Luto.

Não sei nem por onde começar, até porque já havia terminado. Falo dessa página em branco em minha frente, neste computador. Meu texto para esse domingo já estava feito e revisado.

Não sei por onde começar, porque nem acredito que seja preciso que eu comece a dizer o que tenho que dizer. Os cinco mil toques que meu amigo Ademir Santos, editor responsável pela pagina de opinião do Jornal O Estado do Maranhão onde uma versão reduzida deste texto será publicada, não seriam capazes de formar todas as palavras que eu precisaria para dizer o que tenho que dizer e já gastei até agora exatamente 599.

Não sei se começo pela tristeza ou pela indignação. Não sei se começo pelo remorso, pela culpa ou se conto apenas as coisas alegres, aquelas que realmente valem a pena serem contadas. Só sei que tenho que dizer algo, porque se não o fizer meu coração vai explodir e minha cabeça vai estourar. Pois bem, lá vai.

Na última sexta–feira, 18, por volta das dez horas da manhã, minha mãe entrou às pressas no escritório improvisado que tenho em sua casa, onde moro desde que me separei. Sua voz estava embargada, vinha chorando e atrás dela, meu motorista Marcelo, com os olhos tão arregalados que só se via o branco deles. Mamãe vinha me dizer que meu motorista, José Moraes Neto, irmão de Marcelo, que trabalha conosco desde 1982, estava tendo um infarto e se encontrava no hospital da Hapvida, na Avenida Kennedy.

Marcelo estava ao telefone com um dos filhos de Neto. Imediatamente peguei o telefone e pedi que ele passasse para o responsável pelo hospital. Ele o fez. Falei com uma senhora que foi logo me dizendo que não tinha certeza se o paciente estava tendo um infarto, somente depois dos exames isso poderia ser afirmado. Uma sanguinária burocrata da saúde privada.

Quis falar com o médico que o atendeu e ela me passou para um moço muito simpático e atencioso que afirmou que pelos sintomas, pelo estado do paciente, tudo indicava que era mesmo um infarto agudo do miocárdio, e em que pesasse estar sentindo dor, ele já estava sendo atendido e medicado.

Pedi que ele voltasse o telefone para a tal senhora, sempre interessada em dificultar o atendimento, e perguntei-lhe como fazer para ter certeza se o que ele estava tendo era realmente um infarto e ela me disse que só depois dos exames e com a presença de um cardiologista, pois o médico que havia falado comigo era apenas um clínico da emergência.

Perguntei-lhe quando o cardiologista poderia vê-lo, ao que ela respondeu-me, “hoje”, aí eu engrossei: “Como assim hoje!? Esperava que a senhora dissesse que ele já havia sido chamado e que estaria chegando em alguns minutos!” Ela respondeu que eles não têm um cardiologista de plantão e que só tem um médico desta especialidade. Pedi a ela então o telefone do médico que eu mesmo ligaria para ele e ela me disse que ela mesma ligaria e providenciaria tudo. Pedi que ela me ligasse de volta assim que falasse com o médico.

Como em quinze minutos ela não retornou a ligação, liguei para ela e quis saber do resultado, ao que ela me disse que o médico só poderia estar no hospital às quatorze horas. Mais uma vez perdi as estribeiras e ao estilo de meu pai – enquanto falava com aquela senhora ao telefone sentia o peso de substituí-lo no comando de minha família pressionando tanto meus ombros, que era como se a mola da cadeira cedesse ao peso – comecei a gritar com a moça, indignado… A princípio imaginei que ela tivesse ficado chocada com as palavras que eu lhe dizia ao telefone, mas agora vejo que ela já está acostumada a ouvir aquele tipo de coisa. Perguntei se ela não podia chamar outro médico ela disse que não. Perguntei-lhe se não havia outro tipo de exame ou de procedimento que ela pudesse fazer para atender o paciente e ela sempre dizia que não e colocava mil empecilhos e obstáculos. Foi aí que eu resolvi falar com Ana Maria Bacelar, do Centro Médico, para que ela atendesse Neto lá, em seu hospital e fizesse o que fosse possível por ele.

Falei com Ana e ficou acertado que ele poderia ser levado para lá. Liguei novamente para o hospital da Hapvida e falei novamente com a tal mulher e ela colocou mil dificuldades, disse que o paciente já estava sendo atendido, que estava estável, que apenas depois dos exames completos poderia se dizer que o caso era mesmo infarto e qual os procedimentos deveriam ser usados. Aceitei porque quis acreditar que ele só havia tido uma indisposição. Não queria que o meu fiel escudeiro estivesse mal.

Por volta das quatorze horas recebi uma ligação do atencioso médico que havia atendido Neto na emergência que me disse que os exames haviam chegado de volta do laboratório e que eram de certa forma, inconclusivos, mas que ele continuava dizendo que se tratava de infarto.

Às dezesseis horas liguei novamente para saber como ele estava e a tal moça me disse que ele estava dormindo, estável. Perguntei pelo cardiologista e ela disse que ele estava em uma cirurgia e que estava chegando. 

Não me conformei e liguei novamente às dezoito horas e a tal me passou para uma médica, também simpática como o que o atendeu pela manhã, e disse que o paciente estava ainda sentindo um pouco de dor mas que estava normal. Nessa altura minha paciência estava quase a zero. Fui ríspido com a médica mesmo ela sendo atenciosa, mas até aquela hora o cardiologista não havia visto o paciente que àquela altura poderia ser tudo menos paciente. 

É em ocasiões como esta que o homem educado, cordato e ponderado, filho de dona Clarice, destrói o sujeito exigente, incompreensivo e grosso, filho de seu Nagib. Não vou me perdoar nunca por ter acreditado naquela primeira pessoa, aquela mulher, que fez de tudo para não prestar o socorro necessário a Neto. Se ela estivesse em minha frente quando, por volta das 19 horas, Marcelo, branco e trêmulo, me disse que Neto havia morrido, eu talvez a tivesse agredido, e confesso, sentiria imenso prazer por isso. Sou humano. Tenho reações como as de qualquer pessoa. Mas de que adiantaria!?

O certo é que a má vontade, a busca voraz pelo lucro, operada por aquela mulher, sob as estritas ordens de seus patrões, culminaria com a morte do paciente.

O fato é que, um de meus mais constantes companheiros nesta jornada que é a vida, meu primeiro funcionário, faleceu.

O fato é que poucas pessoas, talvez nem mesmo os filhos de Neto vão sentir tanto a falta dele quanto eu vou, pois confiança não se transfere e este é um sentimento que leva muito tempo para se construir. Vou dar-lhes um pequeno exemplo: em todos estes anos eu nunca viajei para o interior do estado, de carro, sem que Neto não fosse o motorista. Só confiava nele para dirigir para mim. Com ele não tinha problema algum acabar um comício às 2 horas da madrugada em um lugar quinhentos quilômetros distantes de São Luís, pois viajaria a noite toda dormindo um sono tranqüilo e seguro e quando fosse 5, estaria em casa.

Neto era como se fosse uma espécie de irmão-filho. Nele eu tinha a confiança e a cumplicidade que os bons irmãos devem ter, mas também o sentimento de proteção dos pais por um filho peralta.

Com a morte de Neto, fica mais claro para mim que realmente perde muito mais quem fica do que quem vai.

Dezesseis anos atrás perdemos Nagibão e fiquei atônito, perdido. Agora perdemos Neto. O sentimento não é o mesmo, mas é também um desfalque irreparável.

Sinceramente não consigo imaginar como farei, ou melhor quem fará certas coisas para mim, para minha família a partir de agora.

O mundo não será mais o mesmo.

Estou aqui esmurrando esse teclado e ouvindo a Radio Mirante AM enquanto o radialista Geraldo Castro fala de Neto e coloca duas maravilhosas musicas em sua homenagem: “Amigo é coisa para se guardar debaixo de 7 chaves” de Fernando Brant e Milton Nascimento, cantada por Milton e “Amigo” de Roberto e Erasmo Carlos, cantada pelo primeiro.

Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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