Metas alcançadas, dever cumprido.

Há muitos anos conheci um garoto que sofria de uma forma de dislexia – lia devagar, gaguejava muito, trocava as palavras e só escrevia com letras de forma – mas mesmo assim o danado lia tudo que estivesse ao alcance dos olhos.

Não podia ver uma placa, uma lista telefônica ou uma bula de remédio que pegava pra ler, mesmo que não entendesse lhufas, mas se divertia com os nomes das ruas, os sobrenomes das pessoas e com as palavras complicadas dos nomes das doenças e das substancias químicas.

Literariamente devorou os livros que havia em sua casa, inclusive os dicionários. A mãe que cedo lhe comprou “O Mundo da Criança” e “O Tesouro da Juventude”, mais tarde compraria as enciclopédias “Delta Larousse” e “Britânica”. Seu pai tinha uns livros esquisitos: “Relatório da comissão Warren”, sobre o assassinato do presidente Kennedy, “Como influenciar as pessoas e fazer amigos” precursor dos livros de auto-ajuda, “Manual de suinocultura”… E o pequeno lia tudo como se fossem gibis, fotonovelas ou romances, mas dava preferência aos que tinham ilustrações.

Um dia ele ganhou um livro que mudaria sua vida: “Contos de Grimm”. Foi como se um mundo novo se descortinasse. Mesmo com dificuldade pra ler, e o pai cobrava-lhe muito isso, nosso personagem viu que era aquilo que ele gostaria de fazer quando crescesse. Iria contar estórias. Escrever livros.

Dez anos depois aquele garoto ganharia dois prêmios literários. Um instituído pela prefeitura de sua cidade e o outro pela secretaria de cultura de seu estado, que mais tarde publicaria seu livro.

E nosso amiguinho não parava de ler. Um dia lendo a Barsa, verbete por verbete, na letra “C” deparou-se com uma palavra que o fez tremer. Constituinte. Ao ler o significado e o que faziam seus membros, ele respirou fundo e disse pra si mesmo que se havia uma coisa que gostaria de fazer na vida era uma lei que regesse todas as demais e regulasse, de maneira geral e harmônica, as relações entre as pessoas e as instituições. Para ele quem fizesse isto com correção e competência, estaria apenas alguns degraus abaixo dos heróis mitológicos que conhecera nos livros.

Quinze anos se passaram e nosso personagem era deputado constituinte. Não foi um deputado brilhante nem se destacou, até porque suas circunstancias políticas, sua pouca idade e sua inexperiência não permitiam. Mas o menino havia chegado onde se propunha chegar e estava acumulando aprendizado.

Um dia seu pai chegou a casa com uma imensa caixa de papelão. Era o primeiro televisor da família. O robusto móvel de madeira e vidro da marca Telefunken hipnotizava a todos, principalmente ao nosso amiguinho que então descobriu uma outra maneira de aprender e de se comunicar com o mundo.

Ainda no pré-primário, nosso garoto foi levado a encenar, ao vivo, uma pecinha teatral na única emissora de televisão comercial da cidade, onde seus tios trabalhavam. Encantado com aquele mundo de cabos, luzes e câmeras, perguntou ao pai a quem pertencia aquilo tudo e o pai, levo-o para conhecer os donos. Ao sair de lá, prometeu pra si mesmo que um dia seria dono de uma emissora de televisão.

Vinte anos depois daquilo ele conquistou seu intento.

Mas voltemos para meados dos anos 70. Nosso rapaz com treze pra quatorze anos, já havia descoberto a literatura e a televisão, agora estava sendo arrebatado por uma outra paixão. O cinema.

Lembrando de quando sua mãe lia estórinhas para fazê-lo dormir, sua avó soletrava-lhe a bíblia, o velho motorista de seu pai contava seus causos e dele que não desgrudava da frente da TV assistindo tudo que passava, intuitivamente, percebeu que através de sua incrível capacidade de ver e de ouvir, aprendia mais rápido e melhor. Os audiovisuais através da televisão e do cinema ocupavam agora quase todo seu tempo.

Certa vez foi assistir “A Mulher Faz o Homem”, dirigido por Frank Capra. Nele um jovem e inexperiente senador, tem que defender uma reserva ambiental que alguns queriam destruir para construção de uma usina e para isso tem que enfrentar velhas raposas da política americana.

Durante 48 horas o personagem criado por Capra, discursa no plenário do senado americano, obstruindo a votação que selaria o destino do parque.

Meu amigo que entrara naquela sala de exibição com uns vinte anos, saiu de lá com uns duzentos, dizendo pra si mesmo que se um dia lhe fosse dada a possibilidade de fazer algo parecido com o que vira ali, poderia sentir a magnífica sensação que o personagem interpretado pelo ator James Stuart sentiu no final daquele filme.

Vinte e cinco se passaram e há duas semanas, já não tão inexperiente como antes, aquele menino agora homem feito, teve a rara oportunidade de colocar em pratica o que aprendera naquele filme de Capra. E o fez.

Metas alcançadas e a magnífica sensação de honra e de dever cumprido.

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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