Quando se perde um pedaço

Já fazia muito tempo que não me sentia como me senti na noite da última terça-feira, dia 9. Senti-me desamparado. Como se me faltassem referências. O mais incrível é que a falta de referência não era em relação a mim, homem feito e refeito, passado dos 60, mas para o menino brincalhão e irrequieto que fui um dia.

Naquela noite senti, como se aquele Joaquim menino, tivesse perdido o rumo, o prumo, o leme, como se ele tivesse deixado de vivenciar todas aquelas maravilhosas coisas que acabariam por lhe fazer a pessoa que viria a ser com o passar do tempo.

Senti como se a fita VHS de minha vida estivesse sendo rebobinada em slow motion e tudo estivesse andando para trás e “desacontecendo”. Era como se minha vida, assim como acontecera, estivesse sendo apagada.

Sei que você, que me dá a honra de sua leitura, deve estar confuso. Confesso que eu também estou. Este já é o quarto texto que inicio na tentativa de comentar sobre a dor lacerante que senti. Uma dor que só poderia ser curada através das palavras que eu conseguisse colocar em um texto como este, que me servisse de analgésico, anestésico, barbitúrico.

Quando meu pai morreu, o chão cedeu. Eu precisei de muita força para me equilibrar, e só consegui porque muitas pessoas, na falta dele, passaram a depender de mim. A dificuldade que senti quando meu pai morreu, foi superada pela necessidade que tive de amparar as pessoas que continuavam vivas.

Na última terça-feira o peso caiu nas costas daquele Joaquim, menino de 10 anos, que estava começando a entender o mundo, e não nas costas do homem de 60 que já o conhece o suficiente para saber que estar atônito com a notícia da morte do “primo Stenio” era só a metade do problema. A outra metade seria consolar mãe Teté pela perda de outro irmão, num intervalo de apenas 30 dias.

Em fevereiro, mãe Teté perdeu Estelmo e sua esposa Maria das Graças, que nos deixaram, acometidos pela Covid-19. Em março, Stenio se foi, atropelado na porta de sua casa, no Anil.

Quando éramos crianças, eu, Jorge, Nagib e Celso, tínhamos uma vida muito parecida com a da maioria dos meninos de São Luís, mas havia uma diferença fundamental. Nós tínhamos um mentor, uma espécie de tutor, um sujeito que tendo 20 anos a mais, brincava conosco como se fosse um de nós. Não que ele fosse um “retardado”. Longe disso. Ele era “muito esperto”, segundo mãe Teté, nossa mãe de criação e irmã dele.

Stenio nos ensinou a jogar futebol de botão, dama, dominó, xadrez, buraco, pif-paf, pôquer. Fazíamos expedições exploratórias por lugares interessantes, como o Sítio do Físico, o Reservatório do Batatã, o Estreito dos Mosquitos. Acampávamos no Ingaúra, na Maioba, em Guarapiranga. Ele nos levava ao Lítero e ao Jaguarema. O que mais gostávamos, era de ir com ele ao circo e ao cinema. Era ele quem conseguia fazer com que Nagib entrasse nos cinemas para assistir filmes censurados para menores e foi com ele que assistimos alguns clássicos como “Rastros de ódio”, “Os canhões de Navarone”, “El Cid”, “Lawrence da Arábia”, “Spartacus” e “O homem que queria ser rei”, entre tantos outros.

Stenio esteve presente em quase todos os momentos importantes de nossas vidas, dos 6 aos 16 anos. Ele era álibi para coisas boas e para aquelas não tão boas que fazíamos.

Foi ele quem nos ensinou a dirigir; era ele que nos deixava pegar o carro de papai “emprestado”, para levarmos as empregadas dos vizinhos “para dar uma voltinha”; era ele quem arrumava as desculpas quando Jorge chegava tarde em casa.

Stenio Magalhaes Barros acabara de completar 81 anos e até já havia sido vacinado contra Covid-19.

Ele morreu. Nós não vamos mais vê-lo, mas ele continuará existindo enquanto nós tivermos capacidade de lembrar das aventuras que vivemos juntos, enquanto Jorge for capaz de contar para seu netinho Davi, que mãe Teté mandava que nós disséssemos a todos os nossos amigos que Stenio era nosso “primo”, para justificar a presença daquele sujeito tão mais velho que nós, no meio de nossas brincadeiras, alegrando e engrandecendo a nossa adolescência.

Ave Stenio, os que ficam não se esquecerão!…

Quando se perde um pedaço

Já fazia muito tempo que não me sentia como me senti na noite da última terça-feira, dia 9. Senti-me desamparado. Como se me faltassem referências. O mais incrível é que a falta de referência não era em relação a mim, homem feito e refeito, passado dos 60, mas para o menino brincalhão e irrequieto que fui um dia.

Naquela noite senti, como se aquele Joaquim menino, tivesse perdido o rumo, o prumo, o leme, como se ele tivesse deixado de vivenciar todas aquelas maravilhosas coisas que acabariam por lhe fazer a pessoa que viria a ser com o passar do tempo.

Senti como se a fita VHS de minha vida estivesse sendo rebobinada em slow motion e tudo estivesse andando para trás e “desacontecendo”. Era como se minha vida, assim como acontecera, estivesse sendo apagada.

Sei que você, que me dá a honra de sua leitura, deve estar confuso. Confesso que eu também estou. Este já é o quarto texto que inicio na tentativa de comentar sobre a dor lacerante que senti. Uma dor que só poderia ser curada através das palavras que eu conseguisse colocar em um texto como este, que me servisse de analgésico, anestésico, barbitúrico.

Quando meu pai morreu, o chão cedeu. Eu precisei de muita força para me equilibrar, e só consegui porque muitas pessoas, na falta dele, passaram a depender de mim. A dificuldade que senti quando meu pai morreu, foi superada pela necessidade que tive de amparar as pessoas que continuavam vivas.

Na última terça-feira o peso caiu nas costas daquele Joaquim, menino de 10 anos, que estava começando a entender o mundo, e não nas costas do homem de 60 que já o conhece o suficiente para saber que estar atônito com a notícia da morte do “primo Stenio” era só a metade do problema. A outra metade seria consolar mãe Teté pela perda de outro irmão, num intervalo de apenas 30 dias.

Em fevereiro, mãe Teté perdeu Estelmo e sua esposa Maria das Graças, que nos deixaram, acometidos pela Covid-19. Em março, Stenio se foi, atropelado na porta de sua casa, no Anil.

Quando éramos crianças, eu, Jorge, Nagib e Celso, tínhamos uma vida muito parecida com a da maioria dos meninos de São Luís, mas havia uma diferença fundamental. Nós tínhamos um mentor, uma espécie de tutor, um sujeito que tendo 20 anos a mais, brincava conosco como se fosse um de nós. Não que ele fosse um “retardado”. Longe disso. Ele era “muito esperto”, segundo mãe Teté, nossa mãe de criação e irmã dele.

Stenio nos ensinou a jogar futebol de botão, dama, dominó, xadrez, buraco, pif-paf, pôquer. Fazíamos expedições exploratórias por lugares interessantes, como o Sítio do Físico, o Reservatório do Batatã, o Estreito dos Mosquitos. Acampávamos no Ingaúra, na Maioba, em Guarapiranga. Ele nos levava ao Lítero e ao Jaguarema. O que mais gostávamos, era de ir com ele ao circo e ao cinema. Era ele quem conseguia fazer com que Nagib entrasse nos cinemas para assistir filmes censurados para menores e foi com ele que assistimos alguns clássicos como “Rastros de ódio”, “Os canhões de Navarone”, “El Cid”, “Lawrence da Arábia”, “Spartacus” e “O homem que queria ser rei”, entre tantos outros.

Stenio esteve presente em quase todos os momentos importantes de nossas vidas, dos 6 aos 16 anos. Ele era álibi para coisas boas e para aquelas não tão boas que fazíamos.

Foi ele quem nos ensinou a dirigir; era ele que nos deixava pegar o carro de papai “emprestado”, para levarmos as empregadas dos vizinhos “para dar uma voltinha”; era ele quem arrumava as desculpas quando Jorge chegava tarde em casa.

Stenio Magalhaes Barros acabara de completar 81 anos e até já havia sido vacinado contra Covid-19.

Ele morreu. Nós não vamos mais vê-lo, mas ele continuará existindo enquanto nós tivermos capacidade de lembrar das aventuras que vivemos juntos, enquanto Jorge for capaz de contar para seu netinho Davi, que mãe Teté mandava que nós disséssemos a todos os nossos amigos que Stenio era nosso “primo”, para justificar a presença daquele sujeito tão mais velho que nós, no meio de nossas brincadeiras, alegrando e engrandecendo a nossa adolescência.

Ave Stenio, os que ficam não se esquecerão!…

1 comentário em “Quando se perde um pedaço”

  1. Ailton Tonni Castro

    Perder pessoas atadas de algum modo a essa fase de nossas vidas, é sempre uma dor estranha e difícil de explicar e suportar. Meus sentimentos, confrade.

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Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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