Pelo Ouvido

José Louzeiro
Especial para O Estado

A Produção é da Guarnicê e da Mutantes Filmes. Direção de Joaquim Haickel, além de cineasta, escritor, poeta e político.

Primeira novidade deste curta que merece extensos comentários: há somente dois atores em cena – Amanda Acosta, como Katie e Eucir de Souza, como Charlie, além do personagem subjetivo Marcos, bem plantado conflito na trama amorosa.

Outro aspecto a ser registrado, de imediato, neste premiadíssimo trabalho de Haickel é a habilidade do cineasta na arte dos cortes, coisa essa que o coloca como pupilo privilegiado de Stanley Kubrick em filmes importantes como Laranja Mecânica, Barry Lindon e Uma Odisséia no Espaço. Kubrick também começou dirigindo curtas, em 16mm, depois de ter sido, durante quatro anos, fotógrafo da revista “Look”.

O desafiador trabalho de Haickel é marcado pela sutileza das ações, coisa essa que transforma o filme de textura erótica num poema de luz, som e cores.

Pelo Ouvido, baseado no conto de mesmo nome, é a metáfora do amor marcado pelo ineditismo das etapas que permeia, coisa de um diretor que, com a segurança do veterano, demonstra invulgar cultura cinematográfica.

A história de Pelo Ouvido, numa leitura simples, também é desafiadora: o namorado de Katie é o escultor que, vítima de um acidente de carro (corte nos ruídos da violenta batida) fica cego, surdo e mudo. Katie não se afasta dele, pelo contrário. Ama-o ainda mais.

Ela é funcionária de uma empresa de serviços, mas seu cotidiano profissional não interessa ao cineasta. Interessa o que ela fala pelo telefone com o colega e admirador Marcos, pois este deseja conversar de perto a fim de demonstrar fisicamente o interesse.

Há um corte belíssimo e Haickel leva a câmera para o atelier/sala do escultor que trabalha na modelagem de uma peça.

Entre as ligações para tratar dos negócios na firma Katie dá esperança a Marcos de que, um dia, não sabe quando, se encontrariam. Após o trabalho ela vai para casa e para os braços do amado que a vê pelos “olhos dos dedos”, como se estes a esculpissem e Katie gosta de ser “esculpida”.

De maneira brilhante e incomum, o diretor dá a volta na temática mais difícil do nosso cinema: afastar o erótico da pornografia.

Com esse cuidado, Haickel demonstra sutileza no tratamento das imagens (fotografia de Cleisson Vidal) graças aos seus oportunos e bem instalados cortes.

A soma dessas sutilezas coloca Pelo Ouvido como miniatura de um longa bem realizado, pois o cineasta demonstra ter firmeza e consciência do que faz. As linhas do seu trabalho são bem dimensionadas, daí os prêmios que tem ganho, pois inovar na temática do amor não é coisa fácil.

Pelo Ouvido beira a pornografia, mas ergue-se saudável nas cores do amor puro, da satisfação de um casal que não se vê e se ama; ele e ela inspirados pelo sentimento que dignifica, embora haja a voz do demônio tentador (bem plantado conflito) com o nome de Marcos.

Em certo momento, Katie relaciona-se com o escultor ao mesmo tempo em que ouve (somente ela escuta) a fala provocante de Marcos. Aí o diretor deixa claro que ela, também, ama a voz de Marcos e, tocada com as palavras dele, torna-se ainda mais excitada nos braços do escultor.

A tentação é unicamente dela, pois a cegueira e a surdez protegem Charlie das dores e angústias do ciúme, na mesma medida em que torna mais quente o relacionamento na cama com ele, pois ela sabe estar sendo vista somente pelos seus “dedos”. Mas, numa leitura subliminar ela sente-se entregue aos dois, ao mesmo tempo.

Depois deste desafiador Pelo Ouvido, Joaquim Haickel está pronto para fazer sua estréia num longa-metragem. Tomara que isso não demore acontecer. Será bom para o cinema nacional que, atolado na mesmice, necessita, urgentemente, da presença de um inovador na chamada “Sétima Arte”.

Que bom que esse lugar possa estar reservado ao sutil, criativo e dinâmico Joaquim Haickel, cinéfilo e cineasta maranhense que faz sua estréia demonstrando invulgar talento ao lado de sua equipe composta ainda do co-roteirista Arturo Sabóia. Edição de Ângelo Capozzoli, direção de Arte e Produção de objetos de Fernanda Grandesso, figurino de Iraci de Jesus, e trilha sonora original de Ivo Ursini.

José Louzeiro é escritor, jornalista e membro da Academia Maranhense de Letras

3 comentários em “Pelo Ouvido”

  1. Muito bom mesmo o que diz o Louzeiro a respeito de seu filme, o que só me deixa mais curioso ainda em assisti-lo. Quando isso será possível? De qualquer forma, mesmo sem assistir seu filme, parabéns, muita gente que já o viu e que entende muito de cinema como o próprio Louzeiro, o Ubiratan, o Felix tem elogiado muito.

  2. Joaquim,

    Apesar de leiga, sou apreciadora da sétima arte e sempre soube do potencial de seu filme. Agora quem diz são os experts no assunto.
    Parabéns, seu filme é uma obra prima.

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Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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