A gota d’água e o ponto final.

Carta de Oscar Wilde a seu amante, Lorde Alfred Douglas, o Boise.

Querido Bosie,
Ao contrario das outras vezes, desta, procurei simplesmente não reagir, não revidar, não responder de forma meramente reflexa. Procurei pensar bastante, deixar passar os dias. Analisei e refleti sobre o caso todo. Fiz um retrospecto, uma mea culpa até chegar a uma conclusão que espero, seja a mais correta e definitiva.
Agora, depois do que aconteceu na última terça-feira, eu tive a certeza mais que absoluta de tudo que você é capaz de fazer, de até onde você é capaz de ir. Certeza essa que eu já deveria ter tido há muito tempo, mas que só tive agora devido ao fato de eu ser um sujeito muito teimoso, muito cabeça dura, porque qualquer pessoa normal já teria facilmente constatado, tempos atrás, que é impossível ter um relacionamento baseado em confiança, respeito, entrega e devoção com alguém como você.
O que realmente aconteceu não importa. O que importa é a armação de toda a mentira, o que importa é toda a dissimulação que você arquitetou, é a sua incapacidade de se manter leal, de ser coerente.
Mas para mim não faz mais nenhuma diferença. Tudo que já havia acontecido, todas as mentiras e dissimulações já bastava. Tudo que já acontecera antes já fora o suficiente há muito tempo, só eu insistia nessa novela.
Eu é que nunca quis enxergar, mas a nossa história já havia sido escrita há muitos anos atrás, a História de Peter e Mary Farm: No condado de Yorkshire havia um homem chamado Peter Farm. Peter tinha uma pequena propriedade e uma mulher mais jovem que ele. Eles viviam muito bem, na medida de suas posses e de suas possibilidades. Apesar da grande diferença de idade entre eles, a única coisa que Peter exigia da mulher era que não fizesse nada que ela mesma pudesse imaginar que ele, o marido, não concordaria. Certo dia, as irmãs de Mary passaram em sua casa e a convidaram para fazer um piquenique no campo, e ela foi. Quando ela voltou para casa encontrou suas coisas arrumadas no meio da sala e Peter sentado numa cadeira. Ele mandou-a ir embora com as irmãs e não mais voltar. Ela indagou o porquê: “Só porque fui com as minhas irmãs fazer um passeio?” – “De modo algum. Mas pelo fato de você, na volta do passeio, ter pulado a cerca do pomar dos Grhams e tirado algumas pêras para trazer de presente para mim.” – “ Mas só por isso?” – “Lógico que não! Eu estava por lá conversando com James Grhams e ouvi o que você disse para suas irmãs: Não contem para o Peter que peguei estas pêras do pomar dos Grhams, ele não concordaria com isso. Vamos dizer a ele que compramos de uma simpática velhinha na estrada. “
Bosie, querido, o que eu quero é ser feliz, é encontrar alguém que possa cuidar de mim, alguém em quem possa confiar. E está muito claro que é impossível ser feliz com alguém que diz uma coisa e faz outra, com alguém que dissimula e tenta enganar até ao espelho. Está muito claro que se você é incapaz de cuidar de si ou de quem quer que seja, então como é que vai cuidar bem de mim?
Com a alma atormentada, a mente embriagada e o coração embargado, me despeço,
Oscar.

A importância do perdão

Aconteceu em Yecheng, um remoto vilarejo entre a cordilheira do Himalaia e o deserto de Takli Makan, na China Imperial, por volta do ano 600 depois de Cristo: Após a aula com o mestre Mu Lau, o pequeno Xun Li entra em casa, batendo fortemente seus pés no chão. Kim Jiu, seu avô, que estava indo para o quintal fazer alguns serviços na horta, ao ver aquilo chama o menino para uma conversa.
Xun, de oito anos de idade, o acompanha desconfiado e antes que o avô dissesse alguma coisa, fala irritado: “- Avô, estou com muita raiva. Jan Jian não deveria ter feito isso comigo. Desejo tudo de ruim para ele”.
Seu avô, um homem simples, mas cheio de sabedoria, escuta, calmamente, o neto que continua a reclamar: “- Jan me humilhou na frente dos meus amigos. Não aceito. Gostaria que ele ficasse doente sem poder sair de casa”.
O avô escuta tudo calado enquanto caminha até um deposito onde guardava entre outras coisas, um saco cheio de carvão. Levou o saco até o fundo do quintal e o menino, calado, o acompanhou.
Xun vê o saco ser aberto e o seu conteúdo ser derramado no chão e antes mesmo que ele pudesse fazer qualquer pergunta, o avô lhe propõe algo: “- Honorável neto, faz de conta que aquela camisa branquinha que está secando no varal é o seu amiguinho Jan e cada pedaço de carvão é um mau pensamento seu, endereçado a ele. Quero que você jogue todo esse carvão na camisa, até o último pedaço. Depois eu volto para ver como ficou”.
Xun achou que seria uma brincadeira divertida e pôs mãos à obra. O varal com a camisa estava longe do menino e poucos pedaços do carvão acertavam o alvo. Uma hora se passou até que Xun terminasse a tarefa. O avô que, entre uma poda e outra, espiava tudo de longe se aproxima do menino e lhe pergunta: “- Como está honorável neto se sentindo agora? – Estou cansado avô, mas estou alegre porque acertei muitos pedaços de carvão na camisa”.
Kim olha profundamente para o menino, que continua sem entender a razão daquela brincadeira, e carinhosamente lhe fala: “- Venha comigo até o meu quarto, quero lhe mostrar uma coisa”.
O neto acompanha o avô e é colocado na frente de um grande espelho onde pode ver todo o seu corpo. Que susto! Só conseguia enxergar seus dentes, quando sorria, e o branco dos olhinhos, o resto tudo, estava preto de fuligem, da brincadeira com o carvão.
Kim então, lhe diz ternamente: “– Meu querido neto caçula, você viu, a camisa quase não ficou suja; mas, olhe só para você. O mau que desejamos aos outros é como o que lhe aconteceu. Por mais que possamos atrapalhar a vida de alguém com nossos pensamentos, a borra, os resíduos, a fuligem, ficam sempre em nós mesmos. Espero que tenha aprendido a lição. Agora, honorável neto vai se lavar e volta aqui”.
O pequeno Xun Li sai cabisbaixo, e obedece ao seu sábio avô, lava-se e volta a sua presença: “– Agora honorável neto vai ao varal, recolhe todo aquele carvão no saco e guarda no deposito. Quando tiver acabado ira descobrir que precisará lavar-se outra vez, depois disso honorável neto poderá ir brincar com seu amigo Jan Jian”.

* Crônica adaptada de uma estória antiga, mas pautada em acontecimentos recentes.

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

Busca

E-mail

No Twitter

Posts recentes

Comentários

Arquivos

Arquivos

Categorias

Mais Blogs

Rolar para cima