após uma parada forçada no porto de Paranaguá, desembarcou em Santos e imediatamente foi para São Paulo.
Na metrópole, tentou se inserir na comunidade judaica. Mas não era judeu, e a farsa de sua identidade pesava. Vivia como vendedor ambulante, vendendo tecidos, quinquilharias, qualquer coisa que pudesse render algumas moedas. Ainda assim, não se sentia ambientado. O passado de Dachau e Jáchymov não o abandonava.
Resolveu buscar novos horizontes. Pretendia chegar a Manaus, mas uma avaria no navio o deixou em São Luís do Maranhão. E foi ali, na pequena capital de ruas coloniais, que encontrou paz. Tornou-se comerciante de confecções, fez amigos e conheceu Maria Lúcia, companheira de toda a vida. Descobriu também o futebol de salão, no qual se destacaria como um dos maiores árbitros da modalidade no mundo.
A princípio, São Luís, que era apenas escala, tornou-se porto definitivo, mas logo deu lugar a outro destino. Samuele sua pequena família passaria a morar em Brasília, onde trabalharia como gerente em uma grande loja de departamentos de um rico empresário grego.
Em 1966, numa viagem de compras a São Paulo, Samuel caminhava pelos corredores do Mercado Municipal. O cheiro de frutas, especiarias e peixes contrastava com a memória de fome que jamais o abandonava.
De repente, seus olhos pousaram em um homem alto, de cabelos claros e olhar glacial. A postura militar, o sotaque austríaco ao falar alemão com outro homem. Samuel congelou: conhecia aquele rosto dos arquivos de Wiesenthal. Era Franz Stangl, o “comandante branco”, dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibór, responsável pela morte de quase 900 mil pessoas.
O coração disparou. Mas Samuel sabia que não poderia agir sozinho. Procurou membros da comunidade judaica e pediu ajuda para contatar Simon Wiesenthal. Dias depois, a rede de caçadores de nazistas estava em alerta.
A vigilância confirmou: Stangl vivia no Brasil, trabalhando na Volkswagen em São Bernardo do Campo. A pressão internacional cresceu. Até que, em fevereiro de 1967, a polícia brasileira o prendeu. O mundo tomou conhecimento: um dos maiores carrascos do Holocausto estava sob custódia.
Samuel não celebrou em público. Não deu entrevistas, não reivindicou protagonismo. Voltou para Brasília, para sua pacata vida para seus amigos e sua família. Para os vizinhos, na SQS 108 e para seus funcionários e clientes na BIBABÔ, Ele era apenas um imigrante grego discreto. Mas, na memória da História, foi mais que isso, foi um sobrevivente que ousou reconhecer um rosto em meio à multidão e decidiu não calar.
Em 1970, Stangl foi julgado em Düsseldorf e condenado à prisão perpétua, mas morreu no cárcere de ataque cardíaco, em 1971.
Samuel Gobel, nascido Anastásio Zvgoli, vivera dois infernos — o nazismo e o comunismo — e encontrara no Brasil o seu paraíso possível. Ele não buscou glória. Sua vitória foi silenciosa e ele soube impedir que o esquecimento triunfasse sobre a memória.
No final de sua vida, voltou a viver na cidade que havia escolhido para ser sua: São Luís do Maranhão, onde pode enfim, em paz e realizado, conviver com a esposa, o filho, os netos, os parentes e os amigos esquecer os infernos por onde passou.
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